quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

IX - Olhos no Céu

Despertei cedo o bastante pra sair sem ser notado. Arrumei minhas coisas, fiz a minha mala. Eu tinha planos para ir para o Oeste, o máximo que eu pudesse. Eu tinha um pouco de dinheiro e o carro do meu pai. Provavelmente, dirigiria até Montreal onde eu tinha alguns amigos - ou costumava ter - que poderiam me ajudar a chegar até Calgary. De lá, eu teria que improvisar. Eu só sabia para onde deveria ir, não necessariamente o que faria quando chegasse lá. Mas quando acordei, me deparei com minha irmã na sala, sentada no sofá com as mãos no rosto.

Fiquei surpreso pois era muito cedo para ela estar de pé. Percebi que teria que adiar meu plano de fuga, mas a ideia saiu da minha cabeça quando percebi que ela estava em prantos enquanto assistia o plantão de notícias.

- Um amigo do trabalho estava nesse avião - ela disse soluçando.

Foi quando me atentei ao que passava na Televisão.

- De acordo com a Agência Nacional de Aviação, haviam 113 passageiros no Boing que caiu na Pennsylvania e é improvável que haja qualquer sobrevivente. O vôo 4102 da American Airlines saiu de Moncton com destino a Miami e tinha conexões com Pittsburg e Atlanta. Os motivos do acidente ainda são desconhecidos...

Eu estava em choque. O horário batia com o do vôo que o homem de cavanhaque queria que eu tivesse embarcado. Minha cabeça rodou. Pedi licença e fui lá fora fumar um cigarro totalmente alheio ao sofrimento da minha irmã.

Sentei na varanda do lado de fora e acendi meu cigarro. Era bem cedo, o sol ainda estava nascendo e fazia um frio que parecia me cortar as orelhas e o nariz. Eu tinha esquecido meu gorro lá dentro, mas desisti de buscá-lo depois que me sentei, embora já caminhasse melhor, mesmo sem a bengala que eu perdi no acidente. O que realmente me incomodava não era o frio nem a falta da bengala, mas a história da queda do avião. Era pra eu estar naquela aeronave se seguisse os conselhos do homem de cavanhaque.

Foi quando eu percebi o carro vermelho do outro lado da rua. O carro do velho em que eu tinha entrado dois dias antes. Onde tinha sofrido um acidente. Ele me olhava como se quisesse chamar minha atenção. Senti um calafrio subir-me as costas.

Apaguei o meu cigarro no cinzeiro e levantei. Atravessei a rua por puro impulso, por instinto eu acho. Não sabia o que esperar. Notei que o carro não tinha nenhum sinal do acidente que aconteceu dois dias antes e voltei a pensar na possibilidade de realmente ter sido tudo uma invenção do meu subconsciente. Alucinações, Estados de Fuga. Esquizofrenia.

Entre no carro e fiquei parado por alguns segundos sem dizer nada, sem olhar o velho. Apenas olhando pra frente como se dissesse, "dirija".

- Você precisa nos contar onde ele te levou, nos mostre o lugar. - quem falava comigo era a mulher do fundo do rio que estava, de novo, sentada no banco de trás do carro.

- Um apartamento na Alma Street no centro próximo a uma Loja Maçônica.

Era um pequeno prédio de apartamentos de três andares. As paredes incrustadas de tijolos alaranjados. No Térreo, funcionava uma loja de penhores ou coisa do tipo.

Quando chegamos e subimos até o apartamento - cujo número eu não consegui me lembrar, mas tinha certeza de qual era baseando-me nas direções - o velho sacou uma pistola de dentro do sobretudo cinza. O frame em aço inox reluziu pelo corredor escuro enquanto nossos passos estalavam o assoalho de madeira. Não foi medo que senti, mas uma familiar sensação de expectativa e ansiedade. Mas me assustei quando ele entregou a pistola em minhas mãos e sacou um pequeno revólver escuro do tornozelo. A arma me pareceu tão familiar entre meus dedos quanto a sensação de emboscar um homem em seu apartamento. O quê eu me tornei nesses últimos anos?

Antes de bater na porta, percebemos que ela estava levemente entreaberta. A mulher de olhos negros não nos acompanhava e acredito que eu me sentiria mais segura se ela estivesse lá, não sei exatamente porquê.

O velho empurrou a porta e ela se abriu lentamente com um rangido macabro das dobradiças. Nada. O apartamento estava vazio. Não havia ninguém. De fato, não havia nada, nem mobília. Não havia sinal de que alguém havia morado ali nos últimos seis meses pelo menos. A poeira se acumulava sobre o chão e os balcões da pia. Nas janelas da sala e dos quartos. O banheiro parecia que não via água há muito tempo.

Nada mais fazia sentido.

Voltamos para o carro e antes de contarmos qualquer coisa á mulher de olhos negros, ela se precipitou.

- Devemos ir. Ele já está um passo à nossa frente.

- Ir? Para onde? - Indaguei devolvendo a pistola ao velho.

- Boston. É lá onde ele está.

- Nós vamos matar esse homem? Que loucura é essa?

- Não assistiu os noticiários garoto? Ele queria te colocar num avião que caiu. Aquele homem te quer morto a qualquer custo. - se intrometeu o velho.

- Isso não faz sentido. Ele me teve inconsciente por horas nesse apartamento, poderia ter me matado facilmente se quisesse. Pra quê ele iria fazer isso num avião? Que tipo de monstro mataria centenas de pessoa para atingir um único alvo?

- Nós fazemos esse tipo de coisa - disse o velho.

- Ele não te matou no apartamento porque ele não pode Aaron - disse a mulher - ele precisa de algo que só você sabe. Algo que você escondeu há algum tempo. E provavelmente, ele te fez contar.

- Eu não contei nada. Eu não poderia, não me lembro de ter escondido coisa alguma.

- Não importa, existem outros meios de descobrir. Ele passou tempo o bastante com você desacordado. Ficaria surpreso com as habilidades daquele homem. - ela se dirigiu ao velho - precisamos de um vôo para Boston ainda hoje.

- É ano novo, dificilmente encontraremos, mas vou dar meu jeito.

- Eu sei que vai - disse ela antes de voltar a se dirigir a mim - te levaremos para casa, mas esteja pronto pois partiremos à noite.

Faltavam doze minutos para as dezenove horas quando eu vi o farol alto do carro vermelho na porta de casa. Saí com minha única mala sem minha mãe e minha irmã perceberem. Ambas estavam ocupadas demais preparando o jantar do ano novo.

Saí pela garagem e subi no carro sem trocar uma palavra com a mulher ou com o velho. Nos dirigimos ao aeroporto enquanto eu lutava comigo mesmo para entender as minhas próprias decisões, os motivos que me levaram a tal situação.

Eu não sabia mais que tipo de homem eu havia me tornado nesses últimos anos, mas tinha certeza que minha família estaria mais segura não me tendo por perto. Temia pela segurança de minha mãe e de minha irmã mais do que pela minha própria. Mas eu estava estranhamente animado com a situação. Eu finalmente sentia vontade de saber sobre o que estava acontecendo quando denotei que não sabia nem sequer o nome das pessoas que agora me levavam para uma viagem para outro país.

Foi no carro que descobri que o velho chamava-se Ross. Apenas Ross, não tinha nome ou sobrenome. Foi assim que ele se identificou. A mulher do fundo do rio era Frida, ou a Bruxa, como o velho me disse após rir. Foi a primeira vez que eu vi um sorriso naquele rosto severo.

Nosso vôo partia as 19:40 e chegamos bem á tempo de embarcar em meio ao caos de jornalistas que cobriam o acidente da noite anterior no aeroporto. Entrei no vôo e apaguei logo depois da decolagem vendo a neve cair sobre New Burnswick.

Quando despertei, já sobrevoávamos Boston e a aeronave fazia manobras para aterrissar. Olhei pela janela e vi os fogos de artifício iluminarem a noite de inverno. Naquele momento, aceitei dentro de mim a pessoa que eu havia me tornado. E até mesmo por isso, lamentei a pequena chance de acontecerem dois acidentes aéreos em dois dias seguidos.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VIII - Eco

Quando cheguei à casa de minha mãe, ela estava desesperada. Falava com dois policiais que anotavam o que ela dizia num bloquinho. Quando me viu, ela correu pra me abraçar. Uma neve fina caía na rua. Depois de entrar e tomar um bom chocolate quente, tive que explicar o que tinha acontecido no dia anterior. Mas quando contei do acidente na rodovia, descobri que não havia registro algum de acidente.

Minha mãe chamou os policiais para conversarem. A sós.

Ainda no hospital, os médicos atentaram que deveríamos tomar cuidado com a questão da amnésia. Eu poderia ainda ter alucinações, estados de fuga e colapsos emocionais de todo tipo. Em algum momento do diálogo a palavra "Esquizofrenia" foi citada. Mas sem o resultado dos exames, era só uma hipótese.

Eu estava exausto, então resolvi que o mais sábio a se fazer era dormir. Me perdi num sono denso e escuro onde sonhei de novo com a mulher do fundo do rio. Dessa vez, estávamos, de novo, no topo de um arranha-céu.

"Nós somos o que somos."

Quando eu acordei, minha mãe não estava em casa. Mas me deparei com minha irmã. Antes que eu pudesse sequer cumprimentá-la, ela simplesmente despejou toda sua ira. A última vez que eu tinha visto ela, antes do incidente no rio, ela era apenas uma menina de quinze anos. E agora, já era uma mulher e estava me dando lições de moral. Ela não acreditava na minha história de esquecimento, para minha irmã, eu estava mentindo descaradamente. Ela continuou destilando sua raiva dizendo que eu as abandonei e depois resolvi voltar, então criei essa história estúpida para não ter que admitir que deixei todos para trás.

Por um momento, pensei que pudesse ser verdade. Talvez eu tenha me convencido com a própria história e tenha esquecido tudo, de fato. Lembrei do velho, da mulher do fundo do rio, do homem de cavanhaque que queria que eu fosse embora. Nada fazia sentido.

Deixei minha irmã falando sozinha na cozinha, fui até a porta da sala e tentei abri-la. Mas ela estava trancada e não haviam chaves à vista. Minha mãe temia que eu desaparecesse de novo devido à minha "Fragilidade psicológica momentânea", então basicamente eu teria que passar o dia enclausurado na casa dela.

Sem muita opção, decidi assistir a TV, ver o que acontecia no mundo lá fora, ver o que mudou enquanto eu estive debaixo do gelo. Mas antes que eu pudesse perceber, já estava hipnotizado por meus próprios pensamentos, por minha própria dúvida que me torturava. Já não via ou ouvia a TV - ou a minha irmã. Apenas eu, a poltrona e minha mente despida de memória.

Me lembrei do gelo se rompendo sob meus pés e de mergulhar nas águas escuras e mortalmente geladas do rio. Eu gritei, mas não havia ninguém para me escutar. Me cansei de lutar, afundei. Me entreguei quando meus pés encontraram o cascalho no leito do rio. Foi quando eu vi ela.

Ainda não consigo me lembrar o que aconteceu antes ou depois disso. Não lembro porque estava caminhando sobre o rio - algo estúpido demais até mesmo para mim. Também não lembro o que aconteceu depois que eu saí. Eu simplesmente apaguei e acordei no hospital. Sete anos depois.

Imaginei o desespero dos meus pais ligando em necrotérios e hospitais, esperando uma notícia boa das equipes de busca, nem que fosse ao menos um corpo para enterrar. Imaginei minha mãe no frio pregando cartazes em postes por toda Nova Escócia. Pensei como o peso da dúvida era muito maior do que qualquer certeza difícil de encarar.

Não saber onde eu poderia estar por todo esse tempo deve ter sido pior para eles do que se soubessem que eu estava morto. Como foram esses anos pra mim? Senti falta dos meus pais, dos meus amigos? Onde quer que eu estivesse, eu estava feliz? Eu tinha medo de encontrar as respostas. Tinha medo de realmente ter escolhido deixar todos para trás, causar tamanho sofrimento a todos e simplesmente ter voltado.

Tinha medo da pessoa que eu me tornei de lá pra cá, a pessoa que eu não mais sabia quem era.

Sempre que me olhava no espelho, achava assustador ver como eu mudei. Antes, eu não tinha barba e meu cabelo era mais cumprido. Eu era mais magro também e não era tão pálido. Eu tinha cicatrizes antigas que não conseguia explicar, sensações que tomavam minhas entranhas sem entender o que realmente acontecia.

Percebi que não tinha mais como tomar minha vida de volta. Não havia mais como voltar de onde parei, me tornar de novo o rapaz que caiu no gelo fino. A pessoa que eu era morreu naquele natal debaixo do gelo. Decidi que partiria quando despertasse. Encontraria as repostas para minhas perguntas. Entendi que seria mais um peso para minha mãe do que um alento por ela ter finalmente encontrado seu filho desaparecido.

O filho dela estava morto. E se estivessem certos, logo eu estaria também. Eu precisava deixar aquele lugar o quanto antes, pelo bem de todos, por mais que fosse doloroso. Decidi partir ao amanhecer, no último dia do ano.

À noite dormi profundamente. Sonhei que dirigia para o Oeste e atravessava  o país até chegar às Rochosas. Sonhei que gritava meu nome e as montanhas ecoavam infinitamente a minha voz. Mas não havia sequer uma alma viva para me ouvir.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

VII - Tempestade de Cristais

O velho acendeu o cigarro e me senti extremamente curioso e assustado com o que ele tinha a me dizer. Me devolveu a caixa de fósforos, agradeceu, tragou e exalou uma espessa nuvem de fumaça.

- Eu sei o que você está pensando garoto, sei que tem suas dúvidas. E com o tempo, espero poder responder todas elas. Mas agora, devemos ir. Não é seguro ficar aqui.

- Não é seguro? O que você quer dizer?

- Você corre risco, a sua família corre risco. - Nesse momento percebi que os olhos dele eram de um tom de turquesa que eu nunca havia visto nos olhos de qualquer outra pessoa. Pareciam me sugar, me puxar pra dentro deles. - O quanto antes formos, melhor. Podemos acertar as coisas, consertar o que deu errado. Mas não posso te explicar agora, apenas venha comigo.

- Eu não te conheço, não sei quem você é. Você me seguiu desde Halifax, talvez antes. Como posso confiar em você?

O velho deu outro trago no cigarro, esse, mais forte e profundo do que o primeiro. A brasa acendeu com força e parecia me hipnotizar.

- Eu trabalho para alguém que você conhece, alguém que está te esperando. - ele falava enquanto soltava fumaça pela boca e nariz.

- Me esperando? Onde? Quem? - não pude disfarçar o quão nervoso eu estava.

Ele apontou para a esquerda, para o outro lado do parque.

- Vê aquele carro vermelho? Tem uma senhorita te esperando, alguém que há muito quer falar contigo. Você pode não me conhecer garoto, mas não é a primeira vez que eu te vejo. Já trabalhamos juntos por vários anos. Eu devo ser a última pessoa viva em quem você pode confiar.

Eu hesitei. Mas minha vontade de saber do que ele falava era tão grande que eu não podia simplesmente dar o braço a torcer. Não podia mandar ele ir à merda e sair andando. E no final das contas, era só um velho. Mesmo debilitado, eu não me sentia ameaçado por ele. Mas tinha algo que realmente me atormentava.

- Eu vou se me disser exatamente que risco eu estou correndo. Quem está atrás de mim além de você? Quem é um perigo pra minha família?

- Apenas você mesmo jovem. Estou aqui pra te proteger de você.

Engoli em seco. Não soube o que responder. Joguei fora meu cigarro, me levantei apoiando-me na bengala. Ele também se levantou. Caminhamos até o outro lado do parque entre crianças montando bonecos de neve e carrinhos de pipoca e cachorro quente. Faltava pouco para o sol se por, mas ainda era dia e estávamos cercados de muitas outras pessoas. Me senti estupidamente seguro por um momento.

Entrei no carro junto com ele, no banco do passageiro. Ele atirou a bituca de cigarro no asfalto, assoprou fumaça e entrou logo em seguida. Quando ele dava partida, eu ouvi uma voz familiar chamar meu nome.

- Não se vire.

Olhei pelo retrovisor e vi um par de olhos negros me fitando. A mulher do fundo do rio. O velho manobrou e saiu com o  carro indo para o sul.

- Quem é você? - perguntei à mulher do banco de trás.

- Essa não é a pergunta correta. Você deveria perguntar isso a si mesmo. Eu te conheço há muito tempo, mesmo antes do fundo do rio. Eu estive nos seus sonhos, conheço seus mais íntimos medos e seus mais belos sonhos. Eu sou a voz que fala dentro da sua cabeça. O que você precisa saber é quem você é.

- E quem eu sou?

- Você é um de nós. Como seu pai também foi. Você esteve conosco na escuridão nos últimos anos.

- Meu pai? - nesse momento, percebi que desde quando eu acordei, ninguém tocou no nome do meu pai. E embora o carro dele estivesse parado na garagem da nossa casa coberto por uma lona, ele não estava lá.

- Sim, seu pai. Nós temos uma longa história com ele. Ele tem um débito conosco que gostaria que você quitasse. Você acredita em karma?

- Karma?

- Sim. Digamos que faz parte do seu Karma.

- Eu... eu não consigo entender. Como podem me conhecer sem que eu faça ideia de quem vocês são? Onde eu estive nos últimos anos, com quem estive, o que fiz? Por quê eu não me lembro?

- Você escolheu esquecer. Quis retomar a sua antiga vida de onde parou, mas isso quase nunca funciona. Uma vez que se atravessa para o outro lado, não há mais volta. Não existe mais como recomeçar. Você fez uma escolha quando saiu do lago congelado naquela noite de Natal. Uma escolha pra vida toda. Nesse exato momento, você não sabe que é um risco para todos a sua volta. Nós vamos te levar de volta pra casa.

- De volta pra casa? Ok, nada disso faz sentido. Achei que tivesse respostas. Pare o carro, eu quero descer. - Eu já estava bem desconfortável antes, mas agora minha cabeça doía e tudo parecia girar. Eu não entendia nada do que estava acontecendo.

- Aaron, confie em mim, olhe nos meus olhos. - imediatamente nossos olhares se encontraram através do retrovisor e subitamente, de forma que eu não conseguia explicar, eu estava de pé, no topo de um edifício.

O vento forte soprava vindo do Atlântico. Me sentia alguns anos mais jovem. Já não vestia mais casacos, apenas uma camisa de flanela agitada pelo vento e um ar quente de verão pesava sobre mim. Á minha frente, a paisagem urbana desaguava no mar alaranjado que refletia a luz do sol. Eu não fazia ideia de como fui parar ali ou que lugar era aquele, mas sabia que não era real. Eu deveria estar sonhando. Ou será que eu estava me lembrando de algo.

- Se você pular, eu pulo.

Era a voz da mulher de olhos negros. Ela estava logo atrás de mim. Eu não podia vê-la, mas pude sentir sua presença. Pude ouvir seus passos. Pude sentir ela se aproximar de mim. Pensei que ela fosse me empurrar. Mas ela só se aproximou e disse no meu ouvido:

- Nós somos o que somos.

Eu ouvi um baque e senti o carro rodar na rodovia. Vidro voava à minha volta como uma tempestade de cristais de gelo. O carro só parou no canteiro envolto a uma nuvem de fumaça. Tentei voltar a mim mesmo, entender o que havia acontecido. Foi só aí que percebi que estávamos de ponta cabeça. Olhei para trás e a mulher de olhos negros não estava mais lá. O velho jazia desacordado com a cabeça apoiada sobre o volante. Sangue pingava do seu rosto no teto do carro. Tentei acordá-lo sem sucesso.

Não conseguia sentir nada direito. Meu corpo inteiro formigava e senti meu rosto inchar-se, mas não havia dor. Cuspi sangue no meu colo. Eu havia mordido o lábio no momento da batida. Foi quando a minha porta se abriu e alguém me puxou para fora do carro. Eu fui literalmente arrastado pra longe do carro vermelho retorcido no canteiro da avenida. Fumaça branca saia do radiador. Eu vi carros pararem no acostamento. Um homem falava no celular com a mão na cabeça. Destroços se acumulavam pela pista.

Foi quando eu vi o homem que me carregava. Ele tinha meia idade, os cabelos curtos e um cavanhaque imponente. 

- Você vai ficar bem - ele disse e foi a última coisa que eu me lembro antes de apagar.

Acordei tonto, minha vista completamente embaçada. Pensei estar numa ambulância, pensei estar num hospital. Pensei estar em casa ou ainda sentado no banco do parque fumando meu cigarro. Mas estava sentado no banco do passageiro de um outro carro com um outro motorista. Quando minha vista finalmente voltou, percebi que era o homem que havia me tirado do acidente. E agora sim, sentia dor. Nas pernas, nas costas e no rosto.

Ele virou o rosto e olhou pra mim e percebeu que eu estava acordado. Havia sangue e sujeira nas minhas roupas.

- Fique calmo Aaron, tudo vai ficar bem. Você não deveria ter voltado. Estou te levando para um lugar seguro.

Eu simplesmente apaguei. Acordei já era noite. Na verdade, madrugada. Eu estava num quarto de um apartamento acabado numa cama desconfortável. Me sentia anestesiado, mas meu corpo inteiro doía. Uma televisão ligada passava um filme qualquer. O homem que me trouxe sentava-se de frente pra mim.

- Ouça atentamente o que eu tenho a dizer e eu não vou repetir. Está prestando atenção.

Mexi a cabeça como se respondesse que sim.

- Ótimo. Assim que estiver se sentindo melhor, você vai deixar a cidade. Eu não vou estar aqui. Tem um envelope em cima da cozinha com tudo o que você vai precisar. Carteira de habilitação, dinheiro, passaporte e uma passagem. Chame um táxi e vá direto para o Aeroporto. Não fale com ninguém, não volte para a casa de sua mãe. Eu prometo que ela e sua mãe estarão seguras. Essa passagem é para Pittsburg. Você também vai encontrar um endereço dirija-se para lá e espere eu entrar em contato. Não fale com ninguém. Fui claro.

- Eu não vou a lugar nenhum.

- Aaron...

- Eu não vou a lugar nenhum antes de saber o que diabos está acontecendo. Onde é que eu estou? Por quê vocês estão atrás de mim? O que aconteceu?

- Não revire o passado. Você escolheu assim, você escolheu esquecer. Para recomeçar a sua vida. Mas você cometeu um erro Aaron. Eles te encontraram e vão fazer de tudo para te trazer para o lado deles. Sua vida como era antes nunca poderá voltar se insistir em voltar ao passado.

- E por quê eu fiz isso? Por quê esquecer? Isso não faz sentido.

- Porque você não poderia viver tendo feito as coisas que fez, tendo visto as coisas que viu. Sabendo das coisas que sabe. Você esqueceu pois escolheu viver.

- E esse é o preço que eu devo pagar por querer viver? Ter que deixar tudo para trás de novo? Minha família, meus amigos?

- Você já escolheu os deixar para trás há muito tempo. Terá de fazer isso de novo se quiser continuar vivo.

Me levantei da cama e o fuzilei com os olhos.

- Minha vida não vale tanto. Eu não sei o que fiz nem como eu te conheço, mas tenho certeza que tudo isso foi um erro. Eu estou indo embora daqui, mas é para casa que eu vou voltar.

- Você não pode...

- E é você que vai me impedir?

Cambaleei até a porta quando ele me puxou pelo braço:

- Aaron, me escuta: você vai morrer antes do ano acabar se não fizer o que eu estou te dizendo.

- Eu já morri há muito mais tempo que isso.

Deixei o apartamento e chamei um táxi para me levar de volta pra casa.

domingo, 28 de dezembro de 2014

VI - Summer Park

Neguei quando me ofereceram a cadeira de rodas para sair do hospital. Fiz questão de ir andando, mesmo que com bastante dificuldade. A minha recuperação era tão inexplicável quanto o fato de eu ainda estar vivo, mas àquela altura, eu já nem me preocupava em perguntar os "comos" e "porquês". Eu só queria ir para casa. Mas minha casa era um lugar que já não mais existia, então voltei a morar com a minha mãe.

A viagem de trem foi em completo silêncio. Minha mãe parecia feliz por eu estar de volta, mas exausta demais para pensar ou falar qualquer coisa. Talvez ela não tenha acreditado na história de que eu não me lembrava de nada. E eu queria que realmente fosse mentira.

Observei abismado pelas janelas do vagão como a cidade tinha mudado: novos prédios, pontes, viadutos. Alguns negócios haviam sido fechados, outros novos tomavam lugar. A neve tomava a paisagem dividindo lugar com as luzes de Natal. Faltavam 3 dias para o ano acabar e tudo o que eu queria era um lugar para descansar a minha cabeça.

Era um belo Domingo de inverno, o céu aberto, sem nuvens. O sol brilhava apesar do frio pesado. Um grupo de adolescentes entrou no vagão, provavelmente voltando de alguma festa ou show. Talvez de uma balada. Eles riam, falavam alto e ainda pareciam animados apesar de estarem acordados a noite toda. Um mostrava alguma coisa para o amigo na tela do Smartphone enquanto ria e cochichava em seu ouvido. Atrás deles, um homem velho me fitava.

Ele deveria ter pelo menos uns cinquenta e seis anos, talvez mais. Mas parecia durão. O cabelo bem cortado e a barba já eram bem grisalhos, ele era quase tão pálido quanto a neve, seus olhos de um azul turquesa que parecia fuzilar-me através de seus óculos de armação pesada. Eu tive certeza que o conhecia de algum lugar, mas não consegui

Quando o trem partiu, ele se limitou a ler seu jornal em sua poltrona. Me senti melhor sem seus olhos disparando contra mim. E seria uma longa viagem. Íamos de Halifax a Moncton, quase três horas de viagem.

Minha mãe me despertou de um cochilo quando chegamos. Descemos na estação com nossa pouca bagagem e fomos atrás de um táxi. Quando adentramos ao táxi e ela deu o endereço de sua casa ao motorista, observei pela janela e vi o velho saindo da estação. Ele tinha olhos em mim como antes. Engoli em seco antes do carro dar partida.

A casa onde eu cresci ficava na região Oeste de Moncton, New Brunswick. A casa quase não mudara desde a minha infância: o modelo colonial de alvenaria e madeira branca num calmo subúrbio de uma cidade pacata. O lugar perfeito para criar os filhos, longe de todo o caos urbano dos grandes centros. As memórias mais doces da minha infância vinham não de casa, mas de um parque que ficava há algumas quadras. O "Summer Park". Me lembro dos meus pais nos levarem quase todo final de semana ao parque. Fiz a maioria das minhas amizades na infância por lá. E talvez seja por isso que eu tenha resolvido ir até lá, contrariando minha mãe.

Eu precisei de uma bengala para andar até o parque, apenas três quadras que então me pareciam três milhas. O sol brilhava no céu fraco demais para derreter a neve nos telhados e calçadas. Eu ofegava e minha respiração formava nuvens de vapor saindo de minha boca a cada passo que eu dava com dificuldade pelas ruas do bairro até avistar, de longe, o pequeno parque.

Sentei-me num dos bancos e me deixei ser invadido pelas boas memórias da infância. Podia me ver com meus amigos jogando hockey nas ruas próximas do parque. Puxei um maço de cigarros do bolso e risquei um palito de fósforo. O cobri para que o vento frio não apagasse e acendi o cigarro. Traguei com força e quando soltei a fumaça me senti libertado. Eu havia comprado o maço de cigarros na estação sem minha mãe perceber. Nesse momento, vi crianças passarem por mim, tão encapotadas em seus gorros e blusas de lã e casacos que pareciam que iriam rolar se alguém as empurrasse pelo chão.

Foi quando eu pensei se eu poderia ter tido um filho - ou dois - nos últimos anos. Se eu tivesse e não me lembrasse, que tipo de pai eu seria por me ausentar? Mas como poderia me lembrar deles? Me peguei perguntando se existiam muitos casos como o meu: pais que perdem a memória e nunca mais voltam para suas casas por não saber que elas existem. Eu precisava saber de qualquer maneira. Nesse momento, alguém sentou-se ao meu lado no banco.

- Você tem fogo? - perguntou o homem.

- É claro. - Puxei a caixa de fósforos do bolso da calça e me virei para entregar ao homem que levava um cigarro pendurado na boca. Foi quando percebi e fiquei congelado por um instante.

- Você realmente não se lembra não é? - disse o velho que eu vi no trem com um meio sorriso estampado no rosto.

sábado, 27 de dezembro de 2014

V - Escarlate

Me lembro da primeira vez que me olhei depois de ter despertado. Não reconheci a pessoa no reflexo do espelho do banheiro. Eu não tinha mais cabelo e uma barba espessa crescia no meu rosto. Eu parecia muito mais velho. Bolsas se penduravam abaixo dos meus olhos caídos e havia uma cicatriz na minha têmpora direita há muito já fechada que eu não fazia ideia de onde tinha surgido. Também estava mais magro e pálido do que nunca.

Percebi que não sentia falta dos meus óculos. Eu estava enxergando perfeitamente bem sem eles.

Minha mãe vasculhou as minhas coisas. As roupas que eu vestia quando me encontraram. Não encontrou documentos ou qualquer pista que indicasse por ande andei por todo esse tempo. Apenas um ensopado maço de cigarros e um isqueiro que obviamente já não funcionava mais. O que é engraçado porque nunca fumei - pelo menos, não me lembrava disso.

Então lembrei da voz da mulher do fundo do rio, dentro da minha cabeça no dia anterior.

"Mantenha seus olhos no chão rapaz. Você é só uma criança jogando dados. Fumando um maço por dia, comendo e dormindo mal. Andando sozinho de madrugada, esperando ser baleado por algum trombadinha."
Pensar naquilo fez meu estômago revirar.

Ela também encontrou balas de menta - essas eu reconhecia, um vício antigo - e um relógio de pulso quebrado e travado em 4:34.

De resto, roupas que eu nunca vi na vida eram o que eu vestia quando me encontraram. A cada minuto que passava, eu ficava cada vez mais confuso. E ainda tinham as visitas: amigos antigos apareciam no hospital para me visitar, todos completamente pasmos e desacreditados. Nenhum conseguia me reconhecer de cara assim como eu não podia reconhecer a maioria deles.

Me perguntavam sobre coisas que eu não saberia dizer, contavam sobre coisas que eu nem imaginava que tinham acontecido. Minha irmã já era uma mulher feita, meus amigos todos já eram pais de família, doutores, engenheiros, advogados.

Eu não sabia o que dizer. Minha cabeça parecia querer explodir, meu estômago estava revirado e tudo o que eu queria era um cigarro. Não sei quando, não sei como, mas me tornei um fumante do dia pra noite.

Eu só queria voltar para casa. Mas descobri que casa é um lugar que não existe mais. Não para mim.

E na última noite, sonhei com ela de novo. Ela dizia que tudo ficaria bem desde que eu não insistisse em olhar para trás, mas era um conselho impossível de ser seguido. Eu não posso simplesmente fingir que nada disso aconteceu. Algumas pessoas esquecem fácil, mas essa é uma ideia que nunca fez sentido pra mim. Mesmo que eu quisesse, não poderia seguir em frente sem entender o que de fato aconteceu.

Nunca fui bom nisso, em simplesmente me desapegar do passado. Pra mim, sempre foi difícil esquecer qualquer coisa. Fui apaixonado pela mesma garota durante todo o Ensino Médio. Nunca deu certo. Mas por mais que eu tentasse me aproximar de outra pessoa, eu nunca conseguia preencher o lugar que ela ocupava.

Quando eu era criança, vi um garoto ser atropelado numa avenida perto da escola onde eu estudava. Por semanas, não conseguia dormir com a imagem dele sendo atirado no ar pelo carro e batendo com força no asfalto. Mesmo hoje, lembro com clareza o som da cabeça dele acertando o chão. Lembro dos médicos tentando reanimá-lo, lembro de como os olhos dele se tornaram fundos e opacos, lembro-me do vermelho escarlate do sangue escorrendo e formando uma linha vermelha até o meio fio. Foi algo que me fez ter pesadelos por anos, nunca superei completamente, nunca esqueci. E acredito que nunca irei.

E agora, tudo o que eu queria era lembrar de um enorme pedaço da minha vida que estava em branco, era saber o que de fato aconteceu. E descobri que mais difícil que saber é não lembrar. Mesmo a mais cruel das certezas jamais me torturaria quanto as dúvidas. Eu devo ter estado em algum lugar, deveria haver pelo menos uma pessoa que pudesse me responder, que pudesse me lembrar.

Comecei a pensar onde e com quem passei meus últimos aniversários. Como ganhei novas cicatrizes, quando comecei a fumar. Quando foi que minha vida tomou um rumo que nem eu mesmo consigo entender? Eu só queria sair e encontrar respostas.

Eu queria minha vida de volta. E resolvi buscá-la.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

IV - ... te torna pior

E então eu despertei.

Acordei numa cama de hospital com tubos enfiados em quase todos os orifícios possíveis do meu corpo. Eu podia sentir que estava claramente dopado, mas sentia dor por todo o corpo. Como se eu tivesse levado uma surra por dias. Cada minúsculo pedaço do meu corpo parecia ter sido esmagado.

Entre os borrões que eu enxergava, ouvi uma voz distante. Pensei na mulher do fundo do rio, aquela que há anos fala comigo de dentro da minha mente. Mas então reconheci. Era minha mãe, a primeira pessoa que eu vi depois de despertar.

Eu estava vivo. E ainda não sabia se isso era uma coisa boa.

Me encontraram na margem do rio praticamente congelado na manhã de Natal. Ninguém entendia como eu ainda poderia estar vivo. A hipotermia me fez perder a orelha direita. Os dedos mínimos e anelar da mão direita também se foram. No pé esquerdo, só me restou o polegar. Eu tinha dificuldade para enxergar, havia rompido sei lá quantos músculos me arrastando pela superfície de gelo do rio. Um tornozelo torcido e uma clavícula fora do lugar. Foi o que eu ganhei por sobreviver.

E essa nem era a pior parte.

Não sei quanto tempo passei debaixo do gelo ou na margem do rio, também não entendo como era possível eu ter ficado tanto tempo desacordado, mas eu acreditei que fossem meses, talvez anos. Não havia sobrado muito da minha vida quando eu despertei.

Meu pai "não estava mais lá", foi tudo o que me explicaram. A mulher que um dia me amou já havia há muito desistido de me esperar voltar para casa. Meus amigos se casaram, formaram família, cada um tomou um rumo distinto do outro. E a única pessoa que ainda estava lá do meu lado, era minha mãe. E ela havia envelhecido. Uma cascata de prata tomava seus cabelos e novas rugas apareciam em seu rosto. Ela estava mais magra e abatida do que nunca.

Eu perdi meu emprego, não tinha mais uma casa. Todas as pessoas à minha volta haviam desaparecido. Por quanto tempo estive fora? Por onde estive? O que fiz durante todo esse tempo?

Quando apaguei de novo naquele leito de hospital, sonhei com ela mais tantas vezes. A mulher do fundo do rio cujos cabelos negros flutuavam em torno de si. Seu rosto pálido e aqueles profundos olhos negros me olhavam como se pudessem me despir. Seus lábios sussurravam uma canção fúnebre e escura.

Minha mãe me disse que se passaram sete anos desde que o gelo se rompeu e fui tragado pelas águas. Me procuraram por muito tempo, nunca me encontraram vivo ou morto. Mas no mesmo dia 26 de Dezembro, sete anos mais tarde, alguém me encontrou nas margens do rio, como se eu simplesmente tivesse desaparecido por todo esse tempo e voltado ao mesmo lugar. O tempo parou enquanto estive na água fria do rio.

E esse era só o começo: eu voltei diferente de uma maneira que não conseguiria explicar. Mas posso garantir que não era o que eu queria ser. Podia sentir uma raiva escura queimar dentro de mim e sabia que era ela que tinha me mantido vivo. Então comecei a questionar se foi uma sábia escolha viver ao invés de abraçar a morte no fundo do rio naquela noite de Natal.

Esse é o preço de escolher a vida. E eu já nem sei se valeu a pena pagar.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

III - O que não mata...

O gelo se partiu debaixo dos meus pés. A água negra do rio engoliu primeiro meu pé direito e a água gelada pareceu quebrar todos os meus ossos. Eu tentei sair, tentei lutar, tentei ignorar os estalos cada vez mais altos, o gelo se desmanchando abaixo de mim. Uma sinfonia mortal de gelo se partindo e da água me engolindo. É assim que a morte soa quando ela sussurra em nossos ouvidos.

Veio a escuridão. Não podia enxergar ou ouvir nada, somente lutar e tentar subir, encontrar o buraco por onde eu entrei. A água tão fria que fazia com que eu rompesse as fibras dos meus músculos tentando subir. Todos os meu nervos se retorciam e meu corpo parecia se despedaçar na água negra. Eu lutei o quanto pude, mas a escuridão me engoliu aos poucos assim como engoli a água tão gelada que parecia dissolver meu estômago e parecia cravar facas por cada centímetro do meu corpo.

"Eu ouço Deus sussurrando seu nome todas as noites."

Perdi o senso de direção, não sabia mais se estava subindo ou descendo, se estava mais perto de me salvar ou morrer. Eu desisti. Fiz minhas pazes com tudo, com todos. Quando parei de lutar, só havia o silêncio. Eu orbitava na água fria entre gelo e cascalho. O ar fugia dos meus pulmões e fazia bolhas que saiam da minha boca e chegavam até a superfície explodindo em bolsas de vapor.

Quando meus pés tocaram o fundo do rio e se fundiram ao cascalho, eu me senti em casa. Não como depois de um dia de trabalho, mas como o pai que volta de uma longa viagem e encontra o aconchego do abraço dos filhos e da esposa, a redenção do sofá da sala e um banho quente para lavar a alma.

E era isso. Não tem filme da sua vida passando na sua cabeça, nem coral de anjos ou as portas do inferno se abrindo pra te buscar. Só o silêncio, o frio e a escuridão.

Então eu vi luz no fundo do rio. Eu a vi.

Cantando uma doce melodia mortal, estoica, efêmera. Seus cabelos dançavam pela água gelada como se sempre fossem livres da gravidade, mesmo lá em cima. Os seus olhos negros me fitavam, me seduziam, me devoravam como se não houvesse nada além deles. Um par de pupilas negras me chamava. Não era da boca que saia o som, nem nas cordas vocais ele era produzido. Eram os seus olhos que falavam comigo.

- Nunca confie no gelo fino. Eu posso te dar asas para te levar pra casa. Eu posso te aquecer com um banho e uma boa refeição. Posso te trazer pro lado da minha lareira. Não haverá mais dor, não haverá mais frio. Basta aceitar.

Ela chegou perto, pousou a mão no meu rosto e se curvou pra me beijar. Sua mão era quente e me trazia de volta lembranças mais remotas e doces. Eu quis ficar, eu soube que me sentiria em casa. Não haveria mais nada com o que me preocupar, não haveria mais dor nem dúvida. Mas quando os lábios dela já quase tocavam os meus, encontrei forças nas minhas pernas e empurrei o fundo do rio. Terra e cascalho fizeram uma névoa turva e lenta. Dançaram em volta de nós como um cinturão de asteroides na órbita de duas almas. Enquanto subia, lembro de ver mais uma vez seus olhos negros, olhando pra cima, disparando seu desespero contra mim.

À essa altura, eu já não sabia se meu fôlego tinha acabado, se eu já tinha tragado a água do rio pra dentro dos meus pulmões. Não sabia se estava vivo. Apenas subi e tentei encontrar uma saída. Quando toquei o gelo, não senti absolutamente nada na ponta dos meus dedos. Era no meu cotovelo que eu sentia o toque. Mas eu sentia meu sangue pulsando, podia ouvir meu coração bater e meu sangue correr pelas veias numa tentativa desesperada em manter o corpo quente. Mas já não havia mais oxigênio e meu sentidos já começavam a me falhar.

Foi quando eu encontrei o buraco por onde entrei. As mãos saíram primeiro e puxaram o resto do corpo com dificuldade enquanto as bordas do buraco no gelo também se rompiam como os tendões do meu corpo. Quando saí, finalmente ouvi algo, o primeiro som desde que cheguei ao fundo do rio: ar enchendo meus pulmões e água pingando ao meu redor. Saí do buraco e me atirei no gelo que, agora, parecia tão quente e aconchegante quanto uma cama.

Não tinha como continuar. Simplesmente desabei no gelo ao sair da água. Meu corpo inteiro parecia ter desistido. A única luta era para conseguir ar. E no gelo permaneci, respirando, com frio e destruído. O que sobrou de mim jazia de bruços no gelo que cobria o rio.

Me lembro de ver o céu a as estrelas despontarem na noite de Natal. Minha última lembrança antes de apagar. E eu fiz questão de me lembrar daquilo que é o mais importante no final das contas e até encontrei forças para dizer em voz alta:

"Eu ainda estou vivo."

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

II - Gelo Fino

A cada ano que passa, as luzes de Natal aparecem mais cedo. Os enfeites nas lojas de departamento, as promoções nas lojas dos shoppings, as ceias, os presentes, as árvores ornamentadas.

Uma vez ouvi que a Véspera de Natal é a noite do ano com o maior número de suicídios. Se você passar por ela, é bem provável que termine o ano vivo. E eu já vou rumo ao meu vigésimo segundo natal.

E assim como as luzes e adornos aparecem cada vez mais cedo, a cada ano meu nervosismo chega mais e mais cedo. Há dois anos, foi na primeira semana de Dezembro, ano passado, na última semana de Novembro. Nesse ano, o Natal já batia na minha porta no final de Outubro.

E não, eu não gosto do Natal. Assim como não gosto dos meus aniversários. Eles criam muita expectativa sobre datas que nunca mais serão como antes. Depois que eu cresci, natais e aniversários se tornaram uma fonte gigante de desapontamento. Prefiro não comemorar nenhum deles.

Acredito que é sábio dizer que isso é crescer e amadurecer: ver seus heróis se tornarem humanos, ver a química por trás da mágica, descobrir que é tudo um jogo de luzes, ilusão. O mascote do parque é só um anão dentro de uma fantasia idiota. O balcão do bar ficou mais interessante do que o Fliperama.

Me resta bater em retirada, esperar o Natal acabar, esperar o fim do ano e continuar acreditando que se eu conseguir manter o queixo acima da água por um pouco mais, afinal, chegarei em algum lugar onde possa sair da água enquanto eu luto contra parte de mim - e de tudo ao meu redor - que secretamente quer que eu afunde sem volta.

Sussurros de mares de inverno chamando meu nome enquanto eu durmo.

O Natal vai passar. E depois dele, o ano novo. E tenho pensado em fazer diferente. Vestir negro e beber mais e falar menos. Pensar menos. Tudo e qualquer coisa que eu possa fazer para colocar uma parede entre mim e essa besteira. É tudo o que eu posso fazer, sobreviver ao fim do ano

Até lá, eu espero que tenhamos uma jornada libertadora. Até lá, espero poder caminhar sobre gelo fino e rezar para qualquer deus que possa me ouvir para que ele não se quebre debaixo dos meus pés cansados.

E quando eu penso que ouvi um estalo ou um rangido, eu tento me apressar e tomar uma direção segura só para me lembrar do óbvio: você nunca sabe em que ponto o gelo é mais fino.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

I - Olhos no Chão

Então retornei à minhas longas caminhadas, tarde da noite. Sem fones de ouvido para trilhas sonoras da história de cada passo. Apenas o som da chuva caindo e dos meus pés se chocando com o pavimento molhado das calçadas e ruas.

E percebi que tenho a andar por anos sem rumo com os olhos no chão, sem nunca olhar para frente ou para os lados por medo de tropeçar, pelo receio de pisar na merda dos cachorros ou esbarrar num morador de rua dormindo debaixo da marquise de qualquer prédio. Sem olhar ninguém nos olhos por medo de verem através dos meus.

A passos largos e pesados, só me canso ao voltar pra casa. E deixei de ter problemas para dormir. Eu só desabo e apago como sob o efeito do mais potente anestésico. Acordo ainda mais cansado depois de ter pesadelos. Terrores noturnos que me atormentam desde que voltei.

Olhos no chão. O que mudou afinal?

Tudo. Nada.

Uma vez do outro lado, as coisas nunca mais são as mesmas. O cheiro do café tem sido mais forte. E tenho bebido menos desde então. Quando eu sirvo uma caneca - e não uma xícara - do café, o vapor sobe a meu rosto e minha visão fica mais embaçada. Enquanto eu pinço um pedaço de pano da camisa e limpo as lentes do óculos, ouço uma voz feminina dizer:

- Onde você vai tão cedo?

- A lugar algum - coloco meus óculos de volta e tento encontrar a dona da voz.

- Por um momento, pensei que pensasse em partir. - Eu ainda não encontrava a dona da voz suave e ponderada que ecoava pela cozinha.

- Desejaria poder. Mas não vejo como isso poderia me ajudar ou ajudar qualquer um.

- Eu poderia citar os motivos.

- Já ouvi todos eles. - Percebi que estava sozinho, falando sozinho, a voz vinha de dentro da minha cabeça - além do mais, faltam dois dias para o Natal, oito para o Ano Novo.

- E você ainda tenta se convencer que dessa vez vai ser diferente.

- Não. Eu tenho certeza.

- Mantenha seus olhos no chão rapaz. Você é só uma criança jogando dados. Fumando um maço por dia, comendo e dormindo mal. Andando sozinho de madrugada, esperando ser baleado por algum trombadinha.

- Esfaqueado. Tem mais romance nisso.

- Ou atropelado por um playboy bêbado com o carro do papai. Só pra parecer que você não teve intenção nenhuma em partir. E nem nisso tem tido sucesso.
- E não tenho. Não agora.

Me dirigi à porta da cozinha como se pudesse deixá-la pra trás, como se pudesse fazer com que essa voz ficasse mais baixa até desaparecer completamente simplesmente mudando de cômodo. Mas eu sei que não funcionaria.

- Eu ouço Deus sussurrando seu nome todas as noites. - dessa vez, a voz enviou um arrepio espinha abaixo. E eu parei na porta da cozinha de costas para onde acreditava que ela estava.

- E tem falado muito com ele?

- Ás vezes.

- E como é Sua voz?

- Efêmera. Eu não conseguiria explicar. E você não entenderia.

Virei para ela com a caneca de café na mão, o vapor subia e dançava até o teto e por um momento, era o fenômeno mais fantástico que eu já havia presenciado. Ascensão, eles dizem. Tomei um gole do café muito doce e pensei que talvez eu seja mesmo uma criança que anda olhando para os próprios pés por medo de tropeçar. E que talvez é isso que eu seja pelo resto de minha vida.

- É que você e todo o resto queriam não? Que eu simplesmente fosse embora e nunca mais voltasse? Para fazer uma protocolar visita ao meu funeral e lembrar que eu fui uma pessoa muito melhor do que realmente sou.

- Essas são palavras suas.

- Não, elas só escolheram meus lábios para ganhar forma. Mas ouça uma coisa: por mais que haja peso sobre as minhas costas e meu pescoço esteja sempre tenso, ainda sei como levantar o queixo e olhar pra frente. Eu sei que tem coisas me esperando lá na frente e nem você ou qualquer outro filho da puta pode me dizer que não.

- Eu só quero evitar que você passe por tudo de novo. Essas pessoas ao seu redor vão continuar te machucando de novo e de novo. Nada vai ficar melhor. E a cada fracasso, sou eu que vou te consolar, sou eu que terei que ouvir os seus mais íntimos desabafos.

- Não se preocupe. Ninguém vai ter que ouvi-los por muito tempo. A além disso, não me lembro de ter pedido por isso.

- Foi um pedido desesperado seu que escolheu meus lábios para ganharem vida.

- Eu continuarei tentando de qualquer forma. E próxima vez que Deus conversar contigo, diga que mandei um recado.

- E qual seria?

Deixei a cozinha com meu café e um dedo médio erguido.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Dois Mil e Quatorze

Well, eu fiz um post desse ano passado, então me senti na obrigação de interromper a série de 10 textos de fim de ano pra postar isso. 

Janeiro


"So this is continuous happiness
You know, I always
Imagined it something more
With the right drapes, the right paints
The right frames, this could really work
What a great day to spend indoors"

Fevereiro
 
"One day you will find someone who will love you like you deserve
But tonight I'm the only one left and I'm betting it's a fact that you will never learn
Once I sink my teeth, your skin's not so tough
I'll leave a tiny cut, there'll be a lot of blood
But once you wipe it up you will feel better about our entire situation"


Março


"So just hold me and tell me that I'm everything you need. Tell me that, that lonely little heart of yours that I've been dying for, ain't out of reach.
So if you're looking for some proof that there's a heart inside of me than lace your fingers between mine and you will see it start to leak. And I know you're not a crutch but I can hold you when I stand 'cause I am living for touch but I would die to be your man."



 Abril





"I reserve my right to feel uncomfortable reserve my right to be afraid.
I make mistakes and I am humbled every step of the way.
I want to be a better person. I wanna know the master plan.
Cast your stones, cast your judgement, you don't make me who I am."


Maio

"Because I wanted to tell you
Because I thought you should know
Because I thought it might scare you
To see me under the ice
Make you remember you cared for me
What would you do if I died?
Would you fly out for my funeral?
Get too drunk at my wake?
Would you make a scene then?
Climb in and try to resuscitate me?"
Junho



"You're just trying to read
but i'm always standing in your light
You're just trying to sleep
but i always wake you up to apologize
I'm sorry i don't laugh at the right times."
Julho



"Amanheceu mais uma vez
É hora de acordar para vencer
E Ter o que falar
Alguém para mandar, uma vida pra ordenar
Poder acumular e ai então viver
Viver e prosperar, mais nada a pensar
Me myself and I, e assim permanecer
Credicard ,status quo, é tudo que penso ser
Ilusão é questionar"


Agosto



"Don't let all the reasons why you're here
Become the same reasons why you don't stay
I promise you
That I will take my time
I promise you
That I won't waste your time "


Setembro



"I pictured our apartment in the middle of Brooklyn and I pictured the bedroom and how the floor's still a mess. I pictured your office in mid-town Manhattan. I pictured you walking in. I bet you're late again, but your make-up's straight and you're smiling. It's just like it's always been."

Outubro



"Used to call you crook, called you a bandit
There ain't no other god damn reason why
my heart, it would go missing
For so many months so I was wishing that you
That you would stop pretending
Remember all those countless nights
When I told you I loved you
And to never forget it
Oh just forget it"

Novembro




"There’s no shortage of new faces
And so many places I’ve never been
But the one place I keep in my head
Is where the sun shines through your white curtains
And the breeze that lifts them off the wall
And gently wakes me to the world
To an overwhelming familiar smell of home
But I can’t be there for long"


Dezembro




"Now I'm just like the pictures that you take
I'm nothing but something that once was
Like colors that fade away in the sunlight
They're nothing special like they used to be
They're gone and they're never coming back
I'm gone and I'm never coming back"

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Protocolar pergunta

A felicidade não é uma escolha pai. A gente não se força a estar ou ser feliz.

Mas a tristeza é.

Pode não ser no começo, quando ela se instala de maneira sorrateira nos nossos corações, nas nossas vidas. Porém ela só permanece conosco enquanto permitirmos, enquanto negligenciarmos a nós mesmos.

O mundo inteiro quer que a gente desista. E se tem uma coisa que eu aprendi nos últimos 45 dias é que eu não posso me obrigar a sorrir e estar contente o tempo todo, nem mesmo que eu fure os cantos dos lábios com um grampeador de papel, mesmo que eu finja que tudo está bem. Mas também decidi que não quero mais ser a pessoa que eu fui. Eu me recuso a passar outro dia lamentando o que não posso consertar, me torturando com ditas verdades a respeito de mim.

E não vou terminar mais um ano desejando que o outro não comece. Eu me recuso a permanecer triste. Eu me nego a aceitar essa imposição de mim mesmo. E não vou voltar atrás, nem agora, nem nunca.

Se quer saber se estou bem, te garanto que já vi dias melhores, mas dessa vez eu estou lutando contra o monstro que alimentei por todos esses anos. Pode até ser que eu não vença, mas certamente não vou cair tão fácil.

E no final, eu sei que tive que passar por todas as coisas que tenho passado nesses últimos anos.

E tenho orgulho de quem eu me tornei nesses últimos tempos.

Então se eu não estiver bem, tenha certeza que em breve estarei.

Eu só precisava de espaço pra crescer. Ainda estou com raiva, mentiria se dissesse que não, mas a cada dia que passa, me vejo lidando melhor com ela.

E se é algo que eu tenho que carregar comigo pra sempre, farei de todos para que possamos ser amigos enquanto dividimos nosso quarto e sala.


sábado, 6 de dezembro de 2014

Nota

Essa linha amarela não pode me dividir. Não mais.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

La Mancha

Hoje eu acordei e finalmente entendi.

Que meu alazão não passava de um velho pangaré. Minha armadura, um remendo de madeira e latão. Minha lança era apenas uma vara de bambu  Meu escudeiro apenas um ladrão. Minha amada era apenas a miragem. E toda aventura era apenas a paisagem.

Mas também entendi que os mais nobres cavalariços em suas nobres montarias com estandartes, espadas e armaduras bem polidas. Nobres de todo canto vestindo toda cor, carregando todo o título, bradando todo louvor de quem pode ser o que eu sempre quis. Todos que riram de mim, de fato, riram de si.

Hoje eu acordei e finalmente entendi.

Queimei todos os meus romances de cavalaria, não preciso deles para onde vou.

Eu não preciso ser o que eles querem que eu seja. Basta passar a enxergar com os meus próprios olhos e entender. Virão dias de tempo bom e também tempestades avassaladoras. Haverão amigos e inimigos, amores e desencantos. Haverão também peças de teatro e sonhos com a terra de cafés da manhã infinitos.

Hoje eu acordei e finalmente entendi.

Que o tempo todo fui eu o autor do próprio romance que rasurei em tragédia. Mas sei que virão dias melhores. Sei que vou estar vivo pra ver. E vi um futuro onde não era o cavaleiro que antes sonhara, mas era contente por quem me tornei tentando ser. Me vi como alguém que muda alguma coisa. E sim, existem os heróis.

Também vi tempos difíceis. Vi noites sem sono e dias longos e duros. Vi chuvas que duraram dias, mares turbulentos no inverno e o cheiro de alguma coisa queimando. Eu vi amores em quebranto e nos espelhos me acabando, definhando, morrendo aos poucos.

Mas pela última vez, tentei me lembrar o que hoje finalmente entendi:

Mesmo que nada esteja bem, esses dragões são só moinhos de vento.

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"O ser humano se transforma de acordo com o que pensa. Somos o fruto de nossas obras" (Miguel de Cervantes)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A Ponta Afiada

*O texto original foi apagado para poupar o autor do riso de quem o acompanha. E também para evitar o deleite de quem se interessa pela sua miséria. Faltam vinte e nove dias para o ano acabar e nada disso vai o ajudar a chegar a lugar algum. Estar de frente com a ponta afiada quando o seu mundo colidir não é uma opção. Transformar isso num teatro, num espetáculo lamentável para carniceiros é uma escolha que eu não permito que ele tome.

Atenciosamente,
Alguém aqui que ainda se importa.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Sweet and Sour

Parece que a vida resolveu zombar de mim - de novo. 





Hoje

Hoje, pela primeira vez desde que cheguei, não choveu. E toda água que já caiu serviu para lavar toda a labuta que que fez de mim morada, como a poeira sobre um pedaço de arte esquecido no átrio de um antigo palacete.
.
Hoje, pela primeira vez, dormi sem ter pesadelos. Não me afoguei em águas escuras, não me atirei de grande altura, não senti a força do punho da auto-consciência esmagar meus pensamentos e desfigurar minha personalidade.

Hoje, pela primeira vez, senti fome. E quis um banquete para celebrar tudo pelo o que eu passei. Para o meu deleite, Eu ainda seria eu mesmo sem tantos talhos sobre a carne e tantas trincas nos meus ossos, mas seria ainda mais tedioso.

Hoje, pela primeira vez, quis voltar. E enfrentar os demônios que me afastaram. Não quis esquecer nada, não quis fugir. Cansei de correr de tudo.

Hoje, pela primeira vez em muito tempo, quis viver. Quis sair dessa caverna, deixar o sol tocar meu rosto, colocar os cabelos ao vento, tomar um banho e me sentir purificado.

Pois é bem verdade que me disseram que todos já desistiram. Mas eu ainda estou aqui. E sei que, cedo ou tarde, algum caminho eu vou encontrar - ou será que ele vai me achar primeiro? E quando isso acontecer, eu vou ter muito o que celebrar - bem modestamente.

Mas não, eu não venci. Existem guerras impossíveis de vencer, essa é uma delas. Mas continuar lutando é vital, é o único recurso que temos. E eu me recuso a simplesmente afundar.

Por hoje, não quero ser salvo. Quero que estejam lá quando eu me salvar.

Por hoje, vou nadar a braçadas até a costa. Não quero boias nem botes salva vidas. Não quero uma corda para escalar nem uma saída de emergência. Só quero encontrar os meus na praia orgulhosos de mim. Só quero provar pra mim mesmo que sou mais forte que as ondas que se quebram. E sim, vou engolir um pouco d'água, mas por hoje, não vou parar enquanto não chegar aonde quero.

Hoje, não vou deixar pra lá, não vou deixar para depois. Hoje, vou me deixar viver.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Coral dos Sinos

O sol já subira alto no leste derramando sua luz amarelada sobre toda a cidade como uma cascata de luz e calor. Dentro dos muros, carroças puxadas por cavalos, soldados, homens e mulheres comuns já andavam lá e cá com seus afazeres. Crianças pobres brincavam nos becos e se banhavam nas margens do rio. Já no alto daquela manhã de Julho os sinos da catedral começaram a soar. Em uníssono, todos os sinos da cidade cantaram a fúnebre sinfonia de uma nota só que se espalhava por entre becos e avenidas, palacetes e prostíbulos, mercados e estábulos.

Todos sabiam que algo tinha acontecido, pairava no ar da cidade uma tensão tão pesada que podia-se tocá-la. As crianças corriam até o púlpito em frente ao pátio da Fortaleza curiosas para descobrir o que acontecia. Os mais velhos já se precipitavam em descobrir o que acontecia. A maioria tinha pessimismo nos olhos e nas palavras, a maioria era novo demais na última vez em que todos os sinos tocaram ao mesmo tempo. Soldados viam daqui e dali, como formigas operárias, meio organizados, meio confusos.

Um navio mercante atracava nas margens do rio quando os sinos começaram a tocar. Um homem atirou um saco de moedas ao capitão antes de atingir o assoalho de madeira do dique e empreitar rumo à fortaleza. Vestia negro dos pés à cabeça e portava aço da melhor qualidade. Haviam duas milhas entre o porto e à fortaleza que ele cobriria a pé. Grande parte do caminho, uma íngreme subida entre vielas de terra batidas e ruas de paralelepípedos de barro.

Resolveu parar numa taverna de esquina quase na metade do caminho. Uma pocilga que cheirava a madeira podre e cerveja velha, escura e úmida. Um balcão velho de madeira de lei, meia dúzia de mesas e cadeiras num espaço tão pequeno que não conseguiu imaginar o quanto era infernal quando lotado nas noites quentes de verão.

O viajante pediu uma cerveja à moça atrás do balcão. Uma jovem pálida e raquítica que parecia que iria desmontar-se se um vento soprasse mais forte. Um lenço amarrado à cabeça deixara revelar um pouco do cabelo loiro que se derramava ao lado das orelhas. Bebeu a cerveja satisfeito e ouviu a conversa de outros dois homens que bebiam na outra extremidade do balcão.

- Soaram os sinos por toda a manhã. Boas notícias não podem ser - disse um dos homens, gordo como um porco, já de escassos cabelos grisalhos e a pele ainda mais pálida quanto a da garota atrás do balcão, tinha o rosto avermelhado pelo sol e lhe nascia uma fraca barba grisalha pelo rosto. Trajava vestes grosseiras de couro curtido e trapos remendados.

- Não sejas tolo! Provavelmente algum nobre deve estar se casando com alguma cadela esnobe. Ou estão recebendo a visita de um Lorde de Sei-Lá-o-Quê vindo de Sabe-Deus-Onde. - O segundo homem era carrancudo, magro, careca. Falava como se fizesse esforço para tal. Tinha um rosto comprido e estreito e seus olhos denunciavam seu jeito falastrão. Era tão maltrapilho quanto o outro homem.

- Eu nunca ouvi tantos sinos soando em casamento. Os noivos devem certamente estar surdos à essa altura. Provavelmente, foi declarada uma guerra. Ou vão executar algum prisioneiro no pátio da Fortaleza - Continuou o primeiro homem sorrindo - nesse caso, adianto que deveríamos correr para não perder o espetáculo,

- Já vi demasiadas cabeças rolarem meu amigo, não tem espetáculo algum nisso. E se todas as vezes que fossem cortar a cabeça de algum desgraçado em frente ao púlpito soassem tantos sinos, não seriam só os noivos a ficarem surdos, nós também estaríamos. - o homem alto e carrancudo arquejou e tomou um gole do seu vinho. Engoliu com dificuldade e concluiu - certamente o rei recebe visitas.

- Sim meu amigo, os sinos dobram pela visita do rei - intrometeu-se o estranho viajante que tomava cerveja no lado oposto do balcão. Ambos os homens olharam para ele, depois olharam-se entre si, tentando reconhecer o homem que metia-se na conversa, mas a figura não lhes era familiar.

- Só há uma visita que faça soar tantos sinos nessa cidade, uma que em muitos anos deixou de vir para Vossa Majestade, o Rei. - o homem se levantara e agora caminhava lentamente na direção dos homens da beirada do balcão. Era como uma sombra de tão negras que eram suas vestes. Um capuz cobria-lhe a cabeça e uma longa manta chegava quase que aos seus pés. - Asas negras voaram sobre o castelo essa. Uma velha amiga de nosso rei - e de todos nós, se me permitem - prestou a ele uma visita que um dia ainda prestará a todos nós. Se soam todos sinos, só pode significar uma coisa meus amigos:

O Rei Está Morto.

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"Para nós e nossa tragédia, pedimos vossa audiência e suplicamos clemência."

- Isso é um prólogo ou a inscrição de um anel?
- Pelo menos foi curto.
- Curto como o amor da mulher. 


(Willian Shakespeare, 1599 "Hamlet", Ato III, Cena II)

sábado, 22 de novembro de 2014

Carta do Exílio

Três dias desde que toquei os pés no chão dessa cidade e já parece que se passaram alguns meses. É bem cansativo e ao mesmo tempo tedioso estar aqui. É claro que é bom ver minha mãe, aconchegar-me nos seus abraços ternos e suas palavras amigas. Eu sempre sinto falta dela quando estou longe.

Tenho passado o dia todo lendo. E conversando com minha mãe. Fazendo mais o primeiro do que o segundo, é verdade. É irônico saber que esse é o único lugar em que me sinto em casa, mas o único que sei que não posso morar.

Não tenho tido tanto saco para música como normalmente tenho. Também tenho pensado em começar a gastar dinheiro. Há pouco tempo, havia tantas coisas que eu queria comprar que vivia a lamentar por não ter dinheiro para tal. Hoje o tenho e não sinto empolgação nenhuma em comprar qualquer coisa.

Ao pensar nisso que fiz uma constatação impressionante: estou me tornando chato.

Eu sei que chato sempre fui, mas agora toma um sentido completamente diferente. Sempre fui inconveniente, irritante e teimoso demais. Mas estou me tornando rabugento, introspectivo, conformista - tenho medo dessa palavra. Não estou vendo graça em coisas que antes me faziam rir, também não me empolgo tanto com coisas que antes me moviam. Nem sequer assisti o último jogo do meu time. Então sabemos que tem algo errado. Também não tenho tido saco para as pessoas, por isso tenho evitado falar com todas elas.

Estou tentando me acostumar com meus óculos e, por enquanto, tenho me sentido extremamente desconfortável com ou sem eles. Quando os coloco, acabo por suar na testa e manchar as lentes, o peso da armação sobre o nariz também incomoda. Quando os retiro, continuo enxergando uma sombra de onde outrora esteve a armação na minha visão periférica. Fora o fato de que sempre me esqueço e acabo enfiando os dedos nas lentes quando tento coçar os olhos.

Tenho pensado no futuro. Tenho tentado planejar algumas coisas a curto e a médio prazo. Me surpreendi quando percebi que já tinha pelo menos dois planos para colocar em prática já em Janeiro. Tento me ver dirigindo e acho engraçado. Consigo me ver estudando e me embrulha o estômago. Ás vezes me vejo deixando a cidade e até mesmo o país. Acredito que em anos foi a primeira coisa que eu quis com força o bastante para tentar.

E tem coisas que continuam como há uma ou duas semanas: tenho que me lembrar de comer e tomar banho. Também me policio o tempo todo com os cigarros que eu passei a fumar em quantidade muito maior. E aquele vazio que eu sinto ainda está aqui, tão devastador quanto antes. Mas percebi que se você não olhar para a escuridão por muito tempo, não vai ter como sua mente lhe pregar peças. Se todo mundo consegue ignorar isso, talvez eu também consiga, tem funcionado por enquanto. Eu acho.

Então constatei outra coisa: queria ter alguém com quem conversar.

Atualmente, não tem ninguém disposto a ouvir sobre as coisas que eu tenho a dizer. Nem mesmo minha mãe. Nem mesmo meus melhores amigos, mas eu não culpo ninguém. Todo mundo fez o que pode por mim, já tá na hora de começar a crescer aprender a lidar com os próprios demônios.

Então não vejo mais tanto motivo para falar sobre isso, dramatizar e romantizar tudo aquilo que eu sinto. Eu já sei o que é que me incomoda. Está lá, não vai mudar. O jeito é lidar com isso e incomodar o mínimo possível as outras pessoas com essas coisas pequenas. E não me incomodar com as coisas delas, é o que todo mundo faz. Talvez apostar no óbvio seja o mais correto.

E uma vez disseram que as coisas pequenas eram tudo o que importava.

Mas agora acho que eu deveria parar de usar filmes e músicas parâmetro para entender e pensar a vida. A verdade é que, na realidade, tudo é muito mais prático - e menos bonito.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Ontem à Noite

Sentei-me na porta da tua casa já de madrugada. Acendi um cigarro e esperei.

Eu quase poderia tocar o tenso silêncio da noite. Vi corujas atravessarem em vôos rasantes a praça. Vi um carro ou outro descer a rua deserta, viaturas da polícia, um som alto tocando numa festa ao longe, o pesado ar de uma noite de (quase) verão. Mesmo assim, senti frio. Um frio que cortava os olhos e rasgava os lábios. Um frio tão agudo que acreditei que poderia perder uma orelha e alguns dedos se continuasse ali por muito tempo. Quis fazer uma fogueira no cenário imutável enquanto a cidade dormia profundamente.

Então eu vi.

Vi o sol nascer e se por várias vezes, o tempo passar. Vi manhãs de Janeiro chegando e o sol forte das primeiras horas do dia tingir de dourado as árvores, as casas, as ruas. Eu te vi acordar e sair cedo. Sozinha.
Você saiu e não me notou na porta da sua casa. Seguiu com passos firmes e determinados e subiu a rua como quem não pode ser detido por nada nesse mundo.

E vi além disso. Vi alguém que poderia entregar tudo aquilo que eu não posso, tudo aquilo que eu não pude. Mais belo que eu, mais forte que eu. Alguém que provavelmente dirige o seu próprio carro e já estaria formando-se então. Alguém que tenha mais dinheiro que eu ou que pelo menos sabe administrá-lo melhor. Alguém que saiba se portar num restaurante esnobe e que não faça as piadas estúpidas que eu insisto em fazer. Vi alguém que não tomava seu tempo e sua vitalidade com as próprias disputas pessoais, mas sim alguém que ajudava você com tudo aquilo que podia. Alguém que não lhe fosse um fardo pesado demais.

Voltei pra madrugada na porta da sua casa quando ouvi o portão se abrir. Não, eu não entrei na sua casa, não apertei a campainha. Senti que não devia como alguém impuro que prefere não macular um templo sagrado com a própria labuta.

Passei a viagem pensando nisso. Passei os últimos 17 dias pensando nisso. Passei o último ano pensando nisso.

Finalmente cheguei em casa pela manhã, mas não consegui sentir-me melhor.

Pois eu vi sua vida sem mim. E era incrível.

domingo, 16 de novembro de 2014

A Tempestade

Em nenhum dos relatos, artigos, livros, contos ou depoimentos sobre suicídio alguém fala sobre o mórbido e peculiar ritual de preparação que ocorre logo antes. Era o que ele pensava enquanto fitava a lâmina de barbear debaixo do chuveiro. A água quente caia sobre as costas e o vapor umedecia os azulejos branco azulados e o espelho do banheiro enquanto ele questionava se deveria estar com pelos na virilha quando encontrassem seu corpo.

Já havia cortado o cabelo há alguns dias, o que considerava importante. Fez questão de escolher a data com cautela: uma tarde de sábado quando seu pai estivesse trabalhando e sua irmã mais nova fora da cidade. Ele não queria que seu pai impedisse, muito menos que sua irmãzinha encontrasse o corpo no pátio do prédio.

Saiu do banho, vestiu-se com o melhor que tinha, como se fosse para um grande festa ou evento importante. E mesmo assim, o melhor que tinha no seu vestuário não chegava a ser formal ou elegante. Apanhou uma lata de Pringles na prateleira do quarto, abriu e retirou um maço de folhas dobradas e enroladas com um elástico de prender cabelos. Eram 6 cartas destinadas a diferentes pessoas. Enfiou todas dentro de um saquinho plástico transparente. Não queria que elas ficassem sujas ou respingadas pela sopa de sangue, miolos, tripas e ossos moídos. Enfiou o saquinho com as cartas no bolso da camisa com certo esforço pois elas mal cabiam dentro e ainda deixaram a camisa pesada. Antes de sair, também apanhou uma lanterna no armário do quarto, um velho presente da mãe para lidar com seu medo do escuro. Por muitos anos, dormiu com ela do lado do travesseiro até que aprendeu a enfrentar seu medo de escuridão.

Deixou o apartamento que cheirava a cigarros baratos e se dirigiu ao corredor que cheirava a água sanitária. Apertou o botão do elevador como de costume, mas até isso foi diferente. Apertou o botão para subir, e não para descer e o pressionou uma vez só e não várias seguidas como normalmente fazia - algo que quase todos nós fazemos. Teve paciência. Sentiu prazer na espera. Observou enquanto os números no visor do elevador indicavam o andar em que se encontrava o elevador, do térreo ao sexto.

A porta se abriu, o elevador estava vazio para seu alívio. Entrou, apertou o número 14, o último andar do edifício. Mais uma vez, pressionou apenas uma vez e ficou atento aos números vermelhos do visor que subiam do seis até o quatorze enquanto o elevador fazia sua subida fúnebre. Pensou em todos os acontecimentos que o levaram até ali. Em todos os motivos que teve para entrar naquele elevador naquela tarde de sábado. De cabelos cortados, bem vestido e perfumado, pronto para um banquete no inferno.

Chegou ao topo e engoliu em seco. Desceu do elevador e passou pela pesada porta corta fogo que levava às escadas. Subiu alguns metros na escuridão. Para cima, não havia luz alguma, era um breu total. Ele sabia disso, por isso fez questão de levar uma lanterna. Acendeu a lanterna antes de encarar o primeiro lance de escadas que, diferente dos andares inferiores, não era feita de granito e as paredes não eram pintadas em tons pastel de qualquer coisa. Ali, a escada era de cimento cru e grotesco assim como as paredes como se fosse parte inacabada da obra. Subiu o primeiro lance sentindo os degraus se esfarelando sob seus pés, não havia corrimão e os degraus eram mais altos do que o de costume. Lembrou-se do medo de escuro que havia superado, por um momento hesitou e deixou-se atormentar pelos terrores noturnos que o ameaçavam no passado. As formas macabras que se formavam no escuro do quarto como manchas de ketchup numa camisa branca que nos lembrava de qualquer coisa. Como figuras de cachorros e girafas que insistimos em enxergar nas nuvens. Tentou ignorar a hesitação, seu coração palpitava, mas teve coragem de prosseguir, de ir até o fim.

Podia ouvir o barulhento poço do elevador que poderia ser acessado por uma porta que ficava logo após o segundo lance de escadas. Quando passou pelo poço, percebeu que o barulho do maquinário era realmente infernal como centenas de motores elétricos em uníssono combinados com milhares de garfos arranhando o fundo de panelas de alumínio.

Quando subiu o terceiro lance e deixou o som ensurdecedor dos elevadores para trás, ouviu outro som que vinha de cima, do último lance. O som de movimentos sorrateiros nas sombras seguidos por agudos grunhidos irreconhecíveis. Parou e ficou aterrizado pelo que imaginou que o aguardasse depois do último lance de escadas: ratos, dezenas deles.

Depois que superou o medo de escuro, os ratos se tornaram seu maior pavor. Na verdade, o segundo maior pavor. O primeiro era - de longe - ser deixado sozinho com um bebê. Preferia ser comido por centenas de roedores demoníacos dos esgotos do inferno do que ter que ficar 5 minutos com o filho pequeno de alguém. Não porque não gostasse de crianças, mas porque não sabia como agir perto delas. Elas o faziam sentir-se vulnerável e desajustado, e esse era o sentimento que ele mais odiava.

Pensou, de novo, no medo do escuro, no som ensurdecedor do elevador e em todos os passos que o levaram até ali: em poucos momentos, estaria morto, estirado no pátio do prédio, os seus restos espalhados numa mistura indigesta de entranhas e ossos quebrados. Não seriam uma meia dúzia de roedores que o atrapalhariam. Mais uma vez, estufou o peito, sentiu seu sangue gelado sendo bombeado cada vez com mais força e avançou ao último lance de degraus. E não foram ratos que o surpreenderam.

Luz. Um feixe de luz vinha do topo das escadas, uma fresta da porta aberta que dava acesso ao terraço. Precipitou-se com cautela alguns degraus acima. Pela primeira vez, pensou em desistir de fato. Até esqueceu a possibilidade dos ratos estarem passando pelos seus pés. Alguém havia descoberto seus planos. Alguém enxergou através das lacunas e o esperava depois daquela porta para tentar convencê-lo a desistir. Por um momento, quis que isso fosse verdade, mas foi tomado pelo pensamento de que, provavelmente, algum dos funcionários do condomínio estivesse no terraço consertando sei-lá-o-quê da TV a cabo. Por fim, pensou que ele mesmo tivesse esquecido a porta aberta quando esteve lá na madrugada anterior.

Acreditou na última hipótese e continuou a subida - que agora já parecia uma escalada de tão exausto que ele estava. Não pela subida. Não, não era um cansaço físico, não eram as pernas que doíam, nem as costas ou as juntas. Era a cabeça que doía, cada vez mais perto do fim, mais cruel parecia o seu destino final. O vento frio passava pela fresta da porta de metal branca e parcialmente enferrujada, judiada pelo tempo e pelas intempéries. Precisou de força para afastar a pesada porta e chegar a um mezanino. A luz invadiu as escadas e afugentou os ratos escada abaixo. O vento frio da tarde de outono cortou-lhe o rosto como uma navalha. Lembrou-se da primeira vez que fez a própria barba e apareceu na aula com o rosto todo cortado. Seu pai não lhe ajudou, teve que aprender sozinho. Lembrou do constrangimento com os risos dos amigos de classe ao verem as pequenas fitas microporosas sobre os cortes no seu rosto. Lembrou que não tinha feito a barba. Era tarde demais e também era irrelevante.

O parapeito tinha um chão de cascalho grosso e dava de frente para a entrada do edifício. Era uma pequena faixa de menos de 2 metros. De lá podia ver boa parte dos projetos: um conjunto habitacional construído no final da década de oitenta, sete torres acinzentadas construídas próximas ao antigo centro da cidade. Ele morava na torre 7, a mais distante delas, aquela com os apartamentos menos conservados e mais baratos. A mais distante com as piores vagas de estacionamento. Podia ver também, ao longe, os bairros vizinhos, o centro velho, os trens do metrô passando lotados de gente apressada e os arranha céus que pareciam cutucar as nuvens naquela tarde nublada de outono. À sua esquerda, havia uma escada vertical de metal enferrujada e há muito sem pintura que levava até o topo do edifício.

Pela primeira vez, sentiu medo: durante o dia, a torre parecia muito mais alta. Mas enquanto subia a escada, sentiu uma certa paz de espírito. O vento forte e gelado batendo contra seu corpo, lá embaixo, podia ver pessoas e carros e motocicletas indo e vindo, crianças brincando nos parquinhos, senhoras fofocando nos bancos, gente de todo tipo. E todos muito, muito pequenos. De lá, mais pareciam formigas. Ele sentiu-se no topo do mundo.

Chegou no final da escada para o terraço do edifício. O chão úmido de cimento tão grotesco quanto o das escadas do poço do elevador. De lá, podia-se ver ainda mais da cidade. Deslumbrou-se com os horizontes cinzentos e pode ver tudo o que a luz do sol entre nuvens podia tocar. A cidade era uma mancha cinza que se estendia além de tudo o que ele conseguia enxergar em qualquer uma das direções. Viu o rio e a reserva florestal, a grande Igreja de São Pedro, pontes e viadutos, mais trens do metrô e edifícios tão altos que pareciam abrir caminho entre os céus cinzentos. Havia um para-raio com uma luz vermelha que piscava intermitentemente no terraço. E viu também, uma garota no terraço sentada, de costas para ele.

Ela se virou para ele naquele momento. Ele deu um passo para trás e quase caiu. Ficou totalmente sem reação. Parecia ser fuzilado pelo olhar da garota. Ela tinha os cabelos castanhos mais claros que os dele. O rosto pálido. O modo que ela se vestia remetia a uma outra época, como se ela tivesse saído de uma máquina do tempo e aterrizado ali, no terraço do seu prédio. Ele pode ver relâmpagos nos olhos acinzentados por trás dos óculos de armação grande da moça que não era muito mais velha que ele.

- O que faz aqui? - Ela não parecia surpresa ou assustada com sua presença, mas sim, irritada.

- Eu? Eu... o que você faz aqui? - Na hora, percebeu que foi uma resposta bem estúpida.

Ela moveu o corpo na direção dele, revelando que, no colo, pairava um caderno. Ele se aproximou e pode ver que ela desenhava a vista da cidade. A reserva, a igreja, o rio, os arranha céus, o metrô. Mas era diferente. Ele não saberia explicar. Era como se tudo fosse desolado e sem fundo. Um emaranhado e frio caos urbano cravado em grafite cinza na página branca do caderno.

- Nossa! Você é realmente muito boa.

- É o que as pessoas dizem, mas não posso concordar. - ela sorriu, meio que por sarcasmo, mas ele se sentiu melhor.

- Então, eu venho aqui para desenhar, venho por um pouco de paz. É o único lugar onde eu consigo ter um pouco de calma. O que te traz aqui?

A tranquilidade dele se foi por completo. Travou, não soube o que responder.

- Você veio para pular daqui não é? - Ela disse como se zombasse de suas intenções.

- Não, eu... só queria ver como tudo era daqui de cima.

Foi uma desculpa idiota, percebeu logo de cara. Mas ela pareceu ter engolido. Percebeu que havia certa ingenuidade na moça. Uma quase pureza rara de se encontrar nesses dias.

- Então trate de não perder nenhum detalhe.

Ela apontou como se quisesse que ele se sentasse junto a ela. Ele engoliu em seco quando percebeu que ela sentava-se bem na beirada do edifício, com as pernas penduradas. Teve uma vertigem filha da puta quando se aproximou da beirada e viu o tamanho da queda. Sentiu-se mal quando percebeu que jamais teria coragem de encarar a morte nos olhos atirando-se de cima daquele edifício. Sentou-se relutante, falhou ao tentar fingir que não estava assustado.

- Você parece bem perturbado.

- Eu tenho medo de alltura.

- Sim, eu percebi. Mas já parecia atormentado desde quando entrou no elevador.

A coluna dele congelou. Na verdade, sentiu gelar-se todo da nuca até os pelos da bunda.

- Você estava me seguindo?

- Não, você estava? - De novo aquele sorriso zombeteiro. Ele pensou numa resposta, pensou em levantar e sair dali. Pensou até mesmo em se atirar, bem do lado da garota. Pensou que havia algo nela que o fazia querer ficar. Sentiu sua mente voltar por as coisas no lugar: quem era ela? O que fazia ali de fato? Por quê nunca a viu antes? O que ela quis dizer com ele estar atormentado desde o elevador? Eram perguntas demais e antes de qualquer resposta, já havia mais o que confundi-lo.

Uma coruja pousou bem ao lado da garota. Com as penas acinzentadas como os olhos da garota e olhos de um profundo amarelo que pareciam sugar a sua alma. Mais uma vez, ela não parecia assustada. Era como se ela fosse inabalável, estoica. Nada poderia jamais tirar aquele ar de superioridade de seu rosto, nem mesmo o fim do mundo poderia tirar aquele perfeito sorriso zombeteiro de sua cara. Ele a conhecera agora e já a amava mais do que tudo e a odiava ainda mais.

Ela estendeu a mão e pareceu acariciar a coruja que abaixou a cabeça como se prestasse reverência à garota. Só então ele entendeu o quão surreal havia se tornado o cenário.

- Esse é Cognito.

Ela dizia sem nem ao menos olhar para ele. Continuava a acariciar a coruja vassala A garota tinha uma coruja de estimação. Ele teve de novo aquela sensação que tinha com os bebês, a vulnerabilidade. Não soube exatamente porquê, mas retirou do bolso as cartas amassadas enfiadas dentro do saco plástico e fitou-as por um momento. Pela primeira vez, refletiu que não queria que sua vida acabasse daquela maneira. Havia desistido do suicídio por causa de uma garota com uma coruja e alguns desenhos. Percebeu o quão vulneráveis eram suas convicções, o quão fraco era seu espírito. Sentiu seu coração palpitar de novo, suas pernas formigaram. A altura o assustava, queria sair dali.

- Há tanta raiva em você, tanto rancor. O que é que odeia tanto, afinal?

- Eu não sei - ele estava completamente aberto agora, não viu motivos para esconder qualquer coisa - eu nem sei ao certo o que me entristece.

- Você não está aqui por acaso.

Foi quando ele percebeu: não havia mais ninguém lá embaixo. Nem as crianças brincando, nem os carros, nem os trens do metrô. Nem os pássaros voando no final da tarde. Ninguém, a cidade padecia em silêncio. Por um momento, sentiu que eram só eles três no mundo: ele, a garota e a coruja. E agora entendia que era exatamente como no desenho dela, o cenário desolador da decadência urbana, como se a cidade fosse um reino fantasma em lugar nenhum. Ele podia ver água abaixo deles, como se todas as ruas e casas tivessem sindo inundadas por um mar negro. Abaixo dele, o pátio do prédio agora era tomado por águas que se quebravam contra o edifício no segundo andar.

- Trate de não perder nenhum detalhe.

- Eu não entendo... - ele estava realmente assustado. Sentiu-se como se fosse engolido pelo oceano cinza da cidade. A coruja bateu asas e voou para longe. O vento soprava ainda mais forte e mais frio.

- Você deve voltar. E buscar suas próprias respostas. Agora você sabe que esse é o destino que queria tomar. E também sabe que não é mais esse o lugar para onde quer ir. Mas não pode mais ficar aqui. Não é esse o seu lugar.

Ele não queria ir, mas nada disse. Soube que nada adiantaria. Ela pediu que se sentasse com ela na beirada do edifício onde mostrou seu desenho da cidade e sua coruja de estimação, mas agora queria que ele fosse embora e voltasse para a mesma vida da qual ele queria uma saída de emergência que não tinha coragem de tomar. Teria que enfrentar a nado os mares negros que o aguardavam lá embaixo.

- Tem uma tempestade vindo. - ela disse e, pela primeira vez, mostrou alguma preocupação.

Ele olhou ao longe e pode ver um paredão de nuvens em centenas de tons de cinza. Do mais escuro até o mais claro passando até por alguns tons de castanho quando os relâmpagos iluminavam a tormenta. Ele viu a luz dos relâmpagos refletida nos olhos dela.

- Nós temos que ir.

Ele concordou com a cabeça e se dirigiu a escada. Desistiu de tentar entender qualquer coisa que estava acontecendo, quis acreditar que estava sonhando. Desceu as escadas de metal em direção ao parapeito e a porta de metal enferrujada. Desceu sem se preocupar com a altura da queda. O vento soprando cada vez mais forte.

Quando seus pés tocaram o cascalho, ele olhou pra cima e a viu lá, na beirada da escada de metal. O vento desgrenhava seus cabelos. Lá de cima, ela parecia ainda mais superior, o inatingível, o inabalável. Estoica como ele pensou. Ela gritou:

- Alguém precisava te encontrar. Agora aí está você.

- Mas eu não sei para onde ir - ele gritou de volta, quase em desespero.

- Então todos os caminhos são uma possibilidade. E não vai precisar de um bússola. - Pela última vez, ele viu aquele sorriso que zombava dele

Atravessou a porta de metal e esperou seus olhos se acostumarem com a escuridão. O que não aconteceu. O escuro o tragou e ele se sentiu levitar sobre as escadas e desaparecer como os sonhos deixados a mercê da maturidade. Foi sendo apagado como as últimas luzes nas janelas da cidade tarde da noite. Mergulhou no mais repleto silêncio e no fundo de toda solidão.

Acordou no leito de um hospital. Sua cabeça doía. Analisou as paredes brancas da enfermaria e o senhorzinho na cama ao lado roncando alto e se sentiu aliviado por estar com a virilha raspada.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Otimismo

Escrever, guardar, apagar.

Publicar, mudar de ideia e voltar atrás. Ninguém quer saber.
Tudo vai ficar bem, eu sei.

Uma hora dessas o ano acaba.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

White Curtains

"Torn between being a child my whole life or the man you need."



Trophy Eyes - "White Curtains" (Mend, Move On - 2014)