quinta-feira, 21 de maio de 2015

A Sétima Torre - No Princípio

Até hoje, eu nunca quis contar essa história. 

Talvez por não sentir necessidade para tal, por não sentir vontade ou ânimo para explicar tudo o que se passou naquele tempo, mas, principalmente, por medo eu tenho fingido há anos que aquilo não aconteceu. Acreditei que se eu não falasse sobre isso e tentasse não lembrar minha mente apagaria aos poucos as memórias construídas durante os cinco meses mais terríveis de minha vida. De certa forma, tal estratégia funcionou. Me lembro com mais clareza da primeira vez que entrei pela porta do apartamento 1602 da Torre 7 do que da última na qual deixei o imóvel de uma vez por todas. 

Nomearam o projeto de "Condomínio Residencial Bandeirante" em homenagem aos homens que desbravaram o interior do país. Aqueles mesmos que há um século ou talvez dois enfiaram-se mata adentro procurando terras cultiváveis e recursos minerais. Onde, sobre aquela mesma terra, mataram dezenas de nativos brasileiros, tanto em uma alegada legítima defesa quanto por pura crueldade ou seguindo aos desmandos de aristocratas e latifundiários, heróis ou vilões de um passado distante antes de derrubarem quase toda a mata e urbanizarem toda a faixa do litoral ao noroeste do Estado. Com o tempo, a mata deu espaço ao café, à cana e as ferrovias por onde passaram incontáveis locomotivas e histórias. E depois às cidades que se espalharam às margens do caminho que o café fazia para chegar ao litoral. Cidades que hoje cresceram, se expandiram e abandonaram velhos costumes e zombam de antigas crendices e superstições. Cidades que hoje não acreditam em histórias de fantasmas ou coisa pior.

O projeto contava com sete imponentes edifícios de vinte andares cada um se erguendo sobre o antigo leito de uma pedreira na Zona Sul da cidade. Com direito a área de lazer, quadra poliesportiva, uma praça, duas piscinas (pelo menos, era o que havia no tempo em que lá morei), a morada era sonho da classe média suburbana que anseia fugir da caos civilizado e da presença da plebe, dos subalternos, dos arruaceiros e toda aquela gente que se parece muito conosco a olho nu, mas que fazemos questão de diferenciar e segregar vestindo-nos da máscara de intelectuais leitores de tabloides e das marcas que são caras simplesmente por serem.

No ano de 1978, o condomínio foi entregue e, como me recordo bem, estive lá pela primeira vez no ano de 1981. Era Maio, começo de Outono, mas já fazia frio. Eu tinha apenas oito anos de idade e visitávamos uma tia que morava no mesmo lugar onde, um dia, eu viria a morar. 

Lembro-me bem que eu observava maravilhado pela entrada do condomínio as três torres que se erguiam de cada lado da rua que traçava uma leve subida em direção a um balão de retorno onde, no final da via repleta de lombadas ficava a Torre 7. Ela era idêntica às outras seis, mas parecia mais imponente e, mesmo tendo o mesmo número de andares, era mais alta por estar no ponto mais elevado do terreno. Maravilhado, de novo fiquei, ao entrar no elevador onde minha mãe fazia cara feia para me impedir de apertar os botões de todos os andares. Lembro da espera com a estranha sensação de estar subindo sem sair do lugar, da luz quente que se esparramava do teto, da conversa dos meus pais e da luzinha acesa no botão de número 16. Quando chegamos, a porta barulhenta se abriu e saímos pelo corredor onde se encontrava a porta do apartamento. Um-Meia-Zero-Dois, em algarismos metálicos sobre uma porta de madeira escura. O número seis era levemente tombado para a esquerda e aquilo me incomodava de maneira surpreendente. Tocamos a campainha. Do lado esquerdo do apartamento 1602, havia o apartamento 1601. Os outros apartamentos se espalhavam pelo corredor que dava a volta os elevadores e nas escadas de incêndio formando um octágono assimétrico onde contavam-se, além dos números 1601 e 1602, os números que iam do 1603 ao 1608.

Tia Ofélia era uma dessas senhorinhas de sorriso fácil. Tinha a pele tão pálida que chegava a esverdear-se e seu pouco cabelo formava ondas grisalhas que cobriam sua cabeça e que, na minha cabeça de garoto de oito anos, parecia uma nuvem pairando sobre a cabeça dela. Com oito anos de idade, era tudo que eu sabia sobre a gentil senhora que abrira a porta do apartamento 162 e nos recebeu com entusiasmo. Tia Ofélia era, na verdade, tia de meu pai, irmã de minha já falecida avó e, pelo jeito, já não tinha mais ninguém. Pais, irmãos, marido e até um filho já tinham partido e deixado Dona Ofélia para trás, sozinha. Meu pai era o parente mais próximo que ela tinha e já há um bom tempo não se falavam e, naquela tarde, ele resolveu enfiar a família no carro, sair de São Paulo e fazer uma visita.

Meu pai, minha mãe e tia Ofélia logo se dispuseram a por a conversa em dia enquanto eu admirava todo o apartamento  que parecia escuro mesmo que a luz entrasse com abundância pelas grandes janelas e vitrais. Um cheiro típico de casa de vó pairava no ar e toda a mobília parecia estar já na família há anos, talvez até fundida ao assoalho de madeira em tom que ficava entre o bege, o marrom e o amarelo e que ajudava a produzir uma curiosa reverberação do som dentro daquele apartamento. Quando voltei lá, mais de vinte e cinco anos depois, também achei curioso como as paredes grossas e o assoalho de madeira do grande apartamento de quatro quartos causavam um eco bem característico.

E também senti a mesma estranha sensação de estar sendo observado por alguém ou alguma coisa. Ou qualquer coisa que tenha olhos para olhar ou um nariz para farejar talvez.

Não levou muito tempo até que eu ficasse entediado e eu não tinha a mesma capacidade da minha irmã que, mesmo mais nova, se comportava sempre como uma boa menina. Me deixar entediado com oito anos de idade num apartamento de uma velha viúva que mais parecia um relicário ou uma loja de antiguidades não era sensato.

- Mãe, posso descer para brincar no parquinho? - minha mãe me olhou com a cara que sempre olhava quando eu interrompia uma conversa de adultos. Aquele olhar que dizia muita coisa sem uma única palavra.

- Peça a seu pai.

- Posso pai? Por favor, diz que sim?

Meu pai olhou relutante tragando um cigarro. Primeiro para mim, depois para minha mãe e eu já sabia que a resposta não seria positiva. Foi quando falou tia Ofélia, Santa Ofélia intercessora dos meninos entediados.

- Deixa ele ir Cícero. Deixa o menino se divertir. - o sorriso aconchegante dela voltou a se abrir.

- Pode ir Pedro. Mas leve sua irmã. - disse meu pai contrariado - e vê se toma conta dela.

- Eu não quero ir. - as palavras doces de minha irmã me enxeram de entusiasmo. Não ter que cuidar dela era tudo o que eu queria mesmo sabendo que, quase sempre, era ela que cuidava de mim, mesmo mais nova e até hoje as coisas são assim.

- Ok Pedro, vai. Mas se comporte e nada de ficar brincando no elevador. - completou minha mãe como que se quisesse que eu me mandasse de uma vez por todas.

Saí pela porta do apartamento 1602 eufórico e pronto para descer. Apertei o botão do elevador e esperei até que parece em meu andar. Enquanto esperava, pesquei no bolso um dos brinquedos que sempre carregava comigo. Era uma réplica de um Fórmula 1 que eu ganhei de meu pai. Quando garoto, eu sonhava em ser piloto e colecionava essas réplicas em miniatura dos carros da F1. Eu gostava muito do modelo da Ferrari de Villeneuve, da Brabham do Piquet e da Ferrari de Prost. O que eu carregava aquele dia era a Williams de Alan Jones que era o atual campeão na época. A réplica remetia muito bem ao original todo branco com detalhes em verde e azul e um monte de marcas de patrocinadores estampadas de cima a baixo e até no capacete do meu Jones em miniatura.

Quando o elevador chegou e a porta se abriu, entrei e apertei o T e senti aquela sensação engraçada do elevador descendo, o tipo de coisa que a gente acha o máximo quando ainda é criança, mas torna-se corriqueiro quando nos tornamos adultos. Fui correndo para o parque brincar e logo me frustrei ao perceber que não haviam outras crianças. Na verdade, desde que chegamos, não tinha visto nenhum morador - exceto pela tia Ofélia e pelo porteiro do condomínio. Coisas sutis que hoje, olhando para trás, me despertam estranheza, mas que, naquele tempo, eu pouco notava.

Brinquei sozinho por algum tempo no parquinho, fingi que as linhas desenhadas no cimento do pátio eram a pista por onde acelerava meu carrinho de brinquedo recriando o barulho do motor e fantasiando as fantásticas ultrapassagens nas curvas e retas que os padrões das pedras do pátio faziam.

- Deixa eu ver seu carrinho?

Me assustei sem saber direito de onde vinha a voz. Quando percebi, um garoto não muito mais novo que eu estava de pé a pouquíssimos metros de mim. Com cara de pidão, bermuda azul e os tênis desamarrados, ele parecia solitário e desolado, mas escondia a expectativa de um sorriso ainda perdendo dentes de leite aparecer em seu rosto e se enturmar com seus olhos castanhos arregalados.

- Pode.

Estendi a mão com o carrinho para o garoto desconhecido que se aproximou de maneira acanhada, meio sem jeito, desengonçado. Se ajoelhou do meu lado e pegou o carrinho ainda tímido.

- Como ce chama?

- Henrique. - Ele não brincava com o carrinho, mas o examinava atentamente passando de uma mão para outra, virando para um lado e para o outro como se aquele brinquedo fosse a coisa mais fantástica que ele já havia visto em toda a sua vida.

- Meu nome é Pedro. Você mora aqui Henrique?

- Moro. - ele era bem calado, mais do que uma criança de seis ou sete anos deve ser. Henrique já era estranho por si só, mas as coisas ainda ficariam mais densas naquela tarde.

Ficamos por algum tempo no parquinho. Eu tentando começar uma conversa com um garoto catarrento que nada falava e continuava apalpando e olhando meu carrinho como se não fosse algo real. As respostas monossilábicas dele me deixavam cada vez mais frustrado, então em certo momento, desisti da conversa. Fiquei lá, em silêncio, sentado no chão. Olhava para ele, para as árvores que cresciam ao redor do parquinho e tomavam o céu quase nos impedindo de ver o pouco sol que aparecia entre as nuvens naquela tarde de Maio.

E então ele me devolveu um carrinho. E finalmente disse algo.

- Legal. Quer jogar um jogo? - ainda com aquele ar de que poderia soltar um sorriso que nunca vinha e que, a essa altura, parecia meio debochado.

- Que jogo?

- É um jogo de tabuleiro. É muito legal, cê vai gostar.

- É... quero, pode ser.

- Tá bom. Só que minha mãe não me deixa trazer ele aqui pra baixo, você vai ter que subir lá em casa.

Hesitei bastante, mas como não havia muito o que fazer, resolvi ir. Nem me toquei com o tempo ou as horas, nem me importei em pedir permissão aos meus pais, apenas segui o garoto de volta para a entrada da torre 7. Simplesmente senti que devia, aceitei o movimento automático das minhas pernas que traçavam um passo atrás do outro ao lado de Henrique, o garoto dos olhos arregalados.

Demos a volta no corredor do térreo passando pelos elevadores da entrada e pelas escadas de incêndio para chegar ao outro lado do fosso onde haviam outros dois elevadores.

Entramos e Henrique apertou o número seis.

Nesse momento, eu pressentia algo errado. Talvez a luz mais fraca desse outro elevador que quase não fazia barulho, talvez o aspecto desinteressado do meu novo colega ou o fato de que eu estava indo ao apartamento de um garoto que eu acabara de conhecer sem avisar meus pais. Mesmo sabendo disso, eu simplesmente não conseguia não seguir o plano de Henrique, é algo que não consigo explicar, um fenômeno que me negava a negação enquanto estive na Torre 7 do Residencial Bandeirante, algo sobre o qual voltarei a falar no futuro.

O elevador parou, a porta se abriu e demos de cara com duas portas. Os apartamentos 605 e 606 apareciam em nossa frente. Tudo se parecia muito com o décimo sexto andar: as portas de madeira escura e os números de metal pregados acima do olho mágico. Henrique girou a maçaneta e abriu a porta do apartamento meia-zero-meia.

A luz que entrava pela janela da sala se derramou pelo corredor quando ele me convidou para dentro e eu pedi licença para entrar. Quando ele fechou a porta atrás de mim que eu entendi que algo estava errado. Entre a cozinha e a sala me localizei e rapidamente compreendi todo aquele espaço do apartamento que era praticamente idêntico ao de tia Ofélia: paredes brancas e grossas, grandes janelas e vitrais e o assoalho de madeira perolada cujo verniz refletia a luz do dia. No apartamento de Henrique, o eco era ainda maior, mais intenso.

Isso porque não havia mobília alguma.

Nada. Sofá, mesa, estante, armário... nada. O que eu podia ver do apartamento estava completamente vazio exceto por eu e meu novo - e agora ainda mais estranho amigo. A poeira se acumulava pelo chão e meus passos deixavam pegadas pelo assoalho e as paredes encardidas tinham marcas velhas de sujeira na altura da cintura. Ladrilhos de rodapé soltavam-se das paredes e uma cortina amarelada e velha se pendurava pela janela da sala até quase o chão onde uma porção de acinzentados jornais se acumulavam. O cheiro que parava no ar era de poeira, madeira molhada e coisas velhas. Aquele cheiro que sentimos quando abrimos um cômodo há muito esquecido ou quando entramos em algum lugar abandonado. E se há uma palavra que descreva o cenário da moradia de meu novo amigo era essa: abandonada.

- Pera aí. Eu vou lá buscar. - ele correu e adentrou em algum dos quartos correndo sem dar tempo para que eu perguntasse alguma coisa. Eu estava mais confuso do que jamais estive em toda minha vida. Henrique morava sozinho? A família dele era tão pobre que não podia comprar móveis para a sua casa? Achei que fosse por isso que ele ficou tão encantado quando viu meu carrinho.

- Bença mãe. - ouvi ele dizer lá do fundo.

Henrique voltou a passos corridos e atrapalhados trazendo uma caixa de madeira nas mãos. Ele sentou-se no chão e me olhou como se ordenasse que eu me sentasse, e assim o fiz. Quando aberta, a caixa se tornava um tabuleiro e dentro dela haviam várias peças que pareciam soldadinhos de metal, porém tortos e desfigurados. O tabuleiro era cheio de desenhos estranhos e, conforme ele espalhava as peças sobre ele, me explicava cheio de afobação as regras do jogo que parecia uma mistura de xadrez com qualquer coisa. Porém eu não conseguia prestar atenção no que ele dizia, ainda estava meio sem jeito e confuso com a situação.

- ... e então você pode marcar três ou cinco pontos. Só que antes você tem que avisar, entendeu?

- Desculpa Henrique, acho que eu tenho que ir embora. Minha mãe deve estar procurando.

- Mas a gente nem jogou... - ele respondeu em tom de decepção.

- Na próxima a gente joga.

- Tá bom.

Ele recolheu as peças e guardou-as na caixa-tabuleiro visivelmente desapontado enquanto eu me dirigia a porta da saída. Eu fazia força para não mostrar o quanto eu queria sair dali. DEUS como eu queria ter corrido e batido a porta e nunca mais voltado. E foi quase isso que eu fiz, saí a passos largos enquanto ele ia até o quarto guardar seu jogo estúpido. Quando finalmente cheguei à porta, por algum motivo, tateei entre os bolsos da blusa e da calça em busca de qualquer coisa.

O carrinho. Não estava comigo.

Conferi de novo os bolsos e procurei pelo chão da sala, ele não estava em lugar algum que eu pudesse ver. Henrique tinha pego-o, só podia ser. Pensei em deixar estar, ele era tão pobre que morava numa casa sem mobília e toda suja. Tudo o que ele tinha era um jogo besta de tabuleiro. Minha mãe sempre me dizia que eu deveria ser grato por ter isso e aquilo outro. Vivíamos bem, meu pai tinha se dado razoavelmente bem na vida e comandava meia dúzia de negócios e era dono de mais um punhado de pequenas propriedades. Um carrinho de brinquedo jamais faria falta para mim, mas para aquele menino, poderia ser algo realmente especial. Mas por pirraça e/ou curiosidade, resolvi não sair pela porta e ir embora.

Dei meia volta e fui em direção ao corredor que levava aos quartos. Parei antes dos aposentos e chamei o nome de Henrique sem sucesso algumas vezes. Aos poucos foi andando na direção do quarto onde ele tinha entrado para buscar o seu jogo de tabuleiro maluco. Os meus passos lentos faziam o assoalho estalar sob meus pés e o cheiro que vinha do fundo agora já não era o mesmo que sentia na sala. Tomou o ar um cheiro de podridão que queimava o nariz e a boca e a essa altura era até mesmo difícil de respirar. A porta entreaberta do quarto deixou a dúvida se era um convite ou um aviso para que não entrasse. Empurrei a porta e ela se abriu lentamente com seu rangido fazendo eco por todo apartamento meia-zero-meia.

Nada, estava vazio.

Abri os armários em busca de Henrique ou de meu carrinho de brinquedo, mas ele não estava lá. Chequei os outros cômodos, atravessei o assoalho de madeira que estalava conforme eu andava. Não havia nada e nem ninguém no banheiro ou nos outros quartos. Tudo estava vazio, silencioso e com aquele horrível cheiro de podridão. Tudo parecia uma piada de mau gosto, uma peça que pregaram em mim e eu caí certinho. Nada fazia sentido naquilo, resolvi ir embora de mãos abanando mesmo. Depois voltaria com meus pais e exigiria meu carrinho de volta, era o mais sensato a fazer. Saí do último quarto puto da vida e cheguei no corredor e me virei para a sala para ir embora quando finalmente notei que alguém me olhava.

Aquilo estava de pé, no meio da sala. E me farejava.

Um animal - ou seja lá o que era aquilo - me fitava com profundos olhos amarelos que me enchiam de pavor. Boquiaberto, eu não sabia o que fazer, o que pensar, no que acreditar. A criatura se assemelhava a um cachorro de pernas finas e orelhas grandes, ou um chacal, ou uma hiena. Exceto pelo fato de que era do tamanho de um cavalo e se mexia de uma maneira que não parecia possível. Era como se não respeitasse os limites anatômicos das articulações de qualquer animal que eu já tenha conhecido. Uma sombra negra e esguia que mostrava presas amareladas que cresciam umas sobre as outras e uma língua que se pendurava de sua boca e mostrava-se excessivamente grande. Mesmo de longe, eu podia sentir a respiração daquela coisa como se estivesse sobre mim e foi quando eu notei que aquele cheiro de podridão emanava daquele bicho. Lentamente seu longo pescoço deu quase uma volta inteira e pude fitar seus olhos quase que de ponta-cabeça. De sua boca escorria um líquido que era qualquer coisa escura e viscosa.

Foi então que eu soube que tinha que correr.

Me enfiei no primeiro quarto que eu pude e fechei a porta com todas as minhas forças. Rezei para que aquela coisa não pudesse entrar, que não pudesse me alcançar ali dentro. Aquilo se atirou contra a porta e, por um momento, pensei que fosse derrubá-la. Eu só conseguia pensar que deveria ter saído daquele lugar quando tive a chance ou que, melhor, nunca deveria ter entrado ali para começo de conversa.

O monstro do outro lado da porta parecia ter força o bastante para derrubá-la quando bem entendesse, mas parecia gostar da sádica brincadeira de me levar aos limites do meu medo como se quisesse ber até onde eu poderia chegar. Não havia para onde ir, não tinha como fugir. A não ser que eu tentasse sair pela janela, mas isso era praticamente impossível. Estávamos no sexto andar, não tinha jeito. Eu morreria ali sem nenhuma chance de reação. Eu chorava como qualquer criança teria chorado no meu lugar. Chorava como muitos adultos o teriam feito.

Então as batidas cessaram.

Eu respirava ofegante sentado no chão de costas para a porta como se assim eu fosse capaz de segurar qualquer coisa que tentasse passar por ali. Nessa posição fiquei por vários minutos sem ouvir nada que não fosse meu próprio choro e meus próprios soluços. Eu secava minhas lágrimas e repetia mentalmente a mim mesmo "Seja homem!", "Seja homem!". De que maneira diante de tal coisa grotesca e sem qualquer sentido?  E mesmo depois de dez ou quinze minutos, não encontrei coragem para abrir a porta e olhar o que acontecia lá fora.

Quando eu finalmente começava a me acalmar, um novo problema apareceu: água. Em todo lugar.

Eu não sabia de onde tinha vindo toda aquela água e nem há quanto tempo estava ali, mas o fato é que o quarto estava inundado de uma água escura, fria e nojenta que parecia aumentar a cada segundo. O quarto já estava inundado quando eu entrei? Eu não conseguia me lembrar, não conseguia por a cabeça em ordem. Quando me levantei, a água já estava na altura das minhas canelas e em um pouco mais de tempo, meus joelhos e depois minha cintura estavam cobertos. Apesar da água me assustar, não era pior do que aquilo que estava do lado de fora da porta.

Olhei para cima e vi o teto se rachando e se abrindo lentamente enquanto mais água gelada era despejada sobre minha cabeça e inundava ainda mais o quarto. Eu já estava entrando em pânico quando o teto cedeu e uma quantidade gigantesca de água caiu sobre mim e quase me esmagou.

Eu estava submerso. Submerso numa imensidão escura.

Eu começava a sentir falta de ar, mas não encontrava a porta e nem as paredes. Nem a janela, ou o chão. Já não sabia mais se estava no quarto, se estava em algum lugar, qualquer lugar. Mas eu sabia que estava me afogando e suspeitava que, talvez, a diferença entre estar morto e quase morto pode ser muito, muito pequena e circunstancial.

Me faltava ar, então nadei para cima como se tentasse buscar a superfície e encontra o tão sonhado ar, mas não havia nada que não fosse frio e escuridão. Quando eu já havia desistido de procurar algo, senti a água gélida invadindo meus pulmões e vi.

Um enorme par de olhos amarelos me fitando.

Acordei assustado e sem ar. A porta barulhenta do elevador mais barulhenta do que nunca. O porteiro abrira ela com um pé de cabra e me olhou com cara de susto. Meu pai estava do lado dele. Olhei em volta: a luz quente do elevador se esparramando sobre mim e todos os botões dos andares com luzes acesas, mas o indicador de andar mostrava que eu estava no Térreo. Fiquei sem entender o que estava acontecendo, mas chorei de felicidade por estar ali.

Meus pais disseram que provavelmente eu resolvi brincar de apertar todos os botões do elevador e, por isso, ele acabou tendo uma pane, travando e eu fiquei preso lá dentro. Tive um ataque de pânico e desmaiei.

Contei a eles tudo pelo que havia passado sem eu mesmo saber se era tudo verdade ou não. Eles foram céticos, mas depois ficaram em dúvida. De fato, ninguém morava no apartamento 606 e não havia indício algum de que eu tenha estado ali em algum momento. Logo, meus pais me convenceram, para meu próprio bem, de que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, uma alucinação, um sonho ruim. Pelo meu próprio bem, tomei o caminho que eles traçaram para mim e acreditei neles. Afinal, era a explicação lógica e acreditei nela por mais de vinte e cinco anos.

A princípio, essa história mexeu comigo por um certo tempo. Tive pesadelos com aquela coisa que vi no apartamento meia-zero-meia por algumas semanas. Acordei algumas vezes no meio da noite tendo certeza de que estava morrendo afogado. E no princípio, precisei acreditar numa fé investida em mim pois não havia meios de lidar com a realidade do jeito que ela foi, do jeito que me lembro. Eu era uma criança com uma imaginação fértil e que andava assistindo muitos filmes de terror. O incidente na torre 7 do Residencial Bandeirante tornou-se uma memória quase irrelevante da minha infância que eu nunca mais quis visitar.

Mas, em certo momento, eu precisei.

Até porque meus pais não conseguiram explicar o que aconteceu com minha réplica da Williams de Alan Jones. Nem como ou porquê minhas roupas estavam completamente encharcadas quando me tiraram daquele elevador. E de todas as experiências que tenho a relatar sobre o período em que passei na Torre Sete do Residencial Bandeirante, essa foi, talvez, a mais fácil de explicar.

Pois não importa o que tenha sido aquilo que me encurralou no apartamento meia-zero-meia, não me deixaria escapar mais uma vez.