terça-feira, 15 de setembro de 2015

Obrigado, estranha

Eu odeio acordar cedo.

Normal, acho que quase ninguém gosta. Fica aquela sensação de não estar de fato acordado, mas também não estar dormindo. É aquela uma hora, uma hora e meia que você levanta e fica no piloto automático. Eu tava assim hoje as nove e pouco da manhã quando saí de casa.

O de sempre: caminhada longa, fones de ouvido, mochila nas costas. Estou tendo uma semana boa, então diminuí com as músicas tristes e aumentei o passo. Foi quando passei por um ponto de ônibus e essa senhora me chamou atenção.

Tirei os fones para ouvir o que ela estava dizendo. Ela falava comigo como se estivesse continuando uma conversa que começou quando eu saí de casa. Conversava como se fôssemos amigos e eu não conseguia entender. Ela estava maltrapilha e cheirando a aguardente, foi então que eu entendi.

E não vou negar, a gente é escroto pra caralho. Muitos dias da minha vida eu simplesmente seguiria meu caminho e ignoraria o que a senhora tinha pra me dizer. É isso que a gente faz todo dia. Presenteamos com a nossa indiferença e todo e qualquer um que não tenha nada a nos acrescentar e puxamos sacos e corremos atrás de quem acreditamos ter mais do que a gente. Mas foi quando me despi dos preconceitos da aparência e prestei atenção no conteúdo da mensagem que ela passava que eu me surpreendi. E é por isso que escrevo esse texto hoje.

- Tenho 65 anos meu filho, vivi a vida toda pelos meus filhos, nunca tive tempo pra mim. Hoje to enfiada nessa merda, mas já estive muito melhor - apontou para o copo descartável com um líquido transparente abraçado por seus dedos negros e trêmulos. Sua mão estava ensanguentada e eu tentei entender porque, ela não parecia machucada.

- A gente não pode viver pelos "outro" não - ela continuou me fitando com olhos tenros como se eu fosse um filho ou um neto seu - faz da sua vida aquilo que tu "quer". Vá ser feliz e não deixa ninguém dizer que "cê" não pode. Nem família, nem "muié" e nem ninguém. Você estuda moço?

- Sim, estudo - respondi.

- E o que você estuda?

- História - eu já tinha parado, tirado os fones de ouvido. Eu estava intrigado por aquela figura que me abordou sem hesitação e trazia palavras que faziam tanto sentido pra mim. Logo hoje, logo agora.

- E é isso o que você quer pra sua vida?

Eu sorri sem graça e não soube responder. É isso que eu quero pra minha vida? Digo, eu gosto muito do curso, gosto do que estou fazendo hoje, mas nunca foi o que eu quis, nunca foi algo com o que eu sonhei.

- Eu não sei. - Respondi tentando não deixar o sorriso amarelo ir embora.

- Mas então "ouve" o que eu digo menino: vai atrás daquilo que você quer e deixa quem quiser falar, nada disso importa.

As palavras reverberaram na minha cabeça. Eu tinha que ir, mas não queria deixar aquela senhora falando sozinha, não queria ser rude e ter pressa o tempo todo como todo mundo faz. E, logo ali, comecei a tomar as decisões por mim mesmo: se eu não quisesse ter pressa, não teria. Pronto. Mas como uma figura sobrenatural que sabia exatamente o que dizer para ter minha atenção por alguns momentos, a senhora percebeu que eu tinha que ir. Estendeu a mão suja de sangue que apertei sem hesitar.

- Te serviu essa palavra rapaz? - perguntou ainda segurando minha mão.

- Muito. Eu precisava ouvir isso.

- Muito bem. Segue teu caminho e vai com Deus - beijou minha mão e a soltou como se deixasse ir, como se abrisse a gaiola de um pássaro preso há anos que já abandonara há muito seus sonhos de liberdade.

- E a senhora fique com Ele também. - respondi e retribuí a saudação mesmo sem acreditar em Deus algum. Ás vezes não é da fé que a gente precisa, mas é tentar tê-la que nos faz bem. - Tenha um bom dia.

Atravessei a rua e acenei de longe. Ela me acompanhou de sorriso no rosto. Pensei nela o caminho todo, pensei nela o dia inteiro de tal forma que agora tenho que dividir através dessas palavras o peso que senti com o simples gesto dessa senhora. Não foi com dó, piedade ou empatia que olhei nos olhos dela. A encarei como igual. Mais do que isso, encarei-a como alguém que havia vivido mais do que eu, que sabia mais do que eu, que tinha algo a acrescentar que talvez ninguém tenha.

Talvez fosse apenas a cachaça, talvez nem ela soubesse do que estava falando. Talvez tenha sido tudo um devaneio meu enquanto ainda no meio termo entre desperto e adormecido. Talvez eu esteja mesmo perdendo a sanidade. Mas isso realmente importa? Ela me fez lembrar do óbvio que muitas vezes a gente esquece. O oxigênio que respiramos todos os dias, mas que não lembramos existir a maior parte do tempo. Somos donos do nosso destino, de nossas vidas, de nosso próprio tempo. Parece óbvio, batido, clichê, mas hoje me soou como novidade.

Por adicionar sentido ao meu dia e à minha semana, obrigado estranha. E espero que encontre aquilo que estás a procurar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre filas de banco, nomes de puta e suicídio

Existem duas coisas que eu odeio com todas as forças nesse mundo mais do que quaisquer outras: a primeira é quando eletrônicos ou soluções práticas da tecnologia que servem para facilitar nossa vida não funcionam como devem e acabam atrapalhando mais. A segunda é tentar muito lembrar de alguma coisa e não conseguir. E nesse dia os dois estavam acontecendo ao mesmo tempo.

Lá estou eu parado na fila do banco tentando ao máximo lembrar quem era a moça irritantemente simpática que chegou com o marido e começou a conversar comigo como se fôssemos amigos há muitos anos e eu tentando fingir que sei do que ela tá falando. E pra começo de conversa eu só estava lá porque eu estava com um problema no Internet Banking. Fui até a agência, peguei uma merda de uma senha, sentei e esperei a minha vez quando chegou a convenção nacional de velhinhas que tem atendimento preferencial e vão me fazer esperar até o Natal. E a nossa amiga tagarela que sentou do meu lado e já chegou como se tivéssemos toda a intimidade do planeta e começou a conversar comigo sobre fulano e ciclano.

Ficou óbvio em determinado ponto da conversa que ela definitivamente estudou comigo no Ensino Médio. Foi entre ela me apresentar o marido e eu querer morrer por ter que tirar os fones de ouvido interrompendo uma linda canção sobre estar retardado de tanto cheirar cocaína. Pelo menos é o que eu acho que todas as músicas dos Stooges estão dizendo. E para piorar o cenário, eu estava um uma latente vontade de cagar que me fazia suar frio. E se você tivesse prisão de ventre, você saberia o quão sagrada é a vontade de cagar. Você tem que ir assim que ela aparece pois esses momentos são raros. Você se senta bem à vontade e espera até um cotovelo sair da sua bunda e até o último fio e cabelo do seu corpo se lamentar em arrependimento por não ter ingerido mais fibras.

Foi quando eu comecei a lembrar.

Eu estudei mesmo com aquela moça, não éramos amigos, mas fizemos um trabalho juntos uma vez. Talvez no segundo ano, não sei. Mas tanto faz. Já me sentia melhor por me lembrar quem era ela, mas ainda não lembrava o nome. Mas tinha certeza que era um nome de puta e travesti. Sim, existem nomes típicos de travestis e prostitutas.

E eu segui pensando os nomes para encontra o da dita cuja enquanto ela tagarelava:

-... então, no ano passado eu fiz uma viagem com (insira o nome de pessoas que ela acha que eu sei quem são, mas que eu não faço ideia de quem sejam) e foi muito bom, deu pra lembrar bem daquela época. A gente era foda pra caralho, você lembra de quando (não prestei atenção nessa parte)...

-
Lembro, claro! (Brenda, Caitlyn, Carolayne, Kelly...,)

-...
e depois da faculdade eu meio que fiquei sem saber o que fazer e tal foi quando eu conheci o (nome do trouxa do marido)...

-
Poxa, feliz por vocês? Já faz quanto tempo? (Natasha, Rebeca, Sabrina...)

-
Vão fazer dois anos agora em Novembro.

- Pra você ver como o tempo passa né? (Camile, Daniele, Emmanuele - e eu sei que você pensou no que eu pensei - Manu..) 

- Mas e o Pedrão, vocês ainda são amigos?

Mannuelly com dois N's, dois L's e Y. Eu me lembrei, mas foi quase irrelevante quando ela perguntou do Pedrão. Oficialmente, Pedro Luiz, mas todo mundo conhecia por Pedrão pra não confundir com o Pedro Victor que era o Pedrinho. Todo mundo conhecia o Pedrão, conheciam tanto que ninguém dizia meu nome, as pessoas falavam do "moleque franzino que tá sempre com o Pedrão". Acho que metade das pessoas que já estudaram comigo ou dividiram um trago só me conheciam por "parceiro do Pedrão". Mas não era por menos, todo mundo conhecia o Pedrão. Todo mundo mesmo.

Pedrão já frequentava o meio universitário antes de terminar o segundo ano. Era o filho da puta mais gente boa do planeta, não houvesse um só cara que não gostasse do Pedrão. Os que o faziam era por inveja pois Pedrão com 21 anos já tinha comido mais bocetas do que nós comeríamos a vida toda A mulherada era louca por ele. Pedrão era bonito, legal, inteligente, conhecia todo mundo e inventava um apelido pra quase todos que conseguia. Era difícil sair com ele sem encontrar alguém que o conhecesse. Ás vezes ele chegava a ser irritante por ser tão legal.

Ele tinha um sorriso perfeito, mas a risada dele era escandalosa e escancarada e quase sempre vinha acompanhada de um ronco quase suíno e constrangedor. Mas isso nunca o incomodou. Pedrão era despido de qualquer vaidade, de qualquer vergonha. Carregava um sorriso honesto, ingênuo o bastante pra enganar, quase bobo. De bobo ele não tinha nada, muito pelo contrário: embora benevolente, foi sempre cheio de malícia e segundas intenções.

Começamos a perder contato quando ele foi cursar medicina em outra cidade. Ele voltava nos fins de semana, mas a gente nunca tinha tempo, os ciclos mudaram, a vida caminho num sentido diferente para cada um de nós. É assim que as coisas são, nós éramos amigos até que, um dia, não éramos mais. Cada um tinha sua vida e, de vez em quando, a gente se falava isso sempre bastou. Nunca cobrei muito das pessoas e não gosto dessa cobrança também.

Mesmo assim, eu fui a primeira pessoa a chegar ao hospital. Pedrão tinha vinte e cinco anos quando deu um tiro na própria cabeça. Foi o cara que dividia quarto com ele que ouviu o tiro e socorreu Pedrão só de cueca caído no chão com a cara enfiada numa poça de sangue vermelho vivo. Ele tinha largado a faculdade há algumas semanas e fazia um tempo que ninguém o via.

Não entrava na minha cabeça essa história. Pedrão era o extremo posto do cara que eu imagino ser um suicida. Pedrão não era o moleque do fundo da sala que não tinha amigos. Pedrão não sofreu abuso sexual quando era criança. Pedrão não tinha um histórico de violência na família. Ele vinha de uma boa casa, de uma boa formação. Era um cara alegre e vibrante que estava sempre sorrindo e tinha amigos de sobra. Pedrão era o cara que não ficava um só final de semana em casa desde que tivesse saúde o bastante pra ir encher a cara. Ele não costumava ir pra cama sozinho por falta de opção e tinha uma caralhada de aspirações, vontades, sonhos. Não sei se você entende, mas ele não era do tipo que eu pensava que fosse desistir.

Porém a história dele não acabou ali. Pedrão errou o tiro que tiraria sua vida por alguns centímetros. A falha que salvou sua vida. É bem verdade que ele esteve em coma por um tempo e ele teve algumas sequelas. Mas Pedrão voltou a falar, a pensar, a respirar sozinho. Ele teve que reaprender a andar de novo. Largou a cadeira de rodas 17 meses depois do disparo que quase tirou sua vida. Conseguiu andar sem muletas depois de 21 meses mesmo que ainda mancasse. Pedrão sobreviveu ao que parecia impossível. Mas havia algo de errado.

Pedrão se tornou Pedro Luiz de novo, uma máquina humana que respirava, acordava, dormia, metabolizava energia e cagava, mas eu nunca mais tive certeza de que estava viva, mas estava óbvio que o Pedrão que eu conhecia morreu no chão daquele quarto de República. Seu sorriso rareou, não havia mais risada escandalosa com ronco, não havia mais aquela malícia no seu olhar. O que sobrou era uma versão reconfigurada e rasa dele. Um projeto de qualquer coisa que jamais será coisa alguma. Me senti culpado por pensar assim, mas sofri mais vendo aquele Pedrão sobreviver do que quando eu tive certeza de que ele não sairia da UTI.

Eu nunca consegui perguntar o porquê, o como, o quando. Eu nunca tive coragem e sempre que entrávamos no esse assunto, ele era evasivo, dizia não se lembrar de nada nos dias que antecederam o tiro. Eu não conseguia imaginar o que teria feito ele perder a fé daquela maneira, mas sabia que aquilo ceifou algo mais que valioso que sua vida. Aquele tiro levou embora sua vontade de viver, a vibração que ele tinha e acho que a morte não pode ser algo muito pior que isso. Eu nunca soube e nunca vou saber o que ele viu, ouviu, viveu, sentiu que lhe fez tomar um decisão tão drástica para com a própria vida, mas eu temo todos os dias desde então.

Pedrão era o melhor de nós, o mais forte. Se ele não estava seguro, quem estava?

- Putz! Faz muito tempo que eu não vejo ele. Olha, meu número! Deixe-me ir, foi bom te ver.

Levantei olhando o monitor que apontava a minha senha e nem dei tempo pra antiga colega se despedir. Sentei na frente do rapaz de gravata que sorria e perguntava no que podia me ajudar enquanto eu pensava que deveria tirar o esquecimento da minha lista de coisas que eu mais odeio. Ás vezes é melhor não lembrar.