quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Desconforto opcional

Ela me perguntou quais eram os meus planos. Eu ri e não soube responder. Não, eu não sigo planos, eu não estabeleço metas, eu não penso grande. É uma das coisas que eu não consigo fazer. Estou vivo a nos dessa maneira. O respirador que me mantém plugado nessa rede de erros chamada vida é o jogo do meu time no próximo Domingo, o exame no fim do trimestre, algo que eu combinei com alguém na semana que vem, o disco que sai no próximo mês. Eu não acho que isso seja mediocridade. Acho que é a maior de todas idiossincrasias: se ater a momentos breves. Foda-se a minha carreira, eu quero aprender a cantar aquela música do Frank Sinatra e ver o São Paulo campeão da Libertadores mais uma vez.

E eu acho já isso tremendamente ambicioso uma vez que eu sou o que sou: o que restou de cada convicção lascada a cada novo tropeço. O eterno estrangeiro preso dentro de um esqueleto que não é seu. Sem nada em comum com nada nem com ninguém esperando a tragédia/milagre que vai salvá-lo dele mesmo. Como se aquele salto que não prevê uma parada por uma rede de segurança fosse fazer de mim uma pessoa diferente quando minhas tripas se espalhassem pela calçada.

Eu odeio tantas coisas que para escrever uma lista eu precisaria derrubar a porra da floresta Amazônica.

Foi então que ela disse: "talvez ser assim seja uma opção sua".

A minha primeira reação foi de raiva. Eu quis virar a mesa sobre ela e socá-la até o osso do seu nariz sair pelo céu da boca e seus dentes balançarem como malabaristas em trapézios a cada movimento da cabeça. Mas não fiz isso, só tentei encontrar num canto da minha cabeça algum argumento simples que pudesse desmontar tamanho absurdo. Opção? Por quê caralhos alguém escolheria ser assim? É um passo bem curto entre o anseio pela resposta e o desespero mediante sua ausência. Você sabe que um cão arma um gatilho que é puxado e aciona um percursor. O percursor acerta a agulha que explode a espoleta. O propelente inflama, os gases dentro do estojo se expandem, o projétil é empurrado pelo cano. As raias se enchem de ar, fogo e pólvora queimada. O projétil deixa a arma para acertar algum alvo, mas você não vê nada disso.

O que você vê? Um filho da puta puxa um gatilho, um outro filho da puta cai morto no chão. Num momento, você está somente procurando uma resposta, no outro, decepcionado por não encontrar. É então que a tristeza se torna mágoa, ressentimento. A ira congelada esperando as condições certas de temperatura e pressão para te obrigar a fazer uma nova merda na sua vida. Dizer coisas das quais vai se arrepender e fazer coisas das quais vai se envergonhar. Levamos milhões de anos para descobrir a porcaria da roda, não me surpreende que alguns de nós ainda não aprendemos a lidar com as coisas que sentimos.

Entretanto, depois de um tempo remoendo-se com a possibilidade dela estar certa como um moleque chato que não quer brincar com seu carrinho de plástico vagabundo, mas também não quer emprestar para ninguém na creche. Minha insegurança é só minha. Não gosto dela, mas não vou dividir essa merda com ninguém. Os momentos que a gente se toca das coisas são os mais engraçados; quando você descobre que o seu terapeuta conhece uma amiga sua que sabe coisas que você só disse pra ele. Quando você descobre que a promessa de não contar sobre certas coisas só valia para um dos lados. Quando você percebe que metade dos imbecis na sua sala te olham com cara de nojo e você nem sabe porque. Quando você percebe que os 30 já estão mais perto do que os 20 e você não fez absolutamente merda nenhuma com a sua vida até agora. Quando os amigos que sobraram percebem que não, você não vai estar no próximo ano novo.

Eu sou o que sou por opção. Puta merda, como é difícil admitir isso. Pior que isso, só tentar entender porque eu tomei essa escolha e se ela foi consciente. Eu me sinto constantemente desconfortável. Do momento que eu acordo ao que eu vou dormir. Isso quando eu consigo dormir, tem dias em que não dá. E mesmo quando tenho a felicidade de cair no sono, acordo de pesadelos dos quais não me lembro. Eu só choro nos meus sonhos, não consigo fazer isso quando estou acordado mesmo quando eu quero muito. Absolutamente esvaziado de qualquer significado, eu não sinto que faço parte de qualquer coisa. É como se eu vivesse a vida por cima de camadas de filtros de celofane que me impedem de ver a verdadeira cor das coisas. Eu não tenho muito em comum com ninguém, me enganei em todas as vezes que acreditei que tinha.

E já não sei mais se o que ela disse é uma mentira. E não sei qual das duas possibilidades me desaponta mais.

Se eu desse replay apenas nos dias bons nos últimos dez anos, eu terminaria de assistir tudo antes do final desse ano. O último já foi há quase seis meses. E eu sinto falta de cada um deles. Eu sinto falta de pessoas com quem eu não falo já tem anos. Gente que caga e anda pra mim e eu não consigo entender porque me importo tanto.

Eu sou uma versão atualizada do meu pai. Eu acho que nunca amei nada na minha vida. O que é diferente de não amar ninguém. Não amar ninguém seria um problema mais fácil de superar.

ENFIM, por quê caralhos eu tomaria por livre iniciativa de maneira absolutamente espontânea a estúpida decisão de ser como eu sou?

Acho que é porque a fraqueza é confortável. E além disso, a adequação está diretamente ligada à castração de muita coisa. Qual a valor da felicidade se você precisa se mutilar para obtê-la? Se ela é um produto enlatado disponível numa limitada quantidade de cores e sabores, um punhado de comprimidos azuis que fazem as reações químicas certas acontecerem dentro da sua cabeça. Pastilhas de conformismo, drops de alegria. Você instala o aplicativo correto e aí sim pode sorrir. Descartabilidade em nome do ego.

Valeu, eu passo. É mais negócio perder o sono. E poder se odiar ainda é uma dádiva.

Se eu fosse outra pessoa completamente diferente, eu ainda estaria doente.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Olho Mágico

São seis lances de escada da garagem até o meu apartamento. Eu desço eu subo sei lá quantas vezes por dia. Mas tem pouco tempo que eu notei que o olho mágico não fica no meio da porta. Ele está ligeiramente a esquerda. Eu não consigo explicar o quanto isso me incomoda.

Quando eu olho através dele eu vejo dois lances de escada, um que leva ao andar de cima e outro que leva ao andar de baixo. O apartamento no final do lance que desce tem uma plaquinha pendurada na porta. Um retângulo de madeira pintado de azul e com letras pretas onde pode-se ler "Aqui vive uma família feliz". Sempre que eu passo pela porta eu imagino se isso é verdade.

São seis lances de escada da garagem até o meu apartamento. É engraçado como temos dúvidas estranhas de madrugada. É assustador como a internet pode responder muitas delas. É engraçado como a gente demora a reparar algumas coisas como o olho mágico ligeiramente a esquerda na porta ou restos mortais de um desastre.

Cinco anos depois dos atentados de 11 de Setembro, encontraram mais de setenta fragmentos de ossos no terraço do Deutsche Bank. Isso significa que pedaços de corpos foram projetados a mais de cinquenta metros da Torre Sul. É engraçado o tipo de coisa que a gente pensa. Uma hora você está vivo, na outra, não está mais. Os seus pedaços estão espalhados a quarteirões de distância. Não há nem mesmo um corpo para sepultar. Se você procurar nos sites certos, você encontra pedaços de ossos de mortos nos atentados a venda. Não sei dizer se são legítimos ou não.

São seis lances de escada da garagem até o meu apartamento. Ás vezes me sinto preso num loop interminável. Um dia termina, outro começa e eu não consigo dizer a diferença entre eles. Trocaram um dos bancos da área de lazer por um novo. Não sei se foi ontem ou se foi há um mês atrás. É engraçado como não percebemos algumas coisas. É engraçado algumas dúvidas que temos.

A bomba usada no atentado de Oklahoma custou menos de cinco mil dólares e matou 168 pessoas. Vinte e nove dólares e setenta e seis centavos. Foi quanto custou matar cada pessoa naquele dia. Meia dúzia de maços de cigarro. O preço de alguns livros de auto-ajuda. Dá para comprar uns quinze quilos de café. Menos do que a mensalidade de um plano de internet banda larga. Uma hora você tá vivo, na outra hora não está mais. Eles vão ter que identificar seu corpo pelo que sobrar da arcada dentária Encontram quatro tornozelos esquerdos, nenhuma mão direita. E o espetáculo custa um par de ingressos no Cinema.

O olho mágico na minha porta está 1,8cm para esquerda. Eu medi. Comparei com todas as portas do bloco. É o único que não está exatamente no centro da porta. Só agora eu percebi.

Se você procurar nos sites certos, você encontra receitas de explosivos feitos com fertilizantes a base de nitrato de amônia. É engraçado como a internet pode nos responder algumas coisas. Algumas respostas são mais macabras do que outras. Corpos de indigentes são enterrados nus e sem tampo no caixão. Você pode fazer Napalm misturando gasolina, isopor e óleo de motor até virar um líquido viscoso como detergente. Preencha uma munição de ponta oca com mercúrio e feche o buraco com cera de vela. Se o tiro não matar, o envenenamento mata.

Se você olhar bem de perto, encontra qualquer coisa.

São seis lances de escada da garagem até o meu apartamento e eu continuo preso nesse loop sem saber onde um dia começa e o outro acaba. Será que se meu olho mágico estivesse no centro da porta eu poderia ver o lado de fora de uma maneira diferente?

Tento não me perguntar. Mantenho tudo a uma certa distância. Tento não falar com ninguém. Como muito pouco, não durmo quase nada. São seis lances de escada e eu ainda não subi nenhum. Lembro de uma história de um homem que foi baleado seis vezes. Nenhum dos tiros o atingiu, mas ele morreu mesmo assim. Se você acredita com força o bastante que sua vida vai acabar, ela acaba independentemente dos fatores externos. O cabo é puxado da tomada, a sua consciência é desligada.

São seis lances de escada da garagem ao meu apartamento. Eu cobri o olho mágico com fita preta.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Cenotáfio


Ninguém nunca diz que ás vezes desistir requer coragem. Eu desisti de escrever e precisei convencer cada nervo do meu corpo de que era melhor assim. Eu não tenho dito muito. Eu não tenho sido honesto com ninguém há muito tempo. Eu não tenho sido honesto comigo mesmo.

Foda-se isso, eu não quero mais empilhar dezenas de milhares de caracteres sobre o quão fodido eu sou. Por mais que ás vezes eu sinta vontade e até mesmo necessidade eu não quero mais costurar narrativas egocêntricas sobre como eu não consigo lidar com toda a merda com a qual as pessoas lidam todos os dias. Eu levei sete anos para entender que eu não sou um floquinho de neve especial.

Eu não quero mais erguer monumentos a minha auto piedade. "Por favor, olhem pra mim, notem o quão miserável eu me tornei!".

Eu me lembro de acordar no banco de trás e ver o mar pela primeira vez através da janela do carro. Numa manhã nublada com os olhos ainda meio abertos eu não podia ver na linha do horizonte onde começava o céu e terminava o mar. Era tudo apenas uma camada de tons de cinza. É engraçado como algumas linhas são absolutamente tênues. Eu tinha 10 anos de idade e fiquei profundamente desapontado com o mar. Se o Oceano Atlântico não conseguiu atender ás expectativas da criança que eu era como eu agora o posso fazer? Esse não é um problema só meu.

Será que existe uma forma de se perdoar por não ter se tornado aquilo que um dia desejou?

Nós vagamos pela vulgaridade que é viver. Eu não sou único e nem deveria ser. Toda a minha geração escreve sua história imersa na crueldade ordinária do cotidiano que forma linhas tênues que não nos permitem ver onde um dia começa e outro acaba. Fillers. Pilhas de copos descartáveis acinzentados. Camadas e camadas de apatia e indiferença sob dezenas de filtros e mediações. Alprazolam, Metilfenidato, Lorazepam, Diazepam, Bupropiona, Clonazepam, Fluoxetina, Maprotilina...

Chegamos aos 25 com mais receitas de medicamentos controlados do que realizações em nossas vidas.

Nós continuamos vivos porque exige menos esforço. Porque persistir ás vezes é confortável. Seguimos esvaziados de significado ou desejo, caminhando sem saber porque movidos pela inércia. Engolimos comprimidos que não deveríamos, nos relacionamos com pessoas que não amamos, empreendemos carreiras que não queremos,

Esperamos milagres ou desastres que atribuam um novo significado ao que é viver. Porque só existir parece não ser o bastante.

Somos todos, em maior ou menor nível, miseráveis. Mas tudo bem. Porque mesmo nos piores dias, não estaremos sozinhos.

Mesmo nos piores dias quando não quero levantar da cama até que eu crie raízes que se alastrem pelo chão e pelas paredes. Mesmo nos piores dias em que não consigo olhar meu reflexo no espelho sem sentir nojo da pessoa que eu sou. Mesmo nos piores dias em que a masturbação se torna uma prática impossível porque nem eu mesmo quero me tocar. Mesmo nos piores dias em que sinto inveja de quem tem doenças terminais. Mesmo nos dias tão ruins que eu deixo de pensar em suicídio porque, caralho, eu mereço sofrer muito mais que isso antes de ir embora.

Tudo bem porque há uma legião de outros cadáveres ambulantes caminhando na mesma direção. Uma enormidade de pessoas que sentem medo e desespero do presente e do futuro e que não sabem lidar com o quanto que é vago estar aqui e agora se sentindo sempre forasteiras não importa aonde estejam. Gente que vai ler isso e se identificar. Somos muitos, nós temos muitas coisas em comum. Nenhum de nós é especial.

Então por quê é que eu nunca me senti tão sozinho?

Ser comum não quer dizer que seja normal ou tampouco que seja bom. E foda-se o que meu terapeuta diz: se todo mundo se sente assim então todo mundo está doente. E agora não entendo se não nos percebemos ou apenas nos acomodamos. Afinal, a fraqueza é confortável porque ela sempre vai estar lá. O que temos de mais próximo à tal da estabilidade. Não importa de qualquer forma.

No final, tudo o que podemos fazer é celebrar ritos funerários a quem nós pensávamos que poderíamos ser. Derrubar meia dúzia de flores sobre um túmulo e ignorar o fato de que não há nada sepultado nele. 

domingo, 13 de março de 2016

Continuum

Esse é um texto sobre tudo.

Uma carta-bomba, um visceral manifesto passivo-agressivo lido por uma puta bêbada largada bebendo água da sarjeta. Um hino mudo e carismático, a falsa oração de um cético que esconde a sua falta de fé. Um livro de rascunhos e anotações sobre quem fode quem e todas as amizades que a gente precisa romper pelo caminho para atender a irracional vaidade de nosso código de conduta.

A fúria predatória dos olhos que anseiam em me devorar. É o medo constante de se ter algo a perder. Ou não saber o que fazer ao ganhar.

Vítima e assassino numa macabra dança sem pares. O palpitar do coração ao descer até a cova dos Leões. As quarenta e oito horas antes da queixa do desaparecimento de um membro da família. O espaço-tempo entre o tropeço e o encontro com o pavimento como um reencontro entre velhos amigos. A soma da ira de todos os desajustados e incrédulos como cães de caça levando orgulhosos os seus próprios rabos amputados como agrado aos seus senhores.

A percepção de que a vida nos assombra mais do que a morte e a dúvida nos tortura mais que a dor. Todas as palavras que nos destroem ao serem engolidas por temermos os monstros que elas podem despertar se bailarem soltas ao vento. O exílio no Bosque, as flautas sopradas pelo vento e o peso do aço sobre o qual somos fundados.

As manchas de sangue no tapete, o desconforto das camas de hospital, os gracejos que se confundem com o fio das navalhas. A peregrinação interminável por esse deserto chamado vida. As vezes em que mutilamos nossa carne e nossas almas na tentativa de ser qualquer coisa exceto nós mesmos. Tudo aquilo que perdemos pelo caminho. A ilusão do controle.

É contar o tempo na tentativa patética humana de mensurar os acontecimentos. Pois não existe nada como o nada, todo zero é um conceito abstrato que nem mesmo no nosso imaginário pode existir. Talvez o espaço vazio seja a única coisa que não exista, portanto é uma ilusão gigante sentir-me assim. Nossos ossos fracos revestidos de nossa coragem escassa prontos para se partirem com o vento.

Todos os acontecimentos, tudo que existe, já existiu ou vai existir. O que consta ou não no nosso dicionário de sofrimentos obscuros. As coisas que não importam mais, as coisas que fingimos importar. O amor. O sexo. A arte. A morte.

O caos.

Tudo é simultâneo. Tudo se resume em um único lugar: agora.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Lar

Eu me lembro do meu quarto, o último que tive e foi definitivamente meu para toda e qualquer possível interpretação. Ficava na última casa em que pude chamar literalmente de minha quando eu ainda tinha dezessete anos. No último momento em que pude chamar um lugar de lar sem qualquer sinal de hesitação. Foi meu santuário resumido a minha cama, meu computador, meu violão e meus poucos livros que eram tudo o que eu precisava para existir então. Onde eu passei quase todo o tempo que tive livre lendo, ouvindo música, assistindo pornografia e mantendo mínima interação com outras pessoas. Da mesma maneira que faço até hoje sendo que foi lá, inclusive, que tive a ideia e motivação de criar esse espaço onde eu posso destilar todas as minhas mais íntimas confissões. Aquele quarto foi minha cápsula do tempo que me levou até o futuro onde não mais poderia estar num único lugar embora, muitas vezes, eu quisesse. E isso tudo foi antes de eu dormir em sofás atraído pelo astro maior que era a televisão viajando através do tempo e do espaço sem jamais sair do lugar até o fim da existência.

Gabriel García Marquez em seu fantástico "Cem Anos de Solidão" diz que nenhum lugar pode ser chamado de seu até que se enterre um morto nele. O poeta americano Robert Frost diria que lar é onde, não importa quando ou como você chegue, será aceitado. Já Henry David Thoreau em seus diários comparava o homem dito civilizado com o nativo da terra sendo, o último, livre dentro de seu espaço, e o segundo prisioneiro de seu próprio lar. Acima de tudo, casas são prisões. Lugares que, de forma ou outra, nos restringem a liberdade através dos laços que nós mesmos criamos sem perceber seja através dos entes queridos enterrados ou pelos entes vivos que vão nos aceitar. E se esse lar é agradável ou não, não existe uma grande diferença, ele ainda funciona como uma prisão. Se cumpríssemos pena por um crime dentro da mais luxuosa mansão, ainda estaríamos presos, certo? Uma necessária prisão diante do medo de tudo o que há lá fora, da dureza do pavimento, do frio da chuva, da nossa insignificância em meio as luzes brilhantes e indiferentes das cidades com seus imponentes prédios e a frieza de todas as vidas que se cruzam com a sua todos os dias sem nunca de fato fazer uma diferença.

Talvez, por não ter um lar no sentido mais puro da palavra sem a sombra das ambiguidades que ela pode carregar, eu aprendi a enxergar o meu lugar em constante movimento. Pois talvez lar não seja um lugar, mas sim um momento, um sentimento, um recorte de nossa experiência em vida. Sua casa vazia, sem ninguém, nenhuma mobília, nada exceto aquilo que faz parte da construção, ainda é seu lar? Um amontoado oco de pedra, madeira e metal não é um lar assim como um cadáver não é uma pessoa. O residente é a alma do lar. Você sem a sua casa ainda é você. Sua casa sem você é só... uma casa. Talvez seja esse papel de protagonismo paradoxal à nossa insignificância no mundo que nos cerca que torne o conceito de lar tão confortante. Então eu comecei a enxergar minha casa em outros lugares: na saliva nos selos de cartão postal, nos cochilos do banco de trás durante uma longa viagem no meio da noite, nas catarses provocadas pelo álcool, no crepúsculo ou alvorada no horizonte, nas caminhadas longa sob a chuva, nas palavras amigas nos momentos difíceis, os cantos do passado para onde fugimos quando nada mais parece fazer sentido. Qualquer situação, momento ou lugar onde a minha insignificância diante da imensidão de tudo aquilo que existe, já existiu ou vai existir foi rebatida pela singularidade de ser quem sou e o quão único é o impacto da minha própria existência na vida de todo mundo a minha volta.

Isso é o que chamamos de legado. Aquilo que fica no mundo mesmo depois de partirmos para outra existência (ou existência nenhuma). Talvez sejamos tão obcecados com a ideia de possuir um lugar justamente para que ele se perpetue através das gerações posteriores como uma extensão de nossa própria personalidade. No final, todos os homens querem ser imortais, transcendentais, estoicos. Tudo o que queremos é ser o centro do universo, somente conseguimos fazê-lo dentro de um mundo criado por nós mesmos. Mesmo que ele vá da cama até o interruptor de luz. Ser o dono de alguma coisa, a alma de uma entidade, o protagonista das decisões. Tudo isso é reconfortante e funciona mesmo que seu lar não seja um lugar, mas sim um espaço de tempo, uma memória doce, um estado de espírito, um ideal flutuante que nada e ninguém pode tirar de nós.

Ainda, para mim, casa é qualquer espaço ou tempo onde eu possa repousar depois de salvar o dia não me tornando aquilo que me desapontaria aos oito anos de idade. E hoje, esse é um lugar que só existe dentro da minha cabeça.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

As Crônicas dos Piores Dias de Minha Vida #1

Isso foi há quase três anos atrás quando toda a merda do planeta parecia ter atingido o ventilador da minha sala de estar. Eu estava sentado nesse karaokê em algum lugar da Santa Cecília assistindo o Doda fazer a melhor performance possível de Last Kiss com seu affair da época, a coreana das poesias do tumblr, aquela de quem eu não gostava. Eu estava sentado vendo eles cantando, ou melhor, vendo ele cantando e ela tímida do lado dele do pequeno palco ensopados pelas luzes azuis de neon que me levavam a mais absoluta náusea. Estava sentado ao lado de sei lá quantas amigas dela com quem eu não consegui (ou não quis) trocar uma só palavra a noite toda. Eu estava ocupado demais sufocado com toda meu remorso e ira. Aquele que me acompanha até hoje.

Eu queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali, no meio da horda que sorria, aplaudia e cantava junto. Isso foi antes dos smartphones se popularizarem, foi antes de todo mundo ter a possibilidade de ser sugado pela internet no meio de situações sociais. Pelo menos eu ainda não tinha um, não podia ignorar o mundo ao meu redor e simplesmente ir chorar minhas mágoas no Twitter - eu nem tinha um Twitter ainda. Tudo o que eu tinha era um maço de cigarros e talvez esse tenha sido o único dia da vida em que esse vício valeu o preço que cobra. Meu álibi perfeito para sair de perto de todo mundo e ir fumar no mezanino, meu cúmplice no crime de não desejar participar de situações sociais por medo do constrangimento. É impressionante como eu me sinto nu em qualquer lugar com mais de cinco pessoas que eu não conheço.

Subi os três lances de escadas tentando fugir do som da música do outro ambiente assim que possível. Um ritual que eu repeti bastante naquela noite, fumei pelo menos uns quinze cigarros. Respirei o ar frio e senti a garoa fina me molhar o rosto pensando que eu nem deveria ter saído de casa naquele dia. Eu fui por causa dele, por sua insistência e teimosia. Doda foi quem me levou para São Paulo naquele mês de Março. Pagou pela minhas passagens, bancou quase todos os gastos da viagem, ele queria mesmo a minha companhia. Algo que ele fez mais por mim do que por ele na verdade. Ele queria me tirar da bolha, me levar pra ver o mundo lá fora, tentar me fazer sair do buraco de onde eu tinha me enfiado. É isso que amigos fazem e ele era - e ainda é - o melhor deles. Independentemente do esforço dele - ao qual sou grato até a data presente - a verdade é que eu me senti extremamente sozinho e isolado durante toda aquela viagem. E é sobre isso que escrevo.

Encostei-me no parapeito, puxei um cigarro de dentro do maço, acendi, traguei e exalei uma fumaça branca e densa que parecia dançar pelo ar enquanto eu olhava o movimento na rua lá embaixo. Na época, eu ainda fumava Dunhill Carlton Blend de filtros brancos com a embalagem mais bonita possível, isso foi antes de eu trocá-los pelo Marlboro Red - que é substancialmente mais forte -  influenciado por outra amizade. E por ser uma marca mais fraca, eu fumava mais, então já era a enésima vez que eu subia naquele mezanino que funcionava como fumódromo em menos de duas horas.

Eu observava os táxis que chegavam na porta dos bares e boates com moças de vestidos bonitos ou saias justas tentando fingir que não estavam com frio. Os rapazes de camisetas polo listradas falando alto na porta de uma casa de eventos, carros e ônibus disputando espaço pela e estreita e, ainda sim, movimentada rua. Desejei ser como todos os que estavam lá embaixo, desejei ser qualquer um menos eu mesmo naquela noite. Eu ainda não tinha me acostumado, mas seria uma sensação bastante recorrente. Foi nessa época que eu descobri que a mais cruel de todas as prisões é não se sentir confortável debaixo da própria pele - algo que eu me lembro de dizer há um tempo atrás.

Aquele foi o fundo do poço. Eu não tinha nada, ninguém. Eu não tinha dinheiro, vontade, estudo, trabalho, perspectiva de futuro. Se eu tivesse morrido naquele dia, teria sido um alívio. Tudo o que tinha me levado até ali, tudo aquilo sobre o que eu já escrevi tantas e tantas vezes, todos os fantasmas que me assombram até hoje e me levam ao limite do suportável levando-me a crer se eu já o atravessei ou não.

E aquele foi um dos momentos que eu escolhi como controle.

Aquele momento em que Doda cantava Last Kiss ao lado da coreana no Karaokê aos aplausos dos clientes bêbados enquanto eu fumava um cigarro atrás do outro como pretexto para não estar lá como todo o resto. Um de vários momentos em que simplesmente ser tornou-se algo insuportável ao ponto de eu não querer mais a dádiva-maldição que é estar vivo. Mas eu não desisti. Eu mereço tudo aquilo que já aconteceu e tudo mais que ainda vai acontecer. Os altos e baixos, as vitórias e derrotas. Até o momento em que eu perca totalmente a minha sanidade.

Até lá, eu decoro as paredes da lembrança com todos esses momentos-controle que eu pintei em telas imaginárias para que eu possa recordar com riqueza de detalhes nas madrugadas de insônia, nas fugas ao banheiro durante ataques de pânico na faculdade, nos dias em que me sinto tão sozinho e isolado ao ponto em que me convenço de que sou a única pessoa viva a caminhar sobre a face da Terra. Para não me esquecer que eu já estive pior, que se passei por aquilo e vou passar pelo resto. E quando eu me sinto tentado a rasgar minha própria pele para escapar dessa prisão e ser qualquer coisa menos isso que sou dentro desse caixão de carne e osso e finalmente me sentir vivo, eu penso que passei vivo pelo final do último ano e pelo começo do ano anterior, então nada mais pode me impedir de continuar.

Tenho chegado ao meu limite, tenho evitado as pessoas que amo, ando "esquecendo" meu celular desligado para não ter que falar com ninguém, estou dormindo no sofá porque só Deus sabe o quão difícil é sair da minha cama nesses dias. Mas talvez Ele nem exista afinal de contas. O que nunca foi importante pra mim de fato. Ainda tenho meus quadros na parede para contemplar, mas elas já estão quase lotadas e nos últimos dias eu tenho precisado de mais espaço. Muito mais espaço.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois Mil e Quinze

De novo. Todas as músicas que me fizeram passar por mais um ano. Que me fizeram amadurecer e crescer de novo e de novo.

Janeiro

"I was falling for a girl who would ask me to come over
Just for a day, when her parents were away,
Now all I can do is lay in my room,
Fall asleep, dream of you,
Then wake up and do nothing about it"
Fevereiro
"You miss me when I'm gone
But when I'm around it's like I'm hidden behind the paint on the walls
The loneliness will keep me warm tonight
It'll keep me warm seeing as you won't"
Março
"I know my wounds will heal with timeBut still I wear all my scars with pride"

Abril

"I'm starting to believe that there's a god and he hates me.
I'm starting to believe that my mom lied about grace and divinity"

Maio

"Self medicate cause I'm sick (I've got nothing in common)
Of cutting ties much to thick (With anything anymore)
Please make this painless and quick
Please make this painless and quick"

Junho

"Is our skin to keep the world out or our bodies in?
This doesn't look like home, this doesn't look like home.
Is our skin to keep the world out or our bodies in?
I'll tear apart the town then sleep, and sleep alone."
Julho

"So rest in peace for the living dead
And where you sleep is where I plan to make my bed
I've got a song that belongs on your right arm
I need to know what you feel
And if you mean no harm"
Agosto

"I've lost count of all the times I've made it home alive...
And wished I hadn't"
Setembro

"I'm not sure what's worse
The waiting or the waiting room
and "You're next sir" becomes a cruel taunt to you
Recycled air, the smell of sleep and disinfectant
Your God is a two door elevator"
Outubro

"Cause you were heat lightning.
Yeah you were a storm that never rolled in.
You were the northern lights in a southern town, a caustic fleeting thing.
I’ll bury your memories in the garden;
I’ll watch them grow with the flowers in the spring.
I’ll keep you with me"

Novembro

"I lie for only you
And I lie well...
Hallelu..."

Dezembro
"We cast our hearts in plaster
We imagined our bodies were fashioned from stone
But they chipped at the brick and mortar
We found out that we're only layers of skin hiding bone
And our bones are like chains, old and rusted in the rain
They're going to snap when the weight shifts"