terça-feira, 23 de dezembro de 2014

I - Olhos no Chão

Então retornei à minhas longas caminhadas, tarde da noite. Sem fones de ouvido para trilhas sonoras da história de cada passo. Apenas o som da chuva caindo e dos meus pés se chocando com o pavimento molhado das calçadas e ruas.

E percebi que tenho a andar por anos sem rumo com os olhos no chão, sem nunca olhar para frente ou para os lados por medo de tropeçar, pelo receio de pisar na merda dos cachorros ou esbarrar num morador de rua dormindo debaixo da marquise de qualquer prédio. Sem olhar ninguém nos olhos por medo de verem através dos meus.

A passos largos e pesados, só me canso ao voltar pra casa. E deixei de ter problemas para dormir. Eu só desabo e apago como sob o efeito do mais potente anestésico. Acordo ainda mais cansado depois de ter pesadelos. Terrores noturnos que me atormentam desde que voltei.

Olhos no chão. O que mudou afinal?

Tudo. Nada.

Uma vez do outro lado, as coisas nunca mais são as mesmas. O cheiro do café tem sido mais forte. E tenho bebido menos desde então. Quando eu sirvo uma caneca - e não uma xícara - do café, o vapor sobe a meu rosto e minha visão fica mais embaçada. Enquanto eu pinço um pedaço de pano da camisa e limpo as lentes do óculos, ouço uma voz feminina dizer:

- Onde você vai tão cedo?

- A lugar algum - coloco meus óculos de volta e tento encontrar a dona da voz.

- Por um momento, pensei que pensasse em partir. - Eu ainda não encontrava a dona da voz suave e ponderada que ecoava pela cozinha.

- Desejaria poder. Mas não vejo como isso poderia me ajudar ou ajudar qualquer um.

- Eu poderia citar os motivos.

- Já ouvi todos eles. - Percebi que estava sozinho, falando sozinho, a voz vinha de dentro da minha cabeça - além do mais, faltam dois dias para o Natal, oito para o Ano Novo.

- E você ainda tenta se convencer que dessa vez vai ser diferente.

- Não. Eu tenho certeza.

- Mantenha seus olhos no chão rapaz. Você é só uma criança jogando dados. Fumando um maço por dia, comendo e dormindo mal. Andando sozinho de madrugada, esperando ser baleado por algum trombadinha.

- Esfaqueado. Tem mais romance nisso.

- Ou atropelado por um playboy bêbado com o carro do papai. Só pra parecer que você não teve intenção nenhuma em partir. E nem nisso tem tido sucesso.
- E não tenho. Não agora.

Me dirigi à porta da cozinha como se pudesse deixá-la pra trás, como se pudesse fazer com que essa voz ficasse mais baixa até desaparecer completamente simplesmente mudando de cômodo. Mas eu sei que não funcionaria.

- Eu ouço Deus sussurrando seu nome todas as noites. - dessa vez, a voz enviou um arrepio espinha abaixo. E eu parei na porta da cozinha de costas para onde acreditava que ela estava.

- E tem falado muito com ele?

- Ás vezes.

- E como é Sua voz?

- Efêmera. Eu não conseguiria explicar. E você não entenderia.

Virei para ela com a caneca de café na mão, o vapor subia e dançava até o teto e por um momento, era o fenômeno mais fantástico que eu já havia presenciado. Ascensão, eles dizem. Tomei um gole do café muito doce e pensei que talvez eu seja mesmo uma criança que anda olhando para os próprios pés por medo de tropeçar. E que talvez é isso que eu seja pelo resto de minha vida.

- É que você e todo o resto queriam não? Que eu simplesmente fosse embora e nunca mais voltasse? Para fazer uma protocolar visita ao meu funeral e lembrar que eu fui uma pessoa muito melhor do que realmente sou.

- Essas são palavras suas.

- Não, elas só escolheram meus lábios para ganhar forma. Mas ouça uma coisa: por mais que haja peso sobre as minhas costas e meu pescoço esteja sempre tenso, ainda sei como levantar o queixo e olhar pra frente. Eu sei que tem coisas me esperando lá na frente e nem você ou qualquer outro filho da puta pode me dizer que não.

- Eu só quero evitar que você passe por tudo de novo. Essas pessoas ao seu redor vão continuar te machucando de novo e de novo. Nada vai ficar melhor. E a cada fracasso, sou eu que vou te consolar, sou eu que terei que ouvir os seus mais íntimos desabafos.

- Não se preocupe. Ninguém vai ter que ouvi-los por muito tempo. A além disso, não me lembro de ter pedido por isso.

- Foi um pedido desesperado seu que escolheu meus lábios para ganharem vida.

- Eu continuarei tentando de qualquer forma. E próxima vez que Deus conversar contigo, diga que mandei um recado.

- E qual seria?

Deixei a cozinha com meu café e um dedo médio erguido.

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