quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

As Crônicas dos Piores Dias de Minha Vida #1

Isso foi há quase três anos atrás quando toda a merda do planeta parecia ter atingido o ventilador da minha sala de estar. Eu estava sentado nesse karaokê em algum lugar da Santa Cecília assistindo o Doda fazer a melhor performance possível de Last Kiss com seu affair da época, a coreana das poesias do tumblr, aquela de quem eu não gostava. Eu estava sentado vendo eles cantando, ou melhor, vendo ele cantando e ela tímida do lado dele do pequeno palco ensopados pelas luzes azuis de neon que me levavam a mais absoluta náusea. Estava sentado ao lado de sei lá quantas amigas dela com quem eu não consegui (ou não quis) trocar uma só palavra a noite toda. Eu estava ocupado demais sufocado com toda meu remorso e ira. Aquele que me acompanha até hoje.

Eu queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali, no meio da horda que sorria, aplaudia e cantava junto. Isso foi antes dos smartphones se popularizarem, foi antes de todo mundo ter a possibilidade de ser sugado pela internet no meio de situações sociais. Pelo menos eu ainda não tinha um, não podia ignorar o mundo ao meu redor e simplesmente ir chorar minhas mágoas no Twitter - eu nem tinha um Twitter ainda. Tudo o que eu tinha era um maço de cigarros e talvez esse tenha sido o único dia da vida em que esse vício valeu o preço que cobra. Meu álibi perfeito para sair de perto de todo mundo e ir fumar no mezanino, meu cúmplice no crime de não desejar participar de situações sociais por medo do constrangimento. É impressionante como eu me sinto nu em qualquer lugar com mais de cinco pessoas que eu não conheço.

Subi os três lances de escadas tentando fugir do som da música do outro ambiente assim que possível. Um ritual que eu repeti bastante naquela noite, fumei pelo menos uns quinze cigarros. Respirei o ar frio e senti a garoa fina me molhar o rosto pensando que eu nem deveria ter saído de casa naquele dia. Eu fui por causa dele, por sua insistência e teimosia. Doda foi quem me levou para São Paulo naquele mês de Março. Pagou pela minhas passagens, bancou quase todos os gastos da viagem, ele queria mesmo a minha companhia. Algo que ele fez mais por mim do que por ele na verdade. Ele queria me tirar da bolha, me levar pra ver o mundo lá fora, tentar me fazer sair do buraco de onde eu tinha me enfiado. É isso que amigos fazem e ele era - e ainda é - o melhor deles. Independentemente do esforço dele - ao qual sou grato até a data presente - a verdade é que eu me senti extremamente sozinho e isolado durante toda aquela viagem. E é sobre isso que escrevo.

Encostei-me no parapeito, puxei um cigarro de dentro do maço, acendi, traguei e exalei uma fumaça branca e densa que parecia dançar pelo ar enquanto eu olhava o movimento na rua lá embaixo. Na época, eu ainda fumava Dunhill Carlton Blend de filtros brancos com a embalagem mais bonita possível, isso foi antes de eu trocá-los pelo Marlboro Red - que é substancialmente mais forte -  influenciado por outra amizade. E por ser uma marca mais fraca, eu fumava mais, então já era a enésima vez que eu subia naquele mezanino que funcionava como fumódromo em menos de duas horas.

Eu observava os táxis que chegavam na porta dos bares e boates com moças de vestidos bonitos ou saias justas tentando fingir que não estavam com frio. Os rapazes de camisetas polo listradas falando alto na porta de uma casa de eventos, carros e ônibus disputando espaço pela e estreita e, ainda sim, movimentada rua. Desejei ser como todos os que estavam lá embaixo, desejei ser qualquer um menos eu mesmo naquela noite. Eu ainda não tinha me acostumado, mas seria uma sensação bastante recorrente. Foi nessa época que eu descobri que a mais cruel de todas as prisões é não se sentir confortável debaixo da própria pele - algo que eu me lembro de dizer há um tempo atrás.

Aquele foi o fundo do poço. Eu não tinha nada, ninguém. Eu não tinha dinheiro, vontade, estudo, trabalho, perspectiva de futuro. Se eu tivesse morrido naquele dia, teria sido um alívio. Tudo o que tinha me levado até ali, tudo aquilo sobre o que eu já escrevi tantas e tantas vezes, todos os fantasmas que me assombram até hoje e me levam ao limite do suportável levando-me a crer se eu já o atravessei ou não.

E aquele foi um dos momentos que eu escolhi como controle.

Aquele momento em que Doda cantava Last Kiss ao lado da coreana no Karaokê aos aplausos dos clientes bêbados enquanto eu fumava um cigarro atrás do outro como pretexto para não estar lá como todo o resto. Um de vários momentos em que simplesmente ser tornou-se algo insuportável ao ponto de eu não querer mais a dádiva-maldição que é estar vivo. Mas eu não desisti. Eu mereço tudo aquilo que já aconteceu e tudo mais que ainda vai acontecer. Os altos e baixos, as vitórias e derrotas. Até o momento em que eu perca totalmente a minha sanidade.

Até lá, eu decoro as paredes da lembrança com todos esses momentos-controle que eu pintei em telas imaginárias para que eu possa recordar com riqueza de detalhes nas madrugadas de insônia, nas fugas ao banheiro durante ataques de pânico na faculdade, nos dias em que me sinto tão sozinho e isolado ao ponto em que me convenço de que sou a única pessoa viva a caminhar sobre a face da Terra. Para não me esquecer que eu já estive pior, que se passei por aquilo e vou passar pelo resto. E quando eu me sinto tentado a rasgar minha própria pele para escapar dessa prisão e ser qualquer coisa menos isso que sou dentro desse caixão de carne e osso e finalmente me sentir vivo, eu penso que passei vivo pelo final do último ano e pelo começo do ano anterior, então nada mais pode me impedir de continuar.

Tenho chegado ao meu limite, tenho evitado as pessoas que amo, ando "esquecendo" meu celular desligado para não ter que falar com ninguém, estou dormindo no sofá porque só Deus sabe o quão difícil é sair da minha cama nesses dias. Mas talvez Ele nem exista afinal de contas. O que nunca foi importante pra mim de fato. Ainda tenho meus quadros na parede para contemplar, mas elas já estão quase lotadas e nos últimos dias eu tenho precisado de mais espaço. Muito mais espaço.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois Mil e Quinze

De novo. Todas as músicas que me fizeram passar por mais um ano. Que me fizeram amadurecer e crescer de novo e de novo.

Janeiro

"I was falling for a girl who would ask me to come over
Just for a day, when her parents were away,
Now all I can do is lay in my room,
Fall asleep, dream of you,
Then wake up and do nothing about it"
Fevereiro
"You miss me when I'm gone
But when I'm around it's like I'm hidden behind the paint on the walls
The loneliness will keep me warm tonight
It'll keep me warm seeing as you won't"
Março
"I know my wounds will heal with timeBut still I wear all my scars with pride"

Abril

"I'm starting to believe that there's a god and he hates me.
I'm starting to believe that my mom lied about grace and divinity"

Maio

"Self medicate cause I'm sick (I've got nothing in common)
Of cutting ties much to thick (With anything anymore)
Please make this painless and quick
Please make this painless and quick"

Junho

"Is our skin to keep the world out or our bodies in?
This doesn't look like home, this doesn't look like home.
Is our skin to keep the world out or our bodies in?
I'll tear apart the town then sleep, and sleep alone."
Julho

"So rest in peace for the living dead
And where you sleep is where I plan to make my bed
I've got a song that belongs on your right arm
I need to know what you feel
And if you mean no harm"
Agosto

"I've lost count of all the times I've made it home alive...
And wished I hadn't"
Setembro

"I'm not sure what's worse
The waiting or the waiting room
and "You're next sir" becomes a cruel taunt to you
Recycled air, the smell of sleep and disinfectant
Your God is a two door elevator"
Outubro

"Cause you were heat lightning.
Yeah you were a storm that never rolled in.
You were the northern lights in a southern town, a caustic fleeting thing.
I’ll bury your memories in the garden;
I’ll watch them grow with the flowers in the spring.
I’ll keep you with me"

Novembro

"I lie for only you
And I lie well...
Hallelu..."

Dezembro
"We cast our hearts in plaster
We imagined our bodies were fashioned from stone
But they chipped at the brick and mortar
We found out that we're only layers of skin hiding bone
And our bones are like chains, old and rusted in the rain
They're going to snap when the weight shifts"

sábado, 28 de novembro de 2015

Os meus ratos no porão.

Acho engraçado como nós não nos desapegamos facilmente de velhos hábitos. Já há muitos anos não sou mais um católico praticante. Há um bom tempo sequer tenho fé ou religião. Há alguns meses descobri que não me importo mais. Mesmo assim, ainda faço o sinal da cruz quase sempre quando passo por uma igreja.

Eu já não me sinto mais tão mal durante as aulas na faculdade, mas ainda tenho que me sentar de costas para a parede para não surtar com a possibilidade de ter alguém me observando de um lugar onde eu não possa vê-lo(a). Eu já não me sinto tão desajustado em relação a tudo e fora de lugar o tempo todo, mas se eu estiver sóbrio ainda tenho ataques de ansiedade em lugares lotados, em shoppings, em shows, em bares, em festas. E até em casa sozinho no meio da madrugada.

Não consigo deixar de pensar na história de pessoas que tem membros amputados, mas juram que ainda podem senti-los. Eu sou um homem sem pernas mexendo os dedos do pé.

Ainda temo pelos ratos no porão mesmo sabendo que não há mais nenhum deles lá. na verdade, não há porão algum.

Talvez seja o medo de mim mesmo que me torne constantemente execrável. Talvez eu esteja doente esse tempo todo e por isso tudo que eu penso, falo, escrevo e faço me soa cada vez mais patético e vergonhoso. Mas ainda estou aqui.

Eu já me sinto em casa em muitos lugares, mas não chego abrindo a geladeira e pondo os pés sobre a mesa. Questão de hábito ou vício, maneirismos ou filosofias. Eu ainda odeio a pessoa que eu vejo no reflexo do espelho do banheiro pois ela tenta ser algo que não é para evitar a realidade de sua insignificância. Até eu preciso estar ébrio pra me suportar, não posso julgar quem faz o mesmo.

Tenho divagado demais, me adiado demais, me criticado demais. No final, talvez seja porque eu goste, talvez seja parte da minha identidade sentar de costas para a parede. Talvez eu apenas goste de igrejas. Talvez a inaptidão seja parte de um conjunto de hábitos, e não uma característica. Até porque, ainda acho espaço para a arrogância e prepotência num mar de auto-consciência, auto-destruição.

Estou derrubando meus muros, meus dilemas morais, meus paradoxos éticos. Cansei dos velhos tecnicismos, da burocracia dos meus códigos de conduta. Mas ainda sinto cometendo algo de errado numa madrugada de Domingo quando todo meu corpo me diz estar cometendo um crime que minha mente não consegue enxergar.

Ainda faço o sinal da cruz quando passo por uma igreja. Ainda me deixo acreditar estar mais triste do que realmente estou. Ainda preso a pessoas que não amo mais. Ainda perseguindo fantasmas que sei que não existem. Ainda me vejo vítima de suicídios que eu sei que não vou cometer.

Sou escravo de meus próprios dogmas. E nada mais

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sirenes

Me disseram que quando os alemães se renderam a sirene da Companhia Antárctica tocou por horas seguidas e essa cidade inteira - o mundo inteiro na verdade - celebrou ensandecidamente. Como uma final de Copa do Mundo ou uma festa de seis anos novos seguidos com a única diferença: ninguém enalteceu o autor dos gols ou fez promessas que não cumpriria depois de muito bêbado. Contaram os corpos de sessenta milhões de pessoas e o incalculável estrago material de quase seis anos de guerra. Houve quem nunca mais voltasse pra casa. Houve quem perdeu a família inteira.

Eu faço parte de uma geração que fracassou em praticamente todos os sentidos, jamais conseguirei entender como as pessoas passaram por aquilo. Hoje nós não chegamos à idade adulta sem meia dúzia de anti-depressivos, sem uma ou outra tentativa de suicídio, sem sermos diagnosticados com distúrbios que nem sabíamos existir até certo tempo atrás. Somos o feto abortado pela TV por assinatura porque o sabonete anti-bacteriano não quis assumir a responsabilidade. Não conseguimos olhar o mundo à nossa volta e nos divertir porque estamos ocupados demais de cabeça baixa olhando nossos smartphones tentando convencer pessoas tão miseráveis quanto nós mesmos que vivemos a vida que sonhamos viver.

Eu seria modelo perfeito para ilustrar a decadência dessa juventude. O atrapalhado quase herói tragicômico do programa popular da televisão. O Dom Quixote que vive o drama de não lembrar a senha do Wifi ou de não ter tantos seguidores no Instagram quanto gostaria. A epopeia trágica do consumidor inconformado quando o atendente do McDonald's esqueceu de esclarecer no pedido que o Big Mac era realmente sem pickles. O drama do nerd punheteiro tarado na garota mais bonita do colégio, mas que não tem auto-estima o bastante para sequer conversar com ela e que usa seu próprio fracasso para construir um discurso misógino que nem ele compreende. A incrível geração de gênios que não fazem nada de genial, que pouco ou nada contribuem com o mundo em que vivem mesmo tendo nascido na época mais próspera, pacífica e livre da história. O frustrado e egocêntrico blogueiro que pensa ser escritor só porque digita um monte de lixo sobre ele mesmo e que finge não se importar por não ter sequer dez leitores.

 Foda-se isso, eu desisto. Eu não quero fazer parte disso. Eu não quero participar.

Isso não é bem uma carta de despedida, mas sim os termos da rendição. Porque eu cansei de tentar nadar contra a corrente, cansei de tentar ser mais do que isso, cansei de tentar impressionar. Não tenho mais recursos nem palavras. Nem coelhos para tirar da cartola, nem ases para sacar da manga do paletó. Não tenho mais paciência para lidar com a hipocrisia de vocês, não tenho mais equilíbrio para ouvir tantas mentiras agradáveis. Eu não posso mais me apegar a elas. Antes, era mais fácil ser forte, agora tudo parece longe e fora do meu alcance. Não adianta tentar reconstruir minha fortaleza, levantar meus muros, começar de novo. Hoje, minha defesa é uma cartela de Valium e meia dúzia de latas e cerveja. Um punhado de livros que amo sem ter lido, uma porrada de gente que carrego sem ter amado, um rancor maior que minha própria força de vontade, uma indiferença cada vez mais latente e a esperança do mundo ser um lugar melhor quando eu acordar daqui uns cinco dias.

Isso não é um adeus, é um até logo. Até o dia em que possamos nos ouvir e nos entender. Até o dia em que possamos ser melhores. Pois passei sei lá quantos anos achando que eu e minha vidinha éramos uma merda, mas percebi que não sou o único. Isso é uma doença social e quase todos nós estamos enfermos. Ébrios. Sujos. Estúpidos. Maldosos. Imperfeitos. Adoráveis. Humanos.

Ouço as sirenes soando, elas vieram me levar pra casa.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

So(m)bras de Outubro

É Outubro de novo. E eu estou escrevendo outra carta que você nunca vai ler esperando que seja a última, mas sabendo que não deve ser. Mas tudo bem. Essa será a mais vazia de todas elas pois já não sei mais o que dizer. Já me faltam palavras, já me faltam maneiras de descrever o que tem se passado desde que você saiu da minha vida.

Eu sempre achei que esse sentimento fosse passar, sempre achei que com o tempo eu fosse esquecer, deixar de pensar isso. No primeiro ano, choraria como se estivesse revivendo aquilo tudo de novo. No segundo, repetiria numa intensidade menor. No terceiro, relembraria sem lágrimas e sem dor, apenas saudade. Acreditava que no quarto já deixaria a data passar batida, que eu nem lembraria. Eu jamais imaginaria que no oitavo ano eu ainda me sentiria tão mal quanto me sinto agora, aqui, escrevendo essas palavras. E posso te dizer que curiosamente, não é tristeza o que eu sinto.

É complicado. É uma mistura de angústia, raiva e saudade. Você me faz muita falta, mas sobretudo, a pessoa que eu era me faz muita falta. Por mais que eu deteste quem eu fui, eu era mais feliz sendo aquela pessoa. Eu não pensava demais, eu tinha cicatrizes a menos e fôlego a mais. Eu sei que saberia quais palavras escolher se estivesse aqui hoje, sei que me impediria de entrar em diversas enrascadas, que me ajudaria a sair de algumas outras e que pelo menos estaria lá para dizer que me avisou na maioria delas.

Será que você sabe o quanto tua sombra tem moldado aquilo que me restou pra ser?

Eu ainda me pego pensando em você. Na verdade, o tempo todo você está comigo mesmo quando não é Outubro. Você está espalhado por todas as coisas que eu escrevo aqui ou nos rodapés de caderno, nos cupons fiscais amassados, nas folhas de guardanapo dos bares, no verso das provas da faculdade. Eu ainda te ouço nas músicas que eu escuto e te enxergo nos filmes que assisto e nos livros que leio.

Te imagino calçando os chinelos pra ir comigo comprar pão na padaria num sábado de manhã. Vejo você no quintal brincando com os cachorros ou no quarto jogando videogame. Te vejo correndo pela rua e abrindo o tampão do dedão do pé jogando futebol no asfalto escaldante. Queria lembrar de mim mesmo dessa maneira, mas só me enxergo quatro dias depois do funeral voltando pra casa sozinho debaixo de chuva e sol fazendo o máximo possível pra não chorar. Hoje eu já não consigo mais. Você acharia irônico sabendo o quão fresco e chorão eu já fui.

É isso que você tirou de mim no dia em que eu te vi naquele caixão. É por isso que tem dias que eu te odeio mais do que te amo. Sua perda me obrigou a ser alguém que eu nunca quis ser e de quem não me orgulho. E o pior de tudo é ter feito uma promessa que eu nunca conseguiria cumprir. Aquela de viver tudo aquilo que você não teve tempo. Eu só consigo pensar na ironia do destino pois eu tenho certeza de que você gostaria de estar aqui agora enquanto eu não gosto. A certeza de que você merecia a vida que hoje eu desdenho. Você não tinha o direito de tomar meu lugar naquele caixão bem como eu não tinha o direito de ficar com o teu aqui em vida.

Eu me odeio pelo fato de saber que você é quem deveria estar aqui vivendo a vida que eu muitas vezes não quero viver. Porque sei que não voltaria frustrado para casa por ter chegado inteiro quando desejou profundamente que um motorista bêbado te acertasse na calçada ou que um assaltante com o dedo nervoso no gatilho trombasse com você pela rua. Eu sei que você não pensava nesse tipo de coisa. Você era um rapaz normal, saudável, alegre.

E ultimamente, tenho pensado muito numa saída de emergência, mas só como uma ideia distante, só quando eu não suportar mais respirar a fumaça desse incêndio no teatro chamado vida. Mas a ideia de que eu jamais te encontraria se eu fizesse é atormentadora. Pois se existe um céu, eu sei que você está lá, mas não tenho certeza se é pra lá que eu vou quando minha hora chegar. Mas também não me vejo no inferno. Mesmo depois da vida, não pareço me encaixar em lugar algum.

Naquele Outubro, você foi embora e me tirou o direito de viver uma vida vazia, sem significado ou propósito. Você tirou de mim o direito de não ter ambição alguma, de não amar o fato de acordar respirando todos os dias. Você me deu esse sentimento de culpa por não ser o melhor que eu poderia ser, por não ter todas as coisas que poderia ter e de não alcançar a plenitude que eu sei que você alcançaria em meu lugar. Mas hoje, oito anos depois eu te exonero da posição de guia, da função de me orientar, da responsabilidade de ser o modelo do que eu quero seguir. Te tiro o fardo de ter que saber que eu fracassei porque você não estava mais lá. Nunca foi sua culpa. A culpa foi toda minha, o tempo todo. É hora de seguir em frente.

Eu vou te esquecer.

Eu te amo, mas eu preciso. É a única maneira da minha vida continuar. E ela vai continuar de um jeitou ou de outro.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Obrigado, estranha

Eu odeio acordar cedo.

Normal, acho que quase ninguém gosta. Fica aquela sensação de não estar de fato acordado, mas também não estar dormindo. É aquela uma hora, uma hora e meia que você levanta e fica no piloto automático. Eu tava assim hoje as nove e pouco da manhã quando saí de casa.

O de sempre: caminhada longa, fones de ouvido, mochila nas costas. Estou tendo uma semana boa, então diminuí com as músicas tristes e aumentei o passo. Foi quando passei por um ponto de ônibus e essa senhora me chamou atenção.

Tirei os fones para ouvir o que ela estava dizendo. Ela falava comigo como se estivesse continuando uma conversa que começou quando eu saí de casa. Conversava como se fôssemos amigos e eu não conseguia entender. Ela estava maltrapilha e cheirando a aguardente, foi então que eu entendi.

E não vou negar, a gente é escroto pra caralho. Muitos dias da minha vida eu simplesmente seguiria meu caminho e ignoraria o que a senhora tinha pra me dizer. É isso que a gente faz todo dia. Presenteamos com a nossa indiferença e todo e qualquer um que não tenha nada a nos acrescentar e puxamos sacos e corremos atrás de quem acreditamos ter mais do que a gente. Mas foi quando me despi dos preconceitos da aparência e prestei atenção no conteúdo da mensagem que ela passava que eu me surpreendi. E é por isso que escrevo esse texto hoje.

- Tenho 65 anos meu filho, vivi a vida toda pelos meus filhos, nunca tive tempo pra mim. Hoje to enfiada nessa merda, mas já estive muito melhor - apontou para o copo descartável com um líquido transparente abraçado por seus dedos negros e trêmulos. Sua mão estava ensanguentada e eu tentei entender porque, ela não parecia machucada.

- A gente não pode viver pelos "outro" não - ela continuou me fitando com olhos tenros como se eu fosse um filho ou um neto seu - faz da sua vida aquilo que tu "quer". Vá ser feliz e não deixa ninguém dizer que "cê" não pode. Nem família, nem "muié" e nem ninguém. Você estuda moço?

- Sim, estudo - respondi.

- E o que você estuda?

- História - eu já tinha parado, tirado os fones de ouvido. Eu estava intrigado por aquela figura que me abordou sem hesitação e trazia palavras que faziam tanto sentido pra mim. Logo hoje, logo agora.

- E é isso o que você quer pra sua vida?

Eu sorri sem graça e não soube responder. É isso que eu quero pra minha vida? Digo, eu gosto muito do curso, gosto do que estou fazendo hoje, mas nunca foi o que eu quis, nunca foi algo com o que eu sonhei.

- Eu não sei. - Respondi tentando não deixar o sorriso amarelo ir embora.

- Mas então "ouve" o que eu digo menino: vai atrás daquilo que você quer e deixa quem quiser falar, nada disso importa.

As palavras reverberaram na minha cabeça. Eu tinha que ir, mas não queria deixar aquela senhora falando sozinha, não queria ser rude e ter pressa o tempo todo como todo mundo faz. E, logo ali, comecei a tomar as decisões por mim mesmo: se eu não quisesse ter pressa, não teria. Pronto. Mas como uma figura sobrenatural que sabia exatamente o que dizer para ter minha atenção por alguns momentos, a senhora percebeu que eu tinha que ir. Estendeu a mão suja de sangue que apertei sem hesitar.

- Te serviu essa palavra rapaz? - perguntou ainda segurando minha mão.

- Muito. Eu precisava ouvir isso.

- Muito bem. Segue teu caminho e vai com Deus - beijou minha mão e a soltou como se deixasse ir, como se abrisse a gaiola de um pássaro preso há anos que já abandonara há muito seus sonhos de liberdade.

- E a senhora fique com Ele também. - respondi e retribuí a saudação mesmo sem acreditar em Deus algum. Ás vezes não é da fé que a gente precisa, mas é tentar tê-la que nos faz bem. - Tenha um bom dia.

Atravessei a rua e acenei de longe. Ela me acompanhou de sorriso no rosto. Pensei nela o caminho todo, pensei nela o dia inteiro de tal forma que agora tenho que dividir através dessas palavras o peso que senti com o simples gesto dessa senhora. Não foi com dó, piedade ou empatia que olhei nos olhos dela. A encarei como igual. Mais do que isso, encarei-a como alguém que havia vivido mais do que eu, que sabia mais do que eu, que tinha algo a acrescentar que talvez ninguém tenha.

Talvez fosse apenas a cachaça, talvez nem ela soubesse do que estava falando. Talvez tenha sido tudo um devaneio meu enquanto ainda no meio termo entre desperto e adormecido. Talvez eu esteja mesmo perdendo a sanidade. Mas isso realmente importa? Ela me fez lembrar do óbvio que muitas vezes a gente esquece. O oxigênio que respiramos todos os dias, mas que não lembramos existir a maior parte do tempo. Somos donos do nosso destino, de nossas vidas, de nosso próprio tempo. Parece óbvio, batido, clichê, mas hoje me soou como novidade.

Por adicionar sentido ao meu dia e à minha semana, obrigado estranha. E espero que encontre aquilo que estás a procurar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre filas de banco, nomes de puta e suicídio

Existem duas coisas que eu odeio com todas as forças nesse mundo mais do que quaisquer outras: a primeira é quando eletrônicos ou soluções práticas da tecnologia que servem para facilitar nossa vida não funcionam como devem e acabam atrapalhando mais. A segunda é tentar muito lembrar de alguma coisa e não conseguir. E nesse dia os dois estavam acontecendo ao mesmo tempo.

Lá estou eu parado na fila do banco tentando ao máximo lembrar quem era a moça irritantemente simpática que chegou com o marido e começou a conversar comigo como se fôssemos amigos há muitos anos e eu tentando fingir que sei do que ela tá falando. E pra começo de conversa eu só estava lá porque eu estava com um problema no Internet Banking. Fui até a agência, peguei uma merda de uma senha, sentei e esperei a minha vez quando chegou a convenção nacional de velhinhas que tem atendimento preferencial e vão me fazer esperar até o Natal. E a nossa amiga tagarela que sentou do meu lado e já chegou como se tivéssemos toda a intimidade do planeta e começou a conversar comigo sobre fulano e ciclano.

Ficou óbvio em determinado ponto da conversa que ela definitivamente estudou comigo no Ensino Médio. Foi entre ela me apresentar o marido e eu querer morrer por ter que tirar os fones de ouvido interrompendo uma linda canção sobre estar retardado de tanto cheirar cocaína. Pelo menos é o que eu acho que todas as músicas dos Stooges estão dizendo. E para piorar o cenário, eu estava um uma latente vontade de cagar que me fazia suar frio. E se você tivesse prisão de ventre, você saberia o quão sagrada é a vontade de cagar. Você tem que ir assim que ela aparece pois esses momentos são raros. Você se senta bem à vontade e espera até um cotovelo sair da sua bunda e até o último fio e cabelo do seu corpo se lamentar em arrependimento por não ter ingerido mais fibras.

Foi quando eu comecei a lembrar.

Eu estudei mesmo com aquela moça, não éramos amigos, mas fizemos um trabalho juntos uma vez. Talvez no segundo ano, não sei. Mas tanto faz. Já me sentia melhor por me lembrar quem era ela, mas ainda não lembrava o nome. Mas tinha certeza que era um nome de puta e travesti. Sim, existem nomes típicos de travestis e prostitutas.

E eu segui pensando os nomes para encontra o da dita cuja enquanto ela tagarelava:

-... então, no ano passado eu fiz uma viagem com (insira o nome de pessoas que ela acha que eu sei quem são, mas que eu não faço ideia de quem sejam) e foi muito bom, deu pra lembrar bem daquela época. A gente era foda pra caralho, você lembra de quando (não prestei atenção nessa parte)...

-
Lembro, claro! (Brenda, Caitlyn, Carolayne, Kelly...,)

-...
e depois da faculdade eu meio que fiquei sem saber o que fazer e tal foi quando eu conheci o (nome do trouxa do marido)...

-
Poxa, feliz por vocês? Já faz quanto tempo? (Natasha, Rebeca, Sabrina...)

-
Vão fazer dois anos agora em Novembro.

- Pra você ver como o tempo passa né? (Camile, Daniele, Emmanuele - e eu sei que você pensou no que eu pensei - Manu..) 

- Mas e o Pedrão, vocês ainda são amigos?

Mannuelly com dois N's, dois L's e Y. Eu me lembrei, mas foi quase irrelevante quando ela perguntou do Pedrão. Oficialmente, Pedro Luiz, mas todo mundo conhecia por Pedrão pra não confundir com o Pedro Victor que era o Pedrinho. Todo mundo conhecia o Pedrão, conheciam tanto que ninguém dizia meu nome, as pessoas falavam do "moleque franzino que tá sempre com o Pedrão". Acho que metade das pessoas que já estudaram comigo ou dividiram um trago só me conheciam por "parceiro do Pedrão". Mas não era por menos, todo mundo conhecia o Pedrão. Todo mundo mesmo.

Pedrão já frequentava o meio universitário antes de terminar o segundo ano. Era o filho da puta mais gente boa do planeta, não houvesse um só cara que não gostasse do Pedrão. Os que o faziam era por inveja pois Pedrão com 21 anos já tinha comido mais bocetas do que nós comeríamos a vida toda A mulherada era louca por ele. Pedrão era bonito, legal, inteligente, conhecia todo mundo e inventava um apelido pra quase todos que conseguia. Era difícil sair com ele sem encontrar alguém que o conhecesse. Ás vezes ele chegava a ser irritante por ser tão legal.

Ele tinha um sorriso perfeito, mas a risada dele era escandalosa e escancarada e quase sempre vinha acompanhada de um ronco quase suíno e constrangedor. Mas isso nunca o incomodou. Pedrão era despido de qualquer vaidade, de qualquer vergonha. Carregava um sorriso honesto, ingênuo o bastante pra enganar, quase bobo. De bobo ele não tinha nada, muito pelo contrário: embora benevolente, foi sempre cheio de malícia e segundas intenções.

Começamos a perder contato quando ele foi cursar medicina em outra cidade. Ele voltava nos fins de semana, mas a gente nunca tinha tempo, os ciclos mudaram, a vida caminho num sentido diferente para cada um de nós. É assim que as coisas são, nós éramos amigos até que, um dia, não éramos mais. Cada um tinha sua vida e, de vez em quando, a gente se falava isso sempre bastou. Nunca cobrei muito das pessoas e não gosto dessa cobrança também.

Mesmo assim, eu fui a primeira pessoa a chegar ao hospital. Pedrão tinha vinte e cinco anos quando deu um tiro na própria cabeça. Foi o cara que dividia quarto com ele que ouviu o tiro e socorreu Pedrão só de cueca caído no chão com a cara enfiada numa poça de sangue vermelho vivo. Ele tinha largado a faculdade há algumas semanas e fazia um tempo que ninguém o via.

Não entrava na minha cabeça essa história. Pedrão era o extremo posto do cara que eu imagino ser um suicida. Pedrão não era o moleque do fundo da sala que não tinha amigos. Pedrão não sofreu abuso sexual quando era criança. Pedrão não tinha um histórico de violência na família. Ele vinha de uma boa casa, de uma boa formação. Era um cara alegre e vibrante que estava sempre sorrindo e tinha amigos de sobra. Pedrão era o cara que não ficava um só final de semana em casa desde que tivesse saúde o bastante pra ir encher a cara. Ele não costumava ir pra cama sozinho por falta de opção e tinha uma caralhada de aspirações, vontades, sonhos. Não sei se você entende, mas ele não era do tipo que eu pensava que fosse desistir.

Porém a história dele não acabou ali. Pedrão errou o tiro que tiraria sua vida por alguns centímetros. A falha que salvou sua vida. É bem verdade que ele esteve em coma por um tempo e ele teve algumas sequelas. Mas Pedrão voltou a falar, a pensar, a respirar sozinho. Ele teve que reaprender a andar de novo. Largou a cadeira de rodas 17 meses depois do disparo que quase tirou sua vida. Conseguiu andar sem muletas depois de 21 meses mesmo que ainda mancasse. Pedrão sobreviveu ao que parecia impossível. Mas havia algo de errado.

Pedrão se tornou Pedro Luiz de novo, uma máquina humana que respirava, acordava, dormia, metabolizava energia e cagava, mas eu nunca mais tive certeza de que estava viva, mas estava óbvio que o Pedrão que eu conhecia morreu no chão daquele quarto de República. Seu sorriso rareou, não havia mais risada escandalosa com ronco, não havia mais aquela malícia no seu olhar. O que sobrou era uma versão reconfigurada e rasa dele. Um projeto de qualquer coisa que jamais será coisa alguma. Me senti culpado por pensar assim, mas sofri mais vendo aquele Pedrão sobreviver do que quando eu tive certeza de que ele não sairia da UTI.

Eu nunca consegui perguntar o porquê, o como, o quando. Eu nunca tive coragem e sempre que entrávamos no esse assunto, ele era evasivo, dizia não se lembrar de nada nos dias que antecederam o tiro. Eu não conseguia imaginar o que teria feito ele perder a fé daquela maneira, mas sabia que aquilo ceifou algo mais que valioso que sua vida. Aquele tiro levou embora sua vontade de viver, a vibração que ele tinha e acho que a morte não pode ser algo muito pior que isso. Eu nunca soube e nunca vou saber o que ele viu, ouviu, viveu, sentiu que lhe fez tomar um decisão tão drástica para com a própria vida, mas eu temo todos os dias desde então.

Pedrão era o melhor de nós, o mais forte. Se ele não estava seguro, quem estava?

- Putz! Faz muito tempo que eu não vejo ele. Olha, meu número! Deixe-me ir, foi bom te ver.

Levantei olhando o monitor que apontava a minha senha e nem dei tempo pra antiga colega se despedir. Sentei na frente do rapaz de gravata que sorria e perguntava no que podia me ajudar enquanto eu pensava que deveria tirar o esquecimento da minha lista de coisas que eu mais odeio. Ás vezes é melhor não lembrar.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

N.O.D.

Coletei pequenos fragmentos de memórias. Pedaços de lembranças que formam quem eu sou, partes de mim perdidas através do tempo. Pequenos manuscritos e bilhetes que encontro empoeirados pelos cantos prontos para serem re-lidos. Prontos para receber novas roupagens, novas interpretações. De tempos em tempos, são tudo o que tenho e tudo o que sou.

-

Cheguei em casa numa manhã e não consegui abrir a porta da sala. O miolo da fechadura estava arrebentado e o cilindro prendeu a lingueta trancada e eu só percebi depois. Ela acabara e sair do banho, me recebeu com um sorriso terno, mas parecia abatida, triste. Eu demorei a entender, alguns anos para ser preciso. Eles estavam se divorciando na época, mas ainda não se odiavam tanto quanto fariam nos anos seguintes. Eu era uma criança que já duvidava da credibilidade dos sonhos de estabilidade. Era uma manhã quente de Setembro. Eu tinha nove anos de idade e nunca consegui enxergar nada daquilo. 

-

Ela me beijou na porta da igreja. Foi a primeira vez que alguém fez isso. Eu disse que a amava, era uma mentira mesmo que eu ainda não soubesse, mesmo que eu acreditasse naquilo com toda a minha força. Eu nunca beijei a primeira pessoa que amei e descobri que a não é possível se forçar a amar alguém, mas o caminho contrário pode ser traçado mesmo que seja tortuoso Uma semana depois eu me confessei na mesma igreja pela primeira e última vez. Eu disse ao padre que acreditava não ter pecado de suma relevância. Menti mais uma vez, mesmo acreditando que dizia a verdade de novo. A inocência não me permitia ver que eu não era mais inocente. Era uma tarde ensolarada de Abril. Eu tinha doze anos de idade e nunca consegui entender nada daquilo.
-

Eu parei em frente ao seu caixão e fiquei por um tempo olhando seu rosto. Seus olhos e boca colados, seu rosto num tom de amarelo pastel. Eu não acreditava mesmo ouvindo o choro desesperado de sua mãe ecoando por todo o velório. Ele levantaria, era tudo uma enorme brincadeira de mau gosto. Eu o veria de novo na escola no dia seguinte. Nós iríamos juntos para a faculdade e ele batizaria meu primeiro filho. Não havia na minha cabeça a possibilidade de que nada daquilo aconteceria. Eu demorei quase dois dias para assimilar aquela verdade dura. Demorei a voltar para a escola, evitei fazer todo tipo de amigo, nunca mais quis ir para a faculdade e até hoje não me vejo tendo filhos. Era uma noite negra de Outubro. Eu tinha quinze anos de idade e nunca consegui aceitar nada daquilo. 
-

Ele me socou com força e eu não consegui entender porquê. Eu caí no chão e não senti o terceiro golpe nem os que se sucederam. Eu não tive reação alguma. Nem medo, nem dor, nem raiva. Eu não revidei. Quando ele finalmente me deixou, o sangue escorreu pelo meu rosto e desenhou pequenas gotas vermelhas pelo chão e só então eu percebi que havia me machucado. Eu perguntei "por quê?". A raiva no rosto dele se transformou em remorso. Nos dias seguintes, toda vez que me olhava nos olhos com meus curativos espalhados pelo nariz, testa e lábio eu podia ver que doía muito mais nele do que em mim. E eu me senti vivo. Criei o hábito de fazer o mesmo comigo mesmo sempre que não conseguisse sentir mais nada. Era uma tarde cinza de Novembro. Eu tinha dezoito anos de idade e não sabia de onde vinha toda aquela ira. 
-

Eu esqueci minhas chaves e voltei pro apartamento enquanto ela me esperava no elevador. Ele disse "beije-a". Eu disse que ele estava bêbado e não segui seu conselho. Não porque não quisesse. Por um bom tempo foi a coisa que eu mais quis, mas eu não queria enxergar ela daquela maneira depois que as coisas se complicassem. Eu gostava da imagem que tínhamos um do outro na época, eu gostava do que éramos um pro outro e não podia lidar com a ideia de que um dia talvez tivéssemos raiva um do outro e não quiséssemos mais nos encontrar por acaso nas ruas da cidade. Então eu me afastei. Essa foi minha efêmera maneira de amar. Era uma noite fria de Julho. Eu tinha vinte e um anos e não sabia lidar com esse medo. 
-

Eu não queria mais entrar na faculdade. Eu não queria mais fazer amigos. Eu nunca me senti como parte de qualquer coisa, nunca me senti apto a estar perto de qualquer um. Eu sou totalmente inepto para qualquer coisa que qualquer outra pessoa possa fazer e quero constantemente me afastar de todo mundo o tempo todo por isso. Mas descobri que por ser invisível eu consigo atravessar todas essas ruas sem encontrar mal algum mesmo quando estou desejoso por ele. Nada pode ser pior do que não sentir nada e mesmo um céu nebuloso é melhor do que não ver céu algum. E pela primeira vez pensei que isso pode ser uma qualidade ímpar. Era uma madrugada estrelada de Agosto. Eu tinha vinte e três anos e estava meio bêbado voltando para casa e finalmente me senti no controle da minha vida


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Saco de Ossos

Enquanto o vento frio se arrebentava pela janela do carro eu tentava me afogar com goles d'água enormes para tirar da boca o gosto de vômito e cerveja. Traumas da guerra travada num chão de banheiro molhado e sujo vendo meu reflexo na água do vaso e tentando entender como minha vida tinha chegado até ali. Um saco de ossos, ira e ressentimento tentando fazer seu peso sobre a Terra ser sentido, ansioso para entrar numa briga de bar só pra saber se ainda pode sangrar, se ainda pode sentir qualquer coisa que não o pesado desespero da irrelevância. Eu quis me sentir como uma catástrofe ambulante, a mancha de óleo sobre o Pacífico Norte, o trem descarrilhado indo pra lugar algum, a agulha sem ponta nas veias de um puta triste.

Ouvimos a mesma música tantas e tantas vezes que ela ecoou na minha cabeça e se alojou nos meus pensamentos como se não fosse forasteira. Mesmo essa estranha no ninho tinha uma capacidade maior de se adaptar do que seu próprio hospedeiro, inapto por natureza, ranzinza por opção. Sentamos no mato à beira do final da noite e minha cabeça era uma bagunça sem fim. O explosivo som de uma chuva de chumbo sobre um teto de cristal, meus pensamentos me sufocando no meu próprio inferno pessoal de asfalto, aço, vidro e má índole, a cidade disposta à minha frente à meus pés imersa no mais absoluto silêncio de uma noite fria. Mesmo a música eu já mal podia ouvir.

Foi quando o negro do céu cessado apenas pelo brilho branco das estrelas foi tomando tons de azul escuro sólido, cobalto, ciano e turquesa. Até a mais berrante magenta, o mais intenso laranja, o vermelho escarlate, e o alegre amarelo que tomou o horizonte e desenhou a silhueta negra dos arranha-céus, a espinha dorsal de um monstro cinza de concreto. O imenso deserto onde me senti sozinho por todos esses anos, o lugar de onde eu mais quis fugir, o pesadelo onde por mais que eu tente não posso correr.

E então silêncio. Apenas música.

E depois de muito tempo eu me senti capaz de me erguer sem me despedaçar como se os primeiros raios do sol fossem uma espécie de exorcismo, como se a nossa embriaguez fosse uma celebração, uma marca de luta onde vencemos quem nós um dia fomos, quem nós não queremos mais ser. Quis trocar meu par de algemas por um par de sapatos e correr até onde minhas pernas pudessem me levar antes de se partirem. Quis respirar o ar sem fumaça e sorrir diante da infinita possibilidade de dividir os terrores noturnos, as pilhas de planos que não deram certo, os pensamentos que todo mundo parece tentar evitar e compartilhar das mentes e do afago dos atravessadores da noite. As infinitas caminhadas no meio da noite, os infinitos desejos em manhãs de Natal e noites de Ano Novo.

O infinito que fomos nós mesmo que por uma fração de segundo. E eu fui parte disso.

Isso muda tudo mesmo depois de irmos dormir quando todos já acordaram, mesmo depois que a vida continua com sua desgastante monotonia. Mesmo quando seguirmos reféns da nossa rotina e dos demônios que nos aguardam a cada novo dia. Mesmo que eu ainda seja um saco de ossos, ira e ressentimento ainda há espaço para algo a mais, ainda há uma luz acesa em algum lugar esperando para ser encontrada mesmo que eu ainda precise ter algo para odiar. As coisas são como elas são e não há muito que possamos fazer sobre isso, mas nós podemos ser mais do que aquilo que vemos a cada manhã que nos olhamos no reflexo do espelho.

E mesmo que muitos dias não sejam tão bons e momentos como esse sejam cada vez mais raros hoje, o universo que compreende cada indivíduo ainda é algo que ninguém pode negar e, infelizmente, nem todos pode compreender. E se por uma pequena chance eu me permitir escapar, nenhum fantasma poderá me encontrar e me assombrar de novo já que só aceitamos o amor que acreditamos merecer.

E essa possibilidade é algo que ninguém pode tirar de mim.

Por isso, obrigado.



quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Sétima Torre - Fantasmas do Horário Nobre

Antes de tudo, certifique-se de ler os anteriores
PARTE 1 - A Sétima Torre - No Princípio
PARTE 2 - A Sétima Torre - Boa Vizinhança

Meu olfato nunca foi muito sensível e o fumo sempre foi um hábito que me impediu de aproveitar totalmente aromas e sabores, mas o cheiro de todo apartamento naquela noite de Julho era algo que eu notava facilmente mesmo imerso ao intenso pavor de meu mais sinistro devaneio. Um aroma doce enjoativo de perfume barato misturado a mofo e terra molhada. Meu pai havia morrido há quatro anos, mas eu acabava de vê-lo no corredor arrastando um cilindro de oxigênio com um semblante evidentemente abatido. Sua pele pálida tão clara quanto seus poucos cabelos grisalhos bem como as últimas lembranças que eu tinha antes dele partir.

Eu ainda ouvia sua tosse quando interfonei na portaria em busca de ajuda pelo sei-lá-o-quê e descobri que eu morava sozinho no décimo sexto andar e que era impossível eu estar ouvindo qualquer outra coisa que não fosse o barulho de meu próprio lar. Ou havia algo de errado com todo o andar ou eu havia perdido totalmente minha sanidade: não só ouvia a tosse, mas também uma televisão alta demais, conversas e passos nos apartamentos vizinhos. Quando pedi que alguém subisse para verificar o fato, o homem do outro lado da linha hesitou bastante, gaguejou e não escondeu que não tinha vontade alguma de entrar na sétima torre. A princípio eu não entendia direito o motivo daquilo, mas nos dias seguintes a coisa foi ficando clara como a luz do dia. Tive que ser bastante grosseiro para convencer o senhor da portaria a mandar alguém até meu andar.

Foram quase quinze minutos e quase dois cigarros de espera sozinho sentado de costas para a porta trancada e totalmente apavorado. Eu nunca havia me sentido tão sozinho em toda minha vida e nunca quis tanto ter alguém comigo ali naquele momento mesmo que fosse apenas para dividir o meu medo e minha incapacidade de lidar com aquilo que estava acontecendo. Conforme eu fui me acalmando, percebi que o barulho tinha desaparecido e eu estava imerso no mais completo silêncio dentro daquele apartamento. Pus a cabeça no lugar e percebi que era melhor que não houvesse ninguém ali e que eu estivesse sozinho. Que exemplo eu daria para minha mulher e meu filho? Um homem feito, pai de família totalmente apavorado por algo que pensa ter visto ou que acredita que ouviu. Não é esse o papel que esperavam de mim. Logo eu, um cético declarado, alguém que nunca temeu ou mesmo acreditou em tal tipo de coisa. E me lembro que essa foi uma das primeiras conversas que tive com minha esposa logo no dia em que nos conhecemos.

Eu era calouro, ela uma veterana. Eu cursava jornalismo, ela, contabilidade. Não tínhamos nada em comum quando fomos apresentados por um amigo. Na república de sei-lá-quem que havia convidado um amigo que namorava a irmã desse amigo meu que por acaso convidou tanto eu quanto minha futura esposa e claramente nós dois não sabíamos o que estávamos a fazer naquele lugar. Na verdade, a esse ponto eu já sabia: já estava envolvido nos encantos da "catarinense" que acabara de conhecer e estava convencido a fazer o máximo que pudesse para impressionar a mocinha. Como ela não tinha muita escolha e estava numa roubada sem fim, acabou entrando na conversa e passamos o resto da noite juntos conversando já que, aparentemente ela havia visto algo em mim que até hoje eu não consigo entender.

Cerveja após cerveja, eu percebia o quanto aquela garota era interessante: inteligente, bem humorada e extremamente bonita. E já estava a meio caminho de estar bêbado quando ela ainda estava começando a se aquecer e eu já estava bem pra lá do ponto quando ela me disse que não tinha nada de catarinense: era tão paulistana quanto eu e inclusive vivemos e crescemos na mesma vizinhança, mas o destino quis que só nos encontrássemos ali numa universidade de Santa Catarina.

Conversamos sobre coisas bobas e sobre coisas sérias. Rimos e ficamos sem graça quando alguém nos tomou por um casal ao se apresentar. Em pouco tempo, a própria festa ficou sem graça pelo menos para nós e decidimos ir embora. Mas a companhia era tão boa e a coisa andava tão bem que acabamos os dois indo para minha casa. Ela dirigindo meu carro pois embora tivéssemos bebido no mesmo ritmo a mesma quantidade de latas de cerveja, eu estava já bem embriagado e ela ainda estava "tranquila" como gostava de dizer.

Tudo naquela mulher me intimidava: era veterana, bebia bastante, tinha todo um papo cabeça sobre magia e espiritismo e era totalmente decidida com a própria vida e com o próprio dinheiro - ou pelo menos parecia ser. E mesmo sendo uma pessoa incrível, em momento algum ela me soava soberba ou arrogante. Era do tipo de conversa de igual pra igual com qualquer um sabe? Mas nada me deixou mais intimidado do que o momento em que ela me beijou na porta de casa e se convidou para entrar. Era o papo sobre Deus e o diabo, espíritos e vida após a morte que havia sido interrompido. Assombrações e contatos com além túmulo - área em que ela se dizia extremamente sensitiva - levaram-nos a ficar parados no carro na porta do apartamento que eu alugava quando veio o silêncio súbito de alguns segundos e inesperado beijo. Nosso primeiro.

O resto é história: eu não conseguia firmar meus passos ou achar o buraco da chave na porta do apartamento que girava sem parar quando eu entrei e vomitei no chão da sala. Acordei de ressaca com ela do meu lado sorrindo e fazendo piada da minha situação. Não passou-se muito tempo até que começássemos a namorar. Não durou mais que seis meses, as coisas simplesmente não deram certo. Eu não lembro direito o porquê, mas tinha a ver com o fato dela ter deixado a faculdade e resolvido perseguir um sonho antigo de transformar o hobby em profissão e vice-versa. Também por mero acaso, nos encontramos anos depois em São Paulo onde nos re-conhecemos, nos re-descobrimos, nos re-paginamos - e uso da tal licença poética pra usar quaisquer palavras inexistentes para descrever o que aconteceu entre nós. Nos casamos, tivemos um filho...

E então a campainha tocou.

Me assustei, levantei-me sem jeito e olhei pelo olho mágico para encontrar dois funcionários da portaria, um mais novo do que eu com cara de poucos amigos e um velho calvo baixinho e rechonchudo. Abri a porta e eles entraram.

O mais novo foi direto ao assunto e queria saber o que estava acontecendo. Obviamente, não falei do meu pai, não citei que vi um fantasma no corredor, mas falei do barulho constante vindo dos outros apartamentos. O rapaz mais jovem voltou a me dizer que não havia ninguém naquele andar e se dispôs a verificar todos os apartamentos enquanto o mais velho e gordo olhava em volta e parecia incomodado, desconfiado e hesitante.

Com um molho de chaves cintilantes, o mais alto abriu apartamento por apartamento enquanto eu tentava acalmar meus nervos. Todos estavam completamente vazios e empoeirados. Não havia uma alma viva em todo andar além de nós três, eu com meus trinta e tantos anos assustado feito um garoto, o porteiro rechonchudo meio desconfiado e o vigia incrédulo com um ar de apatia. Foi quando percebi que o cheiro já se dissipara.

Eles foram embora e eu fiquei com cara de bobo sozinho no apartamento, inquieto, assutado, meio bobo. Não consegui dormir direito naquela noite e quando minha esposa chegou pela manhã, eu estava sentado na área de lazer fumando e enrolado num cobertor com olheiras enormes e olhos vermelhos.

Não eram nem onze da manhã quando ela chegou e quis entender o que eu estava fazendo lá fora. Eu disse que contaria quando subíssemos. Eu não havia percebido o quanto eu estava assustando ela e meu filho, eu passei a noite inteira lembrando a distante visita à tia Ofélia e sendo aterrorizado pela remota memória da já distante experiência naquele edifício quando eu ainda era apenas uma criança.

Minha esposa era adepta do espiritismo, eu sempre fui cético em relação a tudo o que remetia à espiritualidade, à religião e ao sobrenatural. Nunca pensei que ela pudesse ser tão incrédula com o que estava acontecendo. Quando eu contei o que havia acontecido, ela simplesmente tentou racionalizar, me deu várias possíveis explicações sobre o que estava acontecendo: alucinações, excesso de trabalho, a própria acústica do edifício,

Embora extremamente frustrado com a falta de credibilidade da minha própria fala, logo tive de engolir aquele sapo e me conformar com o fato de que, talvez, eu estivesse mesmo perdendo a cabeça. Mas isso não durou uma semana.

Minha esposa e meu filho estavam em casa quando voltamos a ouvir barulhos por todo andar. Batidas, passos, sons de TV e rádio ligados. A princípio, até eu mesmo permaneci incrédulo acreditando que fosse realmente uma questão de acústica. Talvez algum duto de ventilação deixasse o som escapar de outros andares para o nosso ou os poços dos elevadores fossem os responsáveis por isso. Mas o episódio foi rápido, durou menos do que dez minutos até cessar completamente. Dessa vez eu estive mais calmo, mais tranquilo em relação à primeira. Eu não estava sozinho e sabia que não estava perdendo a sanidade. Estava há tanto tempo afundado escrevendo um livro que nunca ficava pronto e tinha um prazo muito curto para entregar o primeiro quarto da obra ao editor e não estava nem perto de terminar aquilo. Talvez eu realmente estivesse estressado o bastante para imaginar coisas, cheguei a considerar de fato essa possibilidade, mas era outra coisa.

No princípio, ficamos assustados, mas como os episódios tornaram-se recorrentes, jamais nenhum de nós sentiu-se em perigo com o que estava acontecendo. Em determinado momento, passamos a achar aquilo normal, algo corriqueiro. "Oh, sim senhor, eu moro num apartamento mal-assombrado. Nada demais". Quase sempre eram os barulhos, ás vezes, era um frio repentino que tomava conta do apartamento e desaparecia tão rápido quanto chegava. Portas se abriam e se fechavam tal como o registro da torneira da pia do banheiro. Ás vezes a campainha tocava, mas ninguém estava na porta quando atendíamos. Pequenos objetos apareciam em lugares diferentes daqueles em que os deixávamos. Chaves, brinquedos, controles remotos, telefones e até dinheiro desapareciam misteriosamente para serem encontrados em lugares inóspitos como quando um maço de cigarros apareceu dentro do freezer. Ou como quando chegamos e todos os mantimentos da despesa estavam cuidadosamente empilhados sobre o chão da cozinha.

Completaram-se quarenta e poucos dias desde que nos mudamos quando eu comecei a enxergar padrões em todas aqueles acontecimentos: os barulhos, os objetos aparecendo em lugares estranhos, as repentinas ondas de frio, a sensação de estar sendo observado e o cheiro de perfume velho sempre surgiam entre as seis da tarde e as onze da noite. Comecei a anotar todo e qualquer evento anormal em uma planilha no meu computador e percebi que nenhuma atividade do tipo acontecia em qualquer outra hora do dia. Eram fantasmas do horário nobre como eu costumava fazer piada com minha esposa. Nesse ponto, não estávamos assustados com o que acontecia, mas sim intrigados, curiosos e extremamente fascinados com todos aqueles fenômenos. A única coisa que preocupava era meu filho, mas ele nunca aparentou ter medo de nada daquilo. Pelo contrário, ele dizia-se bem indiferente. Alguns dias antes da noite em que as coisas pioraram, ele me disse que estava protegido pelo seu anjo da guarda que sempre o vigiava enquanto dormia e que nada poderia acontecer com a gente. Aquilo me assustou de uma forma diferente, mas jamais levei a sério de certa forma.

A nossa vida continuou da mesma maneira e aquilo durante um bom tempo não chegou a nos incomodar de verdade. Mas foi no final de Agosto que as coisas começaram a mudar.

Eu estava no escritório tentando escrever. Falavam apenas algumas semanas e eu precisava entregar cento e cinquenta páginas e ainda não tinha nem noventa. Já passava da uma da manhã e todos estavam dormindo quando veio o frio e o estranho cheiro de perfume. Pairou no ar uma estranha sensação como se todo e qualquer som fosse abafado. Eu podia jurar que poderia tocar o silêncio de tão absoluto que ele se tornara. E apenas continuei sentado sem me mexer vendo a fumaça do cigarro serpentar acima do cinzeiro e alcançar o teto ouvindo nada além da minha própria respiração. Uma sensação de pânico e euforia tomou conta de mim quando senti algo pesar sobre meus ombros. Era como se uma tonelada de tijolos se apoiassem sobre as minhas costas e eu simplesmente não podia me levantar. Aquilo não durou mais do que trinta ou quarenta segundos. O silêncio foi abruptamente quebrado por um estrondo ensurdecedor de objetos caindo e vidro se quebrando. Assustei-me e levantei-me por instinto sem perceber que o peso sobre meus ombros havia desaparecido. Corri em direção à sala que era de onde acreditei que vinha aquele som.

Choquei-me ao me deparar que a mobília inteira não só estava destruída no chão, mas amontoada perfeitamente no centro da sala. A estante com nossa coleção de DVD's, a TV, o rádio, a mesa de jantar, o sofá e até prateleiras parafusadas na parede. Tudo estava destruído e empilhado no meio da sala de estar. A porta da sala estava aberta escancarada, mas não vi ninguém do lado de fora do apartamento, mas as luzes do corredor que só se acionavam através de sensores de movimento estavam acesas.

Virei-me para o corredor e vi minha esposa sair do quarto provavelmente assustada com o barulho de tudo aquilo despencando. Ela não viu o que havia acontecido na sala, mas acredito que a expressão de pânico e perplexidade no meu rosto transpareceu que algo estava extremamente errado. Acredito que nós dois pensamos a mesma coisa ao mesmo tempo por uma espécie de telepatia ou sexto sentido que somente os pais podem ter e corremos em direção ao quarto do nosso filho. Nos encontramos na porta, abrimos, entramos e acendendo a luz.

Vazio. Ele não estava mais lá.

Eu olhei pro lado e vi ela com os olhos cheios de lágrimas e terror levar a mão a boca como que se tentasse evitar que alguma palavra profana escapasse. E foi ali que eu soube que minha vida estava prestes a desmoronar-se como a mobília da sala. E eu jamais conseguiria juntar todos os meus cacos pelo chão.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Tinta Lavável

Eu constantemente tenho esse sonho com uma enorme casa vazia onde as lâmpadas tem uma luz fraca e o piso estala e se solta sob meus pés enquanto eu ando. Paredes manchadas e mofo se espalhando por todo lugar, móveis cobertos com plástico e um teto com goteiras. Mas é a janela que me fascina sempre: no lugar de grandes vitrais, espelhos onde não é a verdade que é refletida, mas sim uma versão mais limpa, bela e aconchegante. No reflexo, estou sempre bem vestido, a casa está reformada, bem iluminada e decorada. Todos os móveis estão novos e não há mais mofo, goteiras ou piso solto.

Tudo o que você enxerga quando tenta olhar para fora é exatamente aquilo que queria que existisse do lado de dentro. E acredito que isso reflete toda uma maneira de se enxergar o mundo.

Estamos nos decompondo, apodrecendo a cada dente de leite que perdemos, a cada pedaço da nossa inocência que vendemos à pornografia e à noção de grandeza que nos fizeram comprar. Talvez muitos de nós não sejamos incapazes de enxergar a realidade do outro lado da janela, estamos atados à falsa noção de que somos exatamente aquela versão melhorada de nós que vemos ao olhar no espelho. E nós estamos apaixonados por ela pois é tudo que podemos ver.

E esse é um daqueles textos em que você vai certamente enxergar alguém que conhece, mas jamais será você o próprio objeto o que me faz correr o risco de ser um grande hipócrita ou um tremendo visionário, provavelmente mais o primeiro do que o segundo.

Nós fomos corrompidos pelo amor próprio, pelo narcisismo do consumo, pelas promessas de estabilidade e pela falsa ideia de quem somos e quem queremos ser. Nos tornamos egocêntricos de mente fechada que não são capazes de ver mais daquilo que lhe interessa. E nesses dias onde vemos nada mais do que nós mesmos, o amor tornou-se um ato de extrema subversão punido com severidade pelos dogmas de uma nova era onde ninguém é mais importante do que você.

Eles não dizem isso nos filmes ou nos livros, mas você vai perder as contas de quantas vezes vai se mutilar metaforicamente ou não na tentativa de ser algo que outra pessoa deseja evidentemente sem sucesso. Eles nunca te dizem que você  terá de vestir um sorriso que não é seu, um traje de social desconfortável para que todo mundo te aceite e ninguém vai se opor a isso mesmo que estejam tão desconfortáveis quanto você.

E você vai descobrir que existem muitas maneiras diferentes de odiar a si mesmo.

Eles nunca te disseram que você vai se enfurecer e esmurrar as paredes antes de desabar em lágrimas ao tentar se masturbar debaixo do chuveiro e não conseguir porque subitamente aquilo lhe parece errado. Ou como você vai preencher cada folha de um caderno velho com o nome de alguém que não existe mais como um mendigo que atira a última moeda numa fonte seca pedindo por abrigo. Não há abrigo nenhum quando o papel acaba e você começa a escrever nomes nas paredes da sala de jantar desejando ter de volta qualquer coisa que você de fato jamais teve.

Todos sabem, mas ninguém te diz que a sua opinião é a que menos importa mesmo quando se trata da sua própria vida.

E quando você perceber, todos à tua volta terão erguido trincheiras com arame farpado e estarão escondidos nelas mesmo jurando que não tem medo de nada. E quando menos esperar verá que todos se encantaram por sua própria imagem no espelho e pintaram as paredes com tinta lavável para que nenhum nome permaneça lá por mais tempo do que o planejado e ninguém mais amará ninguém.

Ninguém amará você.

E todos os sonhos com o porto se desmancharão como papel na chuva e você se verá a deriva num mar de mágoa, fúria e ressentimento. E mesmo que se isole temerá que sua falta não seja notada, mas também viverá a paradoxa sensação de não querer que alguém perceba como num baile onde você não quer dançar, mas deseja um par para ter a oportunidade de lhe dizer não. E quando estiver enfurecido você vai querer deixar de viver, mas vai continuar pois sabe que isso seria um favor para muita gente. E quando se sentir cansado, tentará desistir, mas fracassará pois ainda alimenta um fogo revolucionário que existe dentro de você. No final, apenas desejará o chão do convés e a água da chuva. E desejará ficar lá até o dia em que não mais o fará. Pois amamos pessoas até que simplesmente não amamos mais e isso serve para nós mesmos.

Ainda há tanta coisa para comprar e tantos programas para assistir que não torna-se surpresa a descartabilidade humana. Estamos em uma decadência tão grande que valemos menos que as coisas que nós mesmos inventamos. Nos tornamos reféns de toda nossa tecnologia e da nossa indiferença com tudo e com todos. Hoje somos pratos num menu, produtos numa prateleira, itens de um inventário, números de um catálogo onde todo o universo que é você resume-se a um preço e uma descrição de setenta caracteres.

E então aceitará que é como todos os outros e velejará para casa conformado e jamais conversará sobre isso pois, mesmo que as pessoas entendam, você tem medo do que pode acontecer. Adapte-se ou morra, compre duas latas de tinta lavável e vista seu melhor traje desconfortável pois o amor próprio também pode ser seu quando uma palavra é dita tantas vezes que acaba se tornando verdade.

Contemple o mundo que criamos diante a ponta afiada de uma lâmina polida pela casualidade. Aceite-a como amiga. Vai ser fácil depois que aprender que ninguém de fato é. E se todo mundo faz, não pode ser errado, certo?

Diga que é como todos os outros. E uma hora, você vai se convencer disso.

sábado, 18 de julho de 2015

A Valsa Dos Mortos Vivos

Sempre me intriguei pelos ritos funerários. Tem aquele mais pomposo com direito a presença de gente importante "se despedindo" do falecido com cliques e flashes de câmeras fotográficas, diplomacia e muita cara de paisagem, mais evento social do que ritual religioso ou espiritual. Quase ninguém chora de verdade e a maioria presente nem chegou a trocar mais que meia dúzia de palavras com o velado.

Também existem ritos mais modestos para gente "menos importante" que contam apenas com o pranto de familiares e amigos, Gente que trabalhou com quem habitou o corpo já sem vida selado pra sempre no caixão.

E ainda existem os que sepultamos como indigentes, sem ritos, sem passagens, sem prantos ou sensibilidade. Apenas a pá, a cova e tchau. Até o outro lado.

De qualquer maneira, enterramos todos eles, sepultamos todos os dias aqueles cujas vidas deixam de existir literalmente ou não. E todos nós seremos enterrados talvez mais de uma vez na vida.

Talvez como figuras notórias ou meros anônimos. Ou ainda indigentes cuja existência não foi relevante o bastante pra que alguém fosse prestar suas homenagens póstumas em água e sal correndo por rostos pálidos e abatidos.

O mais curioso é ver quantos sepultados e sepultadores encontramos quando andamos por nossas cidades cheias de gente moribunda. Nossa necrópoles de sacos de pele e ossos esperando a próxima procissão funerária.

Banalizamos a vida, subestimamos a morte e nos acostumamos com isso. E é assim que é, discordar não é subversão, é ignorância. Vivemos no tempo dos coveiros, dos abutres, e dos messias e Lázaros.

E nos encontramos em nosso sepulcro vitalício do cotidiano como causa e efeito do fenômeno da descartabilidade humana. Enfiando embaixo da terra todos aqueles que já não tem vida para que sirvam de adubo para raízes fortes de árvores das quais nunca colheremos frutos e que cuja sombra nunca nos abrigará numa tarde quente.

Sacos de estrume ambulantes prontos para serem enterrados. Impacientes coveiros prontos para entregá-los ao solo. O belo e triste paradoxo de todos nós.

Em tempos de guerra, a maior baixa de todas é o valor da vida.

Quantas pessoas você enterrou hoje? Quantas pessoas você enterrou no último mês? Quantas pessoas enterraram você no último ano? Por quantos sepultamentos você já não passou?

É tudo trivial. Não faz sentido contar. Não importa mais. O que está morto não pode ser ressuscitado. Muito menos ser morto outras vezes.

Coveiros de nós mesmos, cadáveres do que fomos. A marcha fúnebre é a valsa dos mortos vivos, aqueles que encontramos tempos depois quando já nem lembramos mais. Mas todos nós dançamos, todos nós vamos dançar. E quem sabe um dia não encontraremos uns aos outros em vida apesar de nossos atestados de óbitos carimbados.

Que descansem em paz os mortos vivos. Todos nós. E que alimentemos o solo para que germinem coisas maiores, com mais cor, com mais vida.

E que possamos ser a sombra-refúgio do viajante, o galho do ninho do pássaro, a fruta que nutre no faminto. As vigas que erguem as igrejas, a lenha que acende as fogueiras e, claro, o tampo que fecha os caixões.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Sétima Torre - Boa vizinhança

Antes de tudo, certifique-se de ler o anterior
PARTE 1 - A Sétima Torre - No Princípio

Eu não consigo recordar qual é exatamente a primeira memória que eu tenho do meu pai, mas quando me esforço ao máximo para lembrar-me dele no mais profundo recanto das imagens de minha infância vejo ele no escritório fazendo contas com uma calculadora, fumando e ouvindo João Gilberto ou Erasmo Carlos. Mas o detalhes mais característico dessa lembrança é o cheiro da fumaça dos cigarros que se amontoavam no cinzeiro. Meu pai fumava quase dois maços de Continental por dia e quando a marca parou de circular, ele acabou trocando sob muitos protestos pelo Marlboro que ele dizia ser uma marca de mulher. Talvez por isso ele passou a fumar ainda mais.

Essa primeira memória que tenho de meu pai está diretamente associada a última que tenho: ele já muito velho, magro com seus poucos cabelos já grisalhos totalmente irreconhecível deitado numa cama quase morto. Ele lutou por quatro anos bravamente contra o câncer, mas nunca conseguiu parar de fumar.  E nem isso me fez deixar de herdar o hábito e o vício dele.

Eu também fumava quase um maço de Marlboro por dia e, embora tenha tentado parar por mais vezes que eu posso contar, eu continuava mesmo depois de duas cirurgias e não sei quantas sessões de quimioterapia quando os médicos praticamente disseram que deveríamos desistir e o mandaram de volta pra casa e montamos uma UTI na velha fazenda. Nesses dias, ele não parecia nada com o homem bem humorado e brincalhão que sempre foi. Ele agora estava cada dia mais ranzinza, rabugento e reclamava com tudo o tempo todo. Enquanto pode, andava para cima e para baixo arrastando um cilindro de oxigênio num carrinho cujas rodinhas rangiam de maneira insuportável. Você poderia saber onde meu pai estava mesmo a quilômetros de distância graças ao barulho das rodinhas e aquela tosse que parecia que só iria acabar quando ele vomitasse os próprios pulmões, mas mesmo assim ele encontrava maneiras de se esconder pela casa e roubar um cigarro meu aqui e ali. É triste dizer, mas foi um alívio quando ele já não podia mais andar.

Pouco tempo depois, ele faleceu. Há muito já não parecia mais com qualquer coisa que consideremos viva, mas o destino quis que ele morresse oficialmente na noite de 20 de Abril de 2003, meu aniversário de 30 anos. Talvez um irônico castigo do destino devido ao fato de eu não ter parado de fumar mesmo vendo meu pai naquele estado, talvez sentenciando meu próprio filho ao mesmo destino de ver seu pai definhando numa cama e até mesmo repetir os mesmos erros e ter o mesmo sentido.

Em vida, ele um grande pai, um bom marido, mas a sua relação mais íntima era com o dinheiro. Tudo o que ele tocava tornava-se ouro. Ele tinha a capacidade fantástica de multiplicar qualquer investimento, tinha uma visão fora do normal, mas talvez o seu conservadorismo o tenha impedido de chegar mais longe. Meu pai era um homem à moda antiga, nunca gostou de computadores ou telefones celulares. Até mesmo a máquina de escrever sofria com seu olhar de desprezo e desconfiança. Quando morreu, meu pai nos deixou uma empresa, vários imóveis e investimentos variados e, até então em minha vida, dinheiro nunca foi uma preocupação.

Embora o mais intenso sonho de meu pai fosse me ver um dia herdando todo o seu legado e tomando controle dos negócios da família, eu sempre tive planos diferentes com os quais ele nunca concordou. Me formei em Jornalismo e sempre quis ser um escritor, mas ele sempre achou isso pura perda de tempo. Minha irmã tomou o próprio caminho, mas ele não se importou muito. Logo cedo, ela saiu de casa, tornou-se independente e bem sucedida, já eu nunca saí da sombra de meu pai totalmente. Trabalhava com ele administrando os negócios mentindo para mim mesmo que era algo temporário enquanto traçava planos que nunca cumpri. Por essas diferenças, eu e meu pai nos odiamos bastante antes dele adoecer. E quando isso aconteceu, pela primeira vez, senti-me realmente motivado a assumir o comando do legado que meu pai construiu.

Uma pena que eu falhei miseravelmente.

Assim que ele morreu, eu me vi totalmente perdido e não sabia como administrar o patrimônio, como investir, contratar, organizar ou liderar. Em dois anos, a empresa estava quase quebrada e já tínhamos esgotado quase todas as reservas de capital que ele havia deixado. Desesperado, busquei ajuda de um velho sócio dele, seu braço direito em todas as suas decisões em vida. Os detalhes são menos importantes, o que é vital nessa história é que saibam que acabei confiando demais nesse homem e ele acabou me passando para trás. Sorrateiramente, tomou pra si boa parte do patrimônio que meu pai deixou, o controle da empresa, quase todos os fundos de investimentos restantes, imóveis e automóveis e durante anos travamos uma ferrenha disputa judicial pelo controle de todos esses bens. E é meio triste dizer isso, mas felizmente ele faleceu há alguns anos e sua esposa - uma pessoa muito mais racional e serena - soube tratar do assunto de maneira mais justa e chegamos a um acordo proveitoso para ambas as partes. Mas voltemos aos tempos de vacas magras.

No ano de 2007, eu havia posto tudo a perder, não havia mais nada, estava quebrado e com o orgulho extremamente ferido. Quando sofri o golpe, não me restou quase nada e me vi obrigado a vender a própria casa onde eu morava e me mudar para o último imóvel de meu pai que não estava ocupado por inquilinos ou tomado pelo sócio: o apartamento 1602 da Torre 7 do Condomínio Residencial Bandeirante numa cidade do interior do Estado.

Em Julho daquele ano me mudei com minha esposa e filho para o apartamento onde tia Ofélia morou até morrer. O apartamento que meu pai sempre quis vender, mas nunca conseguiu. A região tinha se desvalorizado, o condomínio estava quase todo desocupado, a imobiliária responsável estava prestes a declarar falência e um novo shopping tinha interesse na região. O objetivo do projeto inicial era ser um escape para a classe média, mas alguém planejou algo errado e a região não prosperou, pelo contrário: todo o entorno do bairro foi tomado por favelas o que desvalorizou brutalmente o investimento.

Quando eu finalmente me mudei, não pensei muito na minha primeira experiência naquele lugar mais de vinte e cinco anos antes. Parecia apenas uma turva lembrança de criança distorcida pela minha imaginação fértil e perdida entre tantas outras memórias mais relevantes. Mas a partir do momento em que abri a porta pela primeira vez, tudo aquilo que eu passei quando tinha oito anos de idade voltou de maneira avassaladora. No primeiro momento em que o piso de madeira rangeu sob meus pés, eu lembrei do garoto do sexto andar, da água escura e daquela coisa que eu vi ou acredito ter visto. Mas nada disso importava, eu era um homem feito, um pai de família, um adulto que não deveria se amedrontar por traumas de criança e coisas que eu nem tenho certeza se realmente aconteceram.

Mas o fato é que eu morei naquele apartamento por apenas cinco meses por motivos dos quais eu nunca falei até então. Motivos que fizeram com que eu questionasse minha sanidade.

Naquele tempo, eu estava dedicado a escrever meu primeiro romance e vivia uma momento de muita fertilidade criativa. Ideias pipocavam o tempo todo na minha cabeça e eu passava a maior parte do tempo em casa na frente do computador escrevendo e captando informações. Eu escrevia, editava, excluía, recomeçava. Para um pouco, tomava um ar, bebia um café, assistia TV, fumava cigarro, saía para dar uma volta. Todo o processo natural pelo qual todo escritor passa. Foi numa dessas saídas que eu comecei a notar: minhas coisas nunca estavam no lugar onde eu as deixava.

Eu deixava as minhas chaves na prateleira do quarto e elas apareciam penduradas no chaveiro da sala. Eu trazia uma caneca com café e leite para o escritório e a colocava em cima da mesa, mas quando percebia ela estava numa mesa diferente daquela na qual a deixei. A princípio, achei coisa pouca. Ninguém em casa percebeu algo estranho e eu era o que menos saía. Meu filho tinha sete anos passava o dia entre escola e aulas de natação e judô. Minha esposa na época era professora de dança e quando não estava trabalhando provavelmente estava com meu filho em algum lugar. Mas foi numa manhã de sábado que algo realmente me atormentou.

Eu queria sair para tomar um ar, sentar no jardim que havia do lado do edifício, ver um pouco do sol e decantar minhas ideias, mas não conseguia encontrar minhas chaves. Eu já tinha desistido quando deitei de novo na cama e ouvi o familiar barulho do metal, típico de molhos de chaves. Elas estavam dentro da fronha do meu travesseiro e eu não fazia ideia de como foram parar ali. Eu me lembro de deixá-las por cima de qualquer lugar, mas não havia como aquelas chaves terem ido parar ali. Obviamente eu fiquei assustado e impressionado, mas em momento nenhum associei ao fato de o escritório ficar repentinamente frio durante as madrugadas em que eu estava escrevendo ou como todo o encanamento parecia contorcer-se e gerar um estupendo barulho por toda a casa principalmente à noite. Nem me lembro de contar quantas vezes eu tive que tirar os fones de ouvido por ter pensado que ouvi alguém chamar meu nome.

Também nunca associei isso à insuportável crise de tosse de um dos vizinhos que poderia ser ouvida mesmo com a TV ligada.

Me lembro muito bem do dia em que eu percebi que havia algo muito errado acontecendo naquele lugar. Haviam apenas três semanas desde que nos mudamos e eu estava passando por uma crise criativa depois de ter escrito quatro capítulos quase que sem interrupções. Minha esposa havia insistido muito para que eu fosse com ela para São Paulo no final de semana e depois de muito discutirmos, ela resolveu ir sem mim. Ela levou o garoto e eu fiquei sozinho naquele apartamento onde um dia Tia Ofélia andou arrastando seus chinelos para lá e para cá. Eu não podia ir, estava tendo um grande surto criativo e precisava escrever tudo o que eu conseguisse no menor tempo possível. E quando eu falo de surtos, são eventos realmente anormais como acordar no meio da madrugada e sair da cama para escrever ou começar a fazer anotações em qualquer pedaço de papel antes de perder uma ideia. Todos os nossos boletos de contas, revistas, jornais, catálogos, agendas e livros eram rabiscados de cima a baixo, vítimas de meus ataques compulsivos de criatividade. Mas assim que eles passaram pela porta e foram embora, toda a criatividade se foi.

A noite foi caindo, o céu lá fora escurecendo e eu fiquei não sei por quanto tempo na frente do computador sem acrescentar uma nova linha ao que estava escrito. Eu estava claramente bloqueado quando o cenário tornou-se mais dramático no momento em que eu percebi que só tinha mais um cigarro no meu maço de Marlboro. Ainda não eram nove da noite quando tomei coragem de ir buscar novos maços. Havia uma loja de conveniência num posto de combustíveis bem perto do condomínio, mas mesmo assim apanhei as chaves do carro - que agora estavam no lugar certo - pelo simples e preguiçoso hábito metropolitano de ir de carro a todo lugar e tendo fé absoluta de que se um dia fizerem automóveis que caibam no banheiro, sairei da cama para dar uma cagada atrás do volante.

Vesti um casaco pois era Julho e fazia muito frio e eu não lembrava onde tinha deixado meu isqueiro. Como eu estava com pressa e sem um pingo de paciência, passei na cozinha e peguei uma caixa de fósforos longos. Saí do apartamento e no corredor enquanto girava a chave duas vezes para trancar a porta da sala, ouvia aquela tosse áspera e seca do vizinho que parecia ainda mais alta e insuportável do lado de fora. Guardei as chaves, chamei o elevador e não pensei muito nisso.

Havia uma fila bem comprida e uma atendente com quase nenhuma vontade na loja, então levei certo tempo. Aproveitei para comprar refrigerante e um monte de porcarias para comer durante a madrugada enquanto tentava recuperar meu ritmo de trabalho. Não levei mais de meia hora entre o momento em que saí de casa e o momento em que entrei de novo no elevador, dessa vez indo para cima ao invés de para baixo.

Quando a porta se abriu no décimo sexto andar, o silêncio absoluto pairava no ar e a luz branca da lâmpada florescente do corredor parecia fosca e opaca. Eu enfiei minha chave no buraco da fechadura e destranquei a porta quando ouvi de novo a tosse forte e seca, mas dessa vez ela vinha acompanhada de um rangido metálico, o tipo de som produzido pelo atrito entre duas superfícies metálicas oxidadas.

Eu olhei para a esquerda antes de abrir a porta e vi alguém vindo pelo corredor.

Era um velho magro e pálido vestindo uma camisa de botões. Cabelos grisalhos e a pele manchada. Ele tossia como se não houvesse amanhã e arrastava junto com ele num carrinho de metal um cilindro de oxigênio. A tosse afobada pela máscara de inalação, o barulho ensurdecedor da rodinha do carrinho se movendo pelo corredor. Ele chegava perto enquanto eu o fitava e ele me olhava de volta fixamente como se estivesse vendo um fantasma. Ele se aproximou, abriu a porta do 1601, entrou e desapareceu quando ela se fechou.

Entrei em casa, fechei a porta atrás de mim, encostei as costas nela e praticamente desabei no chão. Caí sentado largando as sacolas de compras no chão com a respiração ofegante como se tivesse corrido seis maratonas. Consegui abrir um dos novos maços e enfiei um cigarro na boca, mas minhas mãos tremiam tanto que quando eu abri a caixa de fósforos para acender, acabei derrubando todos pelo chão.

Meu pai havia morrido há quatro anos, mas eu tinha acabado de vê-lo entrando no apartamento 1601.


Eu fiquei um bom tempo sentado no chão dizendo para mim mesmo o que aquilo não era possível. Talvez eu tivesse dormido muito pouco ou realmente era uma pessoa muito parecida com ele. Mas não podia ser, não tão parecida. Eu não sabia se minha razão se perdia ou se eu a encontrava minutos depois quando resolvi levantar do chão, cuspir o cigarro e sair do apartamento.

Eu cheguei ao corredor aos tropeços e apertei insistentemente a campainha do mil seiscentos e um. Apertei a campainha, bati na porta, gritei. Eu esmurrei a porta, tentei abri-la em vão. Ninguém me atendia, mas eu podia sentir alguém do outro lado me observando através do olho mágico, me pregando uma peça cruel e desesperada. É como se eu pudesse sentir outra pessoa respirando através das fibras da madeira daquela porta. Algo tão vivo quanto eu, mas nem um pouco humano como nós. E eu ainda ouvia aquela tosse seca e que parecia não acabar nunca.

Voltei para dentro de casa, tranquei a porta e interfonei no 1601. Eu podia ouvi-lo tocar de dentro da minha casa, mas ninguém atendeu. Depois telefonei na portaria quase em prantos. Pedi que ligassem para o dezesseis-zero-um que eu queria falar com qualquer pessoa que estivesse lá para me atender. Inventei uma história confusa e meio estúpida sobre o barulho e até citei a tosse que eu ouvia, mas a resposta em tom irônico do porteiro não foi bem uma surpresa:

"Cê tá de brincadeira? Você é o único morador do andar inteiro."





sábado, 13 de junho de 2015

Ao meu velho eu

Olá Vitor,

Eu sou você daqui exatamente dez anos. Hoje é dia 13 de Junho de 2015 e o mundo não acabou até agora. Estou com vinte e três anos, você com treze. Quase nada do que você imagina para sua vida nos próximos dez anos vai acontecer da maneira que você pensa, mas não se preocupe, aqui vão alguns conselhos que vão facilitar muito a sua caminhada.

Para acreditar que eu sou você mesmo, ontem foi aniversário do Doda (que aí ainda não é Doda, apenas Lucas) e você perdeu dez reais que caíram do bolso da sua calça, mas encontrou o dinheiro de novo na porta de casa - uma sorte que não vai se repetir muitas vezes na sua vida. Há quase três meses atrás você não aguentou segurar e mijou nas calças voltando pra casa porque teve vergonha de fazer na frente dele e acabou passando um vexame maior ainda. Ele nunca contou pra ninguém, mesmo dez anos depois.

Não desista das aulas de violão, uma hora você vai começar a se dar bem com isso. Aliás, baixo não é a sua praia, você vai ser um guitarrista. Não desista disso, mas não crie grandes expectativas. Seu ouvido é ruim, você não vai ser o próximo Hendrix, mas vai ser um ótimo hobby na sua vida nos próximos dez anos. Você também não é e nunca vai ser um bom cantor, desculpe avisar, mas é bom que desista já dessa ideia. Criar essas expectativas altas só vai te frustrar e você vai se odiar bastante por isso.

Desista dos desenhos também, você não tem talento. Mas isso não é um problema.

Mantenha todos os rascunhos daquelas histórias malucas que você inventa na sua cabeça, eles vão ser úteis no futuro. Leia muito e exercite a sua escrita o máximo que puder. É a única coisa em que você vai chegar perto de ser bom. Seguindo esse conselho você vai ser melhor do que eu sou hoje.

Comece a ler "As Crônicas de Gelo e Fogo" nos próximos anos. Em 2011, os livros vão virar uma série de televisão e você vai se arrepender por ter começado a assistir antes de ler os livros e vai se odiar por isso.

Meu álbum favorito é "Ruiner" de uma banda chamada A Wilhelm Scream. Ele ainda não foi lançado no seu tempo, mas ouça o predecessor dele que chama-se "Mute Print". Também é muito bom. Também tem o disco auto-intitulado do Alexisonfire. Você não vai gostar muito quando ouvir a primeira vez, mas vai se tornar um dos seus discos favoritos.

Ainda nesse ano de 2005 o São Paulo vai vencer a Libertadores da América. Acredite ou não, hoje você gosta muito, muito de futebol e é são paulino doente. Aproveite muito esse título e também o Mundial de Clubes que o São Paulo vai ganhar. Você não verá outro até aqui.

Ano que vem, a Itália vai ganhar a Copa do Mundo. E em 2010, a Espanha vai vencer seu primeiro título. A Copa do Mundo de 2014 vai ser no Brasil e a Alemanha vai ser campeã, assista aos jogos que puder no estádio, mas não vá ao Mineirão na semifinal.

Leia O Apanhador no Campo de Centeio. Você tem treze anos e talvez ainda não entenda exatamente - e o livro é bem chato - mas ele vai te guiar muito bem nos próximos quatro ou cinco anos. Aliás, leia tudo o que conseguir: livros, Histórias em quadrinhos, revistas e jornais.

E assista um filme de Cameron Crowe chamado "Vanilla Sky". Se não entendê-lo, pesquise na internet sobre o significado do filme.

Aliás, use a internet com sabedoria e não perca tempo demais no mundo virtual. Tem coisas acontecendo lá fora. Mas é uma ferramenta que vai te ensinar muitas coisas e através dela você vai conhecer muita gente legal. Até uma namorada ou outra.

E por falar nisso, não se sinta intimidado com as garotas. Sim, você não é nada atraente e é bastante chato, mas a maioria delas é tão insegura quanto você e algumas vão enxergar algo que eu até hoje não entendo. Leve isso com naturalidade ou vai acabar se frustrando e se odiando por isso.

Fique atento a 2007. Vai ser o pior ano da sua vida, mas vai te ensinar muitas coisas. O mundo lá fora é feio, sujo e vai destruir todos os seus sonhos. Esteja preparado para quando isso acontecer e encare tudo como um vencedor.

Não confie no homem que mora na sua casa, ele vai te virar as costas no momento mais difícil da sua vida. E quando se apaixonar por uma garota no primeiro colegial, conte pra ela. Você provavelmente vai levar um fora, supere. Se não o fizer, vai levar a dúvida por anos e anos e vai se odiar por isso.

Se ela por um milagre corresponder, simplesmente desencane. Ela não é pro teu bico.

E deixe de achar que você precisa obrigatoriamente ter uma namorada. Aprenda a ficar com garotas casualmente. É algo que eu não consegui aprender, mas tenho fé que você pode corrigir essa deficiência se parar de ser imbecil.

Aprenda a dirigir. Você tem 23 anos e ainda não sabe. Isso te incomoda e incomoda as pessoas a tua volta mesmo que elas não digam. Aprenda a cozinhar também, você vai achar legal.

Aproveite a amizade do Leo. Ele é muito mais seu amigo do que você dele. Vocês dois não tem mais muito tempo. Visite-o no hospital quando acontecer. Você pode se chocar com que vai ver, mas vai deixar de ser um bunda mole e se odiar menos por isso.

Nunca comece a fumar. Você não vai conseguir parar, vai arrebentar sua saúde, seu bolso e você vai cheirar a cigarro o tempo todo o que vai te incomodar e incomodar outras pessoas e você vai se odiar por isso.

Pare de sobrecarregar as pessoas com seus problemas e frustrações. Esse é um defeito que eu tenho até hoje e adoraria corrigir, mas tornou-se um hábito difícil de quebrar. De preferência, não seja tão transparente, não deixe que vejam o que você realmente sente e quais são seus medos e aflições. Simplesmente não fale sobre isso.

De maneira geral, fale menos sobre tudo. Você fala demais e isso cansa as pessoas.

Não perca tempo sentindo pena de si mesmo e aprenda o mais rápido possível que sua vida segue em frente com ou sem você. Eu perdi cinco anos da minha vida por isso, não cometa o mesmo erro.

Não acredite quando as pessoas disserem que dinheiro não traz felicidade e/ou que não é primariamente importante e tal. Você vai passar a vida inteira correndo atrás dele. A não ser que siga esse conselho: em 2010, ano que você completar 18 anos, aposte nos números 02 – 10 – 34 – 37 – 43 – 50 na MegaSena da virada. Você vai ganhar o prêmio junto com outras quatro pessoas e vai faturar trinta e oito milhões. Use esse dinheiro para ajudar sua família e construir seu futuro, mas principalmente, use-o para viajar e conhecer o mundo.

Nunca sob circunstância alguma coloque qualquer pessoa num pedestal. Todo mundo tem seu valor, mas você tem que reconhecer o seu o quanto antes.

Ano que vem, uma garota que você nem conhece vai te dar um tapa na cara porque você não quis ficar com a amiga dela - que você também não conhece. Acerte um soco na cara dela com toda sua vontade. Não se preocupe, a gente resolve depois.

E também no ano que vem você vai gostar de uma garota da sua turma. Desista, é problema.

Você nunca vai ter uma barba. Pode parecer algo idiota agora, mas você vai sentir muita inveja de quem tem.

Seu pênis não é pequeno, ele tem o tamanho normal. Você é que tem complexo de inferioridade e se odeia.

Se você seguir o conselho da Mega Sena, não vai passar por isso, mas caso seja estúpido o bastante para não fazê-lo saiba que as pessoas vão te cobrar muito que você faça uma faculdade. Não se convença. Não há nada de mágico nas instituições de ensino. Não é tão importante assim e você não vai se divertir lá.

Quando sua mãe for morar em São Paulo, vá com ela. Não perca tempo nessa cidade, não há nada pra você aqui.

Saiba que o maior crime cometido pela humanidade é a nossa casual falta de empatia e indiferença frente ao desespero de outras pessoas. Ninguém nunca vai se apiedar por você, ninguém se importa com o seu sofrimento e sua angústia e quando você fala sobre isso e espera que elas te auxiliem não está apenas soando patético como está sendo de fato.

Todavia,  jamais replique esse erro.

Eu cheguei até aqui acreditando na humanidade a espero que você também o faça. Seja o melhor que puder para todo mundo a sua volta. Não seja vingativo ou rancoroso e tente resolver de maneira direta qualquer problema que tenha com qualquer pessoa. Mas busque sempre se colocar no lugar delas e entender o que faz com que elas pensem como pensam e sejam como são.

E pare de pensar em suicídio. Você não vai fazer.

Por fim, tente se odiar menos. Você vai conviver consigo mesmo para sempre e a identidade que você vai construir pelos próximos cinco anos é o que vai definir quem você é pelo resto da vida.

Acredito que se seguir esse conselho, você vai chegar aos 23 mais feliz com o que é e com aquilo que vivenciou em sua jornada. E assim não precisará escrever outra carta como essa.

Boa sorte;
Vitor Pavani.

Ribeirão Preto, 13 de Junho de 2015.