terça-feira, 30 de dezembro de 2014

VIII - Eco

Quando cheguei à casa de minha mãe, ela estava desesperada. Falava com dois policiais que anotavam o que ela dizia num bloquinho. Quando me viu, ela correu pra me abraçar. Uma neve fina caía na rua. Depois de entrar e tomar um bom chocolate quente, tive que explicar o que tinha acontecido no dia anterior. Mas quando contei do acidente na rodovia, descobri que não havia registro algum de acidente.

Minha mãe chamou os policiais para conversarem. A sós.

Ainda no hospital, os médicos atentaram que deveríamos tomar cuidado com a questão da amnésia. Eu poderia ainda ter alucinações, estados de fuga e colapsos emocionais de todo tipo. Em algum momento do diálogo a palavra "Esquizofrenia" foi citada. Mas sem o resultado dos exames, era só uma hipótese.

Eu estava exausto, então resolvi que o mais sábio a se fazer era dormir. Me perdi num sono denso e escuro onde sonhei de novo com a mulher do fundo do rio. Dessa vez, estávamos, de novo, no topo de um arranha-céu.

"Nós somos o que somos."

Quando eu acordei, minha mãe não estava em casa. Mas me deparei com minha irmã. Antes que eu pudesse sequer cumprimentá-la, ela simplesmente despejou toda sua ira. A última vez que eu tinha visto ela, antes do incidente no rio, ela era apenas uma menina de quinze anos. E agora, já era uma mulher e estava me dando lições de moral. Ela não acreditava na minha história de esquecimento, para minha irmã, eu estava mentindo descaradamente. Ela continuou destilando sua raiva dizendo que eu as abandonei e depois resolvi voltar, então criei essa história estúpida para não ter que admitir que deixei todos para trás.

Por um momento, pensei que pudesse ser verdade. Talvez eu tenha me convencido com a própria história e tenha esquecido tudo, de fato. Lembrei do velho, da mulher do fundo do rio, do homem de cavanhaque que queria que eu fosse embora. Nada fazia sentido.

Deixei minha irmã falando sozinha na cozinha, fui até a porta da sala e tentei abri-la. Mas ela estava trancada e não haviam chaves à vista. Minha mãe temia que eu desaparecesse de novo devido à minha "Fragilidade psicológica momentânea", então basicamente eu teria que passar o dia enclausurado na casa dela.

Sem muita opção, decidi assistir a TV, ver o que acontecia no mundo lá fora, ver o que mudou enquanto eu estive debaixo do gelo. Mas antes que eu pudesse perceber, já estava hipnotizado por meus próprios pensamentos, por minha própria dúvida que me torturava. Já não via ou ouvia a TV - ou a minha irmã. Apenas eu, a poltrona e minha mente despida de memória.

Me lembrei do gelo se rompendo sob meus pés e de mergulhar nas águas escuras e mortalmente geladas do rio. Eu gritei, mas não havia ninguém para me escutar. Me cansei de lutar, afundei. Me entreguei quando meus pés encontraram o cascalho no leito do rio. Foi quando eu vi ela.

Ainda não consigo me lembrar o que aconteceu antes ou depois disso. Não lembro porque estava caminhando sobre o rio - algo estúpido demais até mesmo para mim. Também não lembro o que aconteceu depois que eu saí. Eu simplesmente apaguei e acordei no hospital. Sete anos depois.

Imaginei o desespero dos meus pais ligando em necrotérios e hospitais, esperando uma notícia boa das equipes de busca, nem que fosse ao menos um corpo para enterrar. Imaginei minha mãe no frio pregando cartazes em postes por toda Nova Escócia. Pensei como o peso da dúvida era muito maior do que qualquer certeza difícil de encarar.

Não saber onde eu poderia estar por todo esse tempo deve ter sido pior para eles do que se soubessem que eu estava morto. Como foram esses anos pra mim? Senti falta dos meus pais, dos meus amigos? Onde quer que eu estivesse, eu estava feliz? Eu tinha medo de encontrar as respostas. Tinha medo de realmente ter escolhido deixar todos para trás, causar tamanho sofrimento a todos e simplesmente ter voltado.

Tinha medo da pessoa que eu me tornei de lá pra cá, a pessoa que eu não mais sabia quem era.

Sempre que me olhava no espelho, achava assustador ver como eu mudei. Antes, eu não tinha barba e meu cabelo era mais cumprido. Eu era mais magro também e não era tão pálido. Eu tinha cicatrizes antigas que não conseguia explicar, sensações que tomavam minhas entranhas sem entender o que realmente acontecia.

Percebi que não tinha mais como tomar minha vida de volta. Não havia mais como voltar de onde parei, me tornar de novo o rapaz que caiu no gelo fino. A pessoa que eu era morreu naquele natal debaixo do gelo. Decidi que partiria quando despertasse. Encontraria as repostas para minhas perguntas. Entendi que seria mais um peso para minha mãe do que um alento por ela ter finalmente encontrado seu filho desaparecido.

O filho dela estava morto. E se estivessem certos, logo eu estaria também. Eu precisava deixar aquele lugar o quanto antes, pelo bem de todos, por mais que fosse doloroso. Decidi partir ao amanhecer, no último dia do ano.

À noite dormi profundamente. Sonhei que dirigia para o Oeste e atravessava  o país até chegar às Rochosas. Sonhei que gritava meu nome e as montanhas ecoavam infinitamente a minha voz. Mas não havia sequer uma alma viva para me ouvir.

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