quinta-feira, 28 de novembro de 2013

O Contador de Histórias

Heródoto era desses velhos bem velhos, à moda antiga. Rabugento, porém muito polido com as palavras. Dono de um senso de humor invejável, um tipo de personalidade rara nos ásperos dias que vivíamos na primeira vez que o vi.

Na época, eu tinha Dezessete anos, ele já deveria ter seus Setenta e Cinco pelo menos. A livraria do Seu Heródoto era conhecida em toda cidade pois era uma das poucas na Cidade Baixa que ainda tinha livros da época do Arrebatamento, alguns até mais antigos, com o quadricentenário "1984", de George Orwell, autor sobre o qual conhecemos muito pouco, assim como todos os outros autores de antes da Guerra. Sem levar em conta aqueles que foram esquecidos pelo tempo, cujas obras foram destruídas e apagadas da história.

Mas o Sr. Orwell estava salvo na pequena cápsula do tempo de Heródoto, a livraria simples no subúrbio, imersa na cidade de lata, entre vielas escuras, ratos, cortiços, bares, mendigos, assassinos, viciados e operários. O simpático senhor dono da livraria que quase nunca escondia o sorriso amarelo me indicou o livro por ser, segundo ele, "um retrato perfeito da decadência da liberdade humana, quase como se Orwell tivesse viajado ao futuro e visto o nosso cotidiano. A versão de Tim Burton da Revolução Industrial."

Na época não entendi, afinal, até hoje não sei quem foi o tal do Tim Burton.

Por motivos óbvios, Heródoto não venderia o original. Esse ele mantinha trancada a sete chaves, dentro de um saquinho plástico num fundo falso da estante atrás do balcão. Ele me vendeu uma cópia porca, praticamente um amontoado de folhas amareladas amarradas a uma capa escura de couro onde lia-se em letras apagadas os números "1984".

Levei o livro para casa, escondido de todos. Até porquê, segundo o Seu Heródoto, eu poderia ser até mesmo preso por estar portando tal obra. O livro de Orwell estava entre os "Cânones Negros", uma lista de livros proibidos pelo Parlamento da Cidade Estado de Damasco, a nossa tão "querida" cidade de lata, a maior metrópole do mundo então, um gigantesco parque industrial que abrigava quase 12 milhões de pessoas com a peculiaridade de separar com um gigantesco muro o lado rico, conhecido como "Lótus", e o lado pobre, conhecido como "Subúrbio" ou "Cidade de Lata". 

Lótus era um gigantesco complexo comercial onde situavam-se o centro financeiro, as zonas nobres da cidade e o centro político de Damasco, o Palácio Real. Apesar do nome, não tínhamos um Rei. A cidade-estado era governada por 24 senadores e seus respectivos delegados. Lótus poderia ser vista a milhas e milhas de distância graças gigantesca cúpula que cobria a cidade. Formada por um membrana transparente de nano-robôs que filtravam a luz do sol e as chuvas. A cúpula também iluminava toda a cidade à noite quando acontecia algum evento importante.

Ao redor de toda a Lótus, havia o "Subúrbio" ou a "Cidade de Lata" como gostávamos de chamar, a porção que abrigava 80% de toda região urbana de Damasco. Um amontado de indústrias e prédios baixos, sem nenhum planejamento ou estrutura. Chamávamos de "Cidade de Lata" por causa dos telhados confeccionados em Zinco, Magnésio e Alumínio que protegiam as casas das constantes chuvas ácidas. No Subúrbio não haviam escolas nem hospitais. Quem podia, pagava por um professor ou médico. Que também não eram muito bons. Então, de maneira geral, todos os habitantes da Cidade de Lata eram muito ignorantes e pobres. Nasciam e viviam para trabalhar. Começavam muito cedo, aos dez, onze anos nas minas, nas manufaturas e nas siderúrgicas. A vida no Subúrbio não era fácil. Graças a pobreza e à falta de segurança, a cidade baixa era repleta de viciados e criminosos em suas estreitas vielas. E a Polícia, usualmente, era tão violenta quanto os criminosos, muitas vezes até mais.

Segundo Heródoto, o nome Damasco era uma homenagem à uma cidade antiga da Síria, mas não era a própria. Segundo ele, não estávamos no Oriente Médio, mas ninguém sabia. Depois do Arrebatamento, o mundo mudou bastante, a população mundial foi extremamente reduzida e os homens tornaram-se nômades por tanto tempo que nem sabíamos mais em que país estávamos. Heródoto dizia ter certeza de que Damasco ficava no Chifre da África. Mas também já ouvi dizer que estávamos no Centro Oeste da América do Norte. Essa é uma informação que talvez nem os mais poderosos tenham acesso já que a comunicação com outras cidades é limitada e, raramente, uma coopera com a outra na troca de informações.

O livro de Orwell foi apenas o primeiro que comprei do velho Heródoto, eu estava frequentemente em sua livraria comprando livros, debatendo e ouvindo as histórias do velho, que eram muitas. Nos dávamos bem pois ele era o único velho na cidade que tinha um acervo de livros do mundo antes do fim do mundo, e eu, o único garoto de todo setor sul que sabia ler. Os outros clientes da livraria eram todos mais velhos e ainda mais rabugentos que Seu Heródoto. Eu era o único com tempo, vontade e paciência de ouvir as histórias do velho.

Ele tinha também um livro enorme e muito velho que, segundo ele, era a história de sua família. Ele sempre me mostrava as fotos, cartas e textos do pré-Guerra que ele guardava com carinho. O livro era a única família que Heródoto tinha. O Velho vinha de longe, não sabe-se bem de onde. Instalou-se em Damasco há quarenta anos pelo menos e tornou-se um "garimpeiro de livros", um profissional em encontrar e vender livros esquecidos para museus, bibliotecas e galerias.

Alguns diziam que Heródoto chegou a morar na Lótus por alguns anos, mas depois que sua filha desapareceu, ele gastou todo o dinheiro que tinha tentando encontrá-la. Atravessou o Deserto tantas vezes que as pessoas não sabem nem contar. Quando finalmente desistiu, foi banido de Lótus e abriu sua modesta livraria com o que lhe restou no Subúrbio. E assim decidiu viver seus últimos dias, vendendo livros e ideias, contando histórias sobre um tempo onde todos os homens eram livres.

E deixou para mim, como maior herança, a sabedoria dos seus livros, as memórias de seu tempo e seu espírito sempre jovem.

sábado, 23 de novembro de 2013

Metade

Sabe o que eu queria só por hoje?

Não sentir mais essa raiva, não remoer mais essa mágoa. Mas parece que eu ainda insisto em viver no passado, em cerrar os punhos e encontrar motivos para atirar pedras. Sempre precisei de um alvo. Todo mundo precisa, todo mundo tem uma válvula de escape.

Eu só queria não sentir mais raiva. Nem pena, nem dor. Nem raiva, nem essa tristeza no alto da madrugada.

Isso não é tão recente, já deveria ter superado. Mas não é tão fácil é?

Sim, eu estou feliz, de certa forma. Mas nada disso me contenta. Nada disso me satisfaz. Quero saber como me livro desse ódio que está me consumindo dia após dia.

Devolva a minha vida. 

Tenho vivido ela parcialmente desde então. É como se metade do meu coração fosse dedicado a odiar, e a outra, a viver e sentir, mas sempre como se houvesse um filtro refinando qualquer sensação e qualquer sentimento.

Na metade que me sobrou, nada é intenso, tudo é indiferente. É o quase-medo. É o quase-tesão. É a quase-ansiedade.  Não estou mais dentro da minha própria vida, apenas uma metade de mim está lá.

Mas metade cheia de mágoa e angústia pulsa, é real, me empurra pra frente, me faz tentar ser ouvido. É o grito que ecoa na silenciosa noite escura, a força que me puxa para a superfície. É a maior motivação que eu tenho.

Quero lembrar de você apenas como se fosse um sonho, algo que não foi real. Talvez não tenha sido mesmo.

Não quero mais sentir raiva de você, mas é isso que faz eu me sentir vivo.

Deprimente não?

Hoje, já nem sei se você foi o meu pior sonho ou meu melhor pesadelo. Mas como o protagonista daquele filme, preferi acordar, viver uma vida real ao invés de voltar para o sonho. E em queda livre, percebi que a sensação de estar sonhando ainda não saiu de mim. Pois metade do meu coração ficou nesse sonho/pesadelo e se recusa a acordar. Ela passa a fita de novo e de novo e sempre se deprime no final, e sempre se tortura com o resultado e acumula mais e mais raiva.

Metade de mim sente raiva. A outra metade não sente nada.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O primeiro Natal do resto da sua vida

Clarice acordou do sono como quem acorda de um coma.

Talvez de 20 dias, talvez de 20 anos.

Acordou na manhã da véspera de Natal com o primeiro choque de realidade desde que tudo começou a desabar - não havia árvore, nem presentes, nem ceia, nada planejado. Sua mãe hipnotizada pela TV, ainda sob efeito de toda aquela merda que o psiquiatra a fez tomar. Ela parecia um zumbi, não estava mais lá. Ana Rita era uma mulher de Fibra, mas aquele Dezembro a fez desabar por dentro matando um terço de sua alma.

Seu pai fumando um cigarro atrás do outro na varanda, como há muito não fazia. Depois do derrame, Ricardo foi obrigado a parar de fumar. O Doutor foi preciso com as palavras: "coloque um cigarro na boca mais uma vez e eu venho assinar seu atestado de óbito".

Isso foi em Agosto de 2001.

 Em 24 de Dezembro de 2009, lá estava o senhor Ricardo Maldini gritando para o mundo que havia desistido, fumando o primeiro maço em oito anos, observando o vazio do quintal da varanda da sala como se os dois garotos jogassem bola no gramado, mas eles não estavam mais lá. E Ricardo morreria quatro anos depois após um Acidente Vascular Cerebral.

Então com 15 anos, era difícil carregar o fardo de toda a família nas costas. Foram-se quase duas semanas desde quando perdeu os dois irmãos, desde que sua mãe deprimiu-se e seu pai enlouqueceu. Os quartos de ambos vazios de seus corpos, lotados de seus pertences estocados como se fossem fazê-los voltar. Mas Clarice sabia que não voltariam. Um estava morto. O outro exilado.


A sustentação do céu de Clarice devastou suas terras como nunca antes. Mas foi um processo libertador: agora ela ao menos sentia o quanto seus problemas eram pequenos. E assumiu a responsabilidade de ser a mulher da casa mesmo que ainda fosse uma menina.

E foi assim que começou a história de Clarice, a garota que não tinha medo algum.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

"Você é daqui mesmo?"

Ouço essa pergunta quase que diariamente. Tanto pelo meu sotaque quanto por trabalhar numa empresa cuja sede fica em Criciúma.

Sou nascido aqui mesmo e nunca estive na serra catarinense, mas sempre respondo, com um sorriso desesperado no rosto:

"Eu sou de lugar nenhum. Sou de tudo quanto é canto."

Deve ser porque lugar nenhum me pertence. E eu, por minha vez, não pertenço a lugar algum.

sábado, 16 de novembro de 2013

O fim como ele será

Houve um tempo onde todas as pessoas perderam a voz.

Não a capacidade de falar, de produzir sons, vocábulos ou palavras. Todos perderam, naquele tempo, a capacidade de se expressar.

A falta de expressividade levou à sociedade um caos de comunicação sem precedentes. Todos tentavam, a todo o tempo, expressar a dor que sentiam, o afeto, o carinho, a felicidade, os seus sonhos e suas ambições. Mas algo sufocava a todos.

Então os seres humanos tornaram-se máquinas frias que resumiam-se ao seu dever de produzir. E dessa forma, o homem regrediu a um estado primitivo onde vivia apenas por viver. Acordava todos os dias apenas por existir. Trabalhava apenas para se manter. Sorria apenas para sentir. Sentir qualquer coisa que desse sentido a um mundo onde todos gritavam, mas ninguém ouvia.

E já não havia mais dança, já não havia mais sorrisos. Já não havia mais a dor da partida nem a redenção da chegada. Não havia mais amor, não havia mais ódio. Nada era apaixonante, apenas frio e mecânico.

Submerso nesse caos onde todos queriam ser ouvidos, mas ninguém queria ouvir, o gênero humano entrou em extinção, mas até hoje ainda não descobriu e vaga pelo planeta em busca de respostas sem perguntas.

E a humanidade tornou-se, assim, submissa à própria ambição.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

(Re)Capítulo

Eu li tudo de novo. Desde o começo.

Cada página disso aqui. Eu li tudo de novo.

Só pra ver o que mudou com a minha perspectiva. Só pra dialogar com meu eu do passado. Afinal, foi pra isso que eu criei isso tudo, pra interagir com o Pavani de Natais passados e ver o quanto eu cresci.

E cresci. E sei a resposta.

Uma cidade que não é minha, um nome que eu não conheço, o irmão que não está mais lá, o pai que nunca esteve, o amor platônico, o amor real, o ódio, a raiva, o sexo, o vício, a música, o som do silêncio, as noites acordado, os dias não vividos, o beijo na chuva, um rei sem coroa, o trono vazio, a melodia de uma máquina de escrever, o som do trovão, a vida em caixas, a apatia por aeroportos, o medo de voar, a vontade de fugir, a necessidade de voltar, o passado que não passa, o presente que não chega, o futuro que não existe. A rara beleza do discurso de quem nunca mais vai desistir.

Isso é tudo o que eu sou. Isso aqui é o que define cada pedaço da minha personalidade. No presente, sou a soma de tudo o que fui no passado, até mesmo dos pedaços que caíram no caminho.

A vida começa e acaba a todo instante.

Todo mundo muda. Mudamos o tempo todo, mas não mudamos nunca. A vida é isso, um discurso incongruente onde duas afirmações opostas são igualmente verdadeiras.

Preciso morrer pra nascer de novo. E lá vamos nós, mais uma vez.

Ainda tenho muitas histórias pra contar.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Beholder

Playing notes making quotes to be noted
Maybe someone someday will notice
I'm not dead yet i'm just buried underneath the toughest skin

And the echo it echoes inside me
And it's the only way i can hear it
And it's so deep. As i shiver. And tell me: do you still believe?

As you pass me as i lose the compass
All my clocks overdue i'm in the past
We are not alone. So just move along. And forget the fucked things we've done

I'm waiting awake at the road
Where the devil came to buy my soul
And if this won't work. You know you've been told. The worst hell is where i came from.

From the endless landscapes to the higher peaks
I'll haunt myself forever. The Ghost who i should be
The sparks that light the way. The sound that brings you home.
The rock that stands the waves. The place where i behold
That peace so long gone

Hear
me
As
I
beg you
please
Just
Leave
me
While
You can
This
dist-
ance
makes
it safe
I
Swear
ano-
-ther
day
we'll
meet
again

(when we are both cats)

sábado, 2 de novembro de 2013

04h47

Tudo o que eu queria ter já não existe mais. Eu cansei de esperar, agora já não tem mais volta.

Se a gente vive pra sentir então eu já morri. Se não há mais tempo a perder eu juro que não sei porque ainda estou aqui. Escrevendo sem saber pra quem. Escrevendo sem saber porque.

Ser é sentir. E eu já não sinto mais nada. Então me diz quem eu sou. Aproveita e me mostra o que restou. No fim da festa a gente vê as verdadeiras faces.

Traz de volta minha bebida, traz de volta meu cigarro. Tenho certeza que essa vida vale bem menos que um trago.

Assim eu finjo que vou vivendo. Só te peço que finja que acredita.

E assim a gente vai fingindo, acreditando que isso não muda nada.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Hyde: além do monstro

Mais uma vez, ele conseguiu.

Hyde tem a necessidade de partir corações o tempo todo. Proporcionar aos outros o sentimento de desilusão, desamparo, decepção e dor é a única forma que conhece para ser compreendido. Talvez se sentindo como ele, as pessoas possam entender o que se passa em sua mente nebulosa.

Ele conhece o amargo como ninguém, mais do que isso: Hyde tem uma idolatria obsessiva pela dor. É o que faz ele sentir-se vivo. Enquanto Jekyll dorme, Hyde sai para compartilhar dessa dor com qualquer um que cruze seu caminho nesse ciclo vicioso de causar e sentir dor.

No fundo, o Monstro sabe que está sozinho e, embora todos conheçam seus meios e fins, no fundo ele espera ansiosamente pelo dia em que o Médico vai acordar para que não precise ser mais esse monstro.

E teme, de maneira desesperada, que esse dia nunca chegue.