sábado, 28 de junho de 2014

A Dança dos Lobos

Eu segurei a porta do elevador e uma senhora do sexto andar teve tempo de entrar. Com um sorriso no rosto, a velha me agradeceu antes de apertar o botão que apontava o sexto andar. Sorri de volta enquanto clicava o quarto. Dei boa noite antes de descer no meu andar.

Pesquei minhas chaves no bolso e enfiei a correta na fechadura da porta da sala. Observei que o segundo algarismo de metal do número 42 pregado na porta do apartamento estava levemente torto para a direita. Sei que o número quarenta e dois carrega um significado importante para algumas pessoas. Eu nunca acreditei em numerologia ou esoterismo. Nem mesmo em espíritos, deuses ou demônios - muito embora isso soe estranho vindo de alguém que vê fantasmas todos os dias.

Entrei na sala, tranquei a porta atrás de mim, me livrei da minha mochila e apertei o botão do interruptor para acender a luz da sala em vão. A lâmpada não acendeu e permaneci na escuridão, mas a luz que entrava pela janela era o bastante pra ver a silhueta dele sentado no canto olhando pra mim. Olhos sedentos e um sorriso mais desesperado do que perverso.

Respirei fundo. Mais uma noite.

Fui até o banheiro e o ouvi me seguir. Podia senti-lo respirando há menos de dois metros de mim, mas não me virei pra trás. Me tranquei no banheiro, mijei como um rei, como se não houvesse nada no mundo importante o bastante pra me interromper. Ele bateu na porta e eu ignorei. Dei descarga, lavei as mãos e o rosto. Quando saí, ele não estava na porta. Quando entrei no meu quarto, lá estava ele de novo, no escuro. Mesmo que eu acendesse as luzes da casa e o fizesse desaparecer de vista, ainda saberia que ele está lá.

Prefiro tê-lo a vista. Tenho mais medo daquilo que eu não posso ver.

E mesmo que eu não pensasse assim, eu precisaria apagar as luzes quando fosse dormir e é quase sempre nessa hora que ele gosta de aparecer. Olhos sádicos sedentos, sorriso amarelo aflito. Não consigo enxergar nada ou ouvi-lo soluçar, mas sempre tenho certeza de que ele está sempre chorando. É só um palpite.

Amor e ódio são sentimentos fundamentais na vida das pessoas.

As que não tem alguém para amar tendem a se apaixonar por si mesmas vivendo a mentira da auto-suficiência,da auto-confiança e da auto-bajulação. Masturbação emocional. Não deixa de ser pecado se você romantizar uma punheta. Ou estou errado?

Já quem não tem alguém pra odiar, tende a criar inimigos à sua imagem e semelhança nos confins de sua mente. E de alguma forma eles encontram saídas do labirinto do subconsciente e se materializam como fantasmas se escondendo em sombras te olhando dormir. Ou como seu próprio reflexo no espelho.

Da mesma forma que Narciso morreu afogado fascinado pelo seu próprio reflexo no lago, não é nada impossível ser morto pelo ricochete do tiro que eu disparar contra meu reflexo no espelho.

Existem dois problemas em ver fantasmas. O primeiro é querer contar para alguém. E mesmo aquela pessoa que eu mais confio não acredita no que eu digo.  Todos acreditam que é uma invenção da minha mente. O que não deixa de ser verdade, embora ele não deixe de ser real por isso. Já me disseram que eu só estou querendo chamar atenção, mas eu preferia nem ser notado por ninguém do que ouvir alguém respirando em cima de mim freneticamente enquanto eu finjo dormir. De qualquer forma, no final, estou sozinho pra enfrentá-lo.

O segundo é uma espécie de guerra fria entre eu e ele - ou seria melhor dizer aquilo? Ele rosna, mostra os dentes, eu faço o mesmo. Se eu me movimento pra um lado, ele acompanha com sincronia e vice-versa. Nunca nós damos as costas de fato. É um jogo de intimidação. Toda a hostilidade está ali, num ar tão tenso que parece construir paredes entre nós. Infelizmente eu sei que elas não podem impedir ele de chegar até mim.

E eu sei que se eu baixar a guarda, a qualquer momento, ele pode cortar minha garganta com uma lâmina fria e mais enferrujada que as minhas juntas. E espero que ele continue acreditando que eu sou capaz de fazer a mesma coisa.

Ambos nos odiamos e temos um desejo obsessivo em matar o outro, mas nenhum toma o primeiro passo, ninguém saca suas armas. A Dança dos Lobos consiste de fazer com o que seu adversário acredite que ele tem mais medo de você do que você dele até que se afastem alcançando uma distância segura e se preparar para o próximo embate. É torturante.

Eu nunca durmo de verdade, sempre tenho uma lanterna e uma faca por perto da cama. O que também significa que eu nunca estou realmente acordado. Nunca dou as costas a espelhos e nunca relaxo meus músculos até ter certeza de que estou completamente sozinho no cômodo.

Eu sempre mantenho as portas trancadas e alguma fonte de luz por perto por precaução. E quando ele senta perto da minha cama, me preparo para ficar acordado até ele ir embora. O que muitas vezes só acontece quando o sol nasce.

Mas eu estou perdendo. Não vai levar muito até que eu esqueça uma porta aberta ou meu pé descoberto. E não vou suportar ficar acordado por muito mais tempo. Eu também não tenho ninguém pra ficar de vigília por mim ou me acordar quando for a hora.

Ele me observa com aquele sorriso que remete as coisas mais fodidas que alguém pode pensar ou fazer enquanto eu sento aqui e escrevo isso. Pra me lembrar que isso só vai acabar quando um de nós morrer. Que não há como escapar da própria sombra. Pra me lembrar que não se pode matar o que já está morto. E principalmente, me lembrar da verdade mais aterrorizante:

Uma hora, eu vou cair no sono.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Por quê eu não me rendo?

A noite é fria e cheia de todos os piores terrores que se possa imaginar. Ao menos para mim, que passo a madrugada torturado por pensamentos mal quistos que invadem as galerias da minha mente, carregam meu sono para longe e me atormentam até que eu esteja exausto demais para lutar. Eu morro e sonho que estou caindo e só renasço na manhã seguinte, destroçado, mas sempre com força o bastante para me levantar. Sempre mais tarde do que deveria, sempre cedo o bastante para cumprir meus horários.

Meio vivo, me arrasto pro trabalho. Meio morto, mantenho minha mente ocupada lutando contra tudo que me atormentou antes do sol nascer. A minha rotina consiste de travar uma luta constante contra mim mesmo e que eu sei que nunca vai terminar. Então por quê eu não me rendo?

Para outros, a noite é quente e repleta do melhor que a vida pode oferecer. Amigos, copos de bebida na mão, risadas, finais felizes com quase conhecidos. Quase pessoas. Sem sentimento, sem questionamento, apenas o prazer pela perfeita simetria de corpos quentes e corações frios. Deve ser divertido entender na prática como funciona cada um de seus nervos. Ao menos para quem não vive perseguido pela soma de todos os seus medos.

Rostos, nomes, formas, todos são esquecidos pela manhã. Já nem se tem ideia dos números. Felizes, vão viver suas vidas quase plenas. Com um sorriso cerimonial, fingem ser tudo o que todos querem ser. Acreditam na própria mentira usando a liberdade como pretexto para seus exageros e devaneios.

Perfeitas vidas de aparências. Perfeitos babacas sorridentes. Toda essa felicidade vem do álcool em suas bebidas, da noite com estranhos que mal se lembram ou da inflação de seus egos a cada clique numa rede social?

Ao menos eles são felizes (são?). Por quê não me juntar a eles?

Por quê eu não me rendo?

Porque eu detesto a descartabilidade escondida por trás da faceta de se viver a vida. Dinheiro, amigos, trepadas. Tudo em porção única e tão dispensável quanto uma porta de tela num submarino. A filosofia da liberdade própria que mascara a escravidão da futilidade. Sutil piada pronta. Não estou com humor para ironias à essa altura.

Se cada toque fosse pelo menos "meio" sagrado como eu acredito ser, talvez eu não estivesse aqui escrevendo isso, mas sim dormindo como todos conseguem fazer sem dificuldade alguma. Talvez não acordasse todas as manhãs enojado do que eu sou. Já me é comum encarar como impossível o que parece fácil e simples para todos. Estudar. Dirigir. Fazer amigos. Conquistar garotas.

E não, não sou uma vítima de mim mesmo. E nem de alguma teoria maluca que me confortaria ao dizer que o mundo conspira contra mim. Eu recuso esse rótulo como recuso ser como todos os outros. Não sou e nem quero ser descartável, obrigado. Muito menos um peão num tabuleiro, sacrificado por um rei que mal deixa a sua casa.

Eu sou um caso perdido e extremamente orgulhoso disso. Apenas me incomodo com as expectativas que terceiros criam sobre mim.

Eu tenho alertado. Eu grito há sete anos a verdade sobre mim e essa doença que eu acredito ter. Ninguém parece escutar. Ou talvez apenas não se importem, afinal, todos tem o seus problemas que, obviamente, são maiores, mais complicados e mais importantes do que os meus. E agora, por fim, começo a perder minha voz.

Então por quê eu não me rendo?

Porque esquecer nunca fez sentido pra mim.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Assim disse o Rei ao rio

Em meados de Outubro, o Rei covarde se trancou em seu castelo. Junto com o que sobrou de seus homens, esperou o inimigo que em pouco tempo tomaria a cidade, seu palácio e sua vida. O Rei havia prometido a mão de sua única filha a um Lorde de uma terra distante muitos anos antes. A Princesa e o Nobre em questão compartilhavam do amor mais puro já visto, e ambos tiveram seus corações dilacerados ao saber que o Rei tinha voltado atrás com sua palavra ao prometer a jovem a outro homem como pagamento de uma dívida. A donzela esteve de luto desde então, já o jovem rapaz, enfurecido, juntou forças com outros nobres descontentes e declarou guerra ao rei que amaldiçoou os traidores e garantiu que o prepotente rapaz acabaria afogado no fundo do rio que cortava Konigsberg.

No começo de Novembro, após negociações sem sucesso, dezenas de milhares de soldados cercaram a cidade e por dias a Guarda Real conseguiu impedir que os invasores passassem da muralha e tomassem a cidade. Porém os súditos do rei estavam em minoria, os recursos estavam a se esgotar, o moral de todos andava baixo. O conselho decidiu que a rendição seria a melhor saída. Queriam evitar mais mortes e sabiam que não poderiam vencer. O Rei se recusou e ensandecido, tramou um plano traiçoeiro para vencer a batalha. Durante à noite, enviou homens  para o norte para que destruíssem as barragens do rio. Assim o fizeram e toda a água represada nas montanhas desceu e inundou a cidade e destruiu todas as sete pontes de Konigsberg devastando um terço da cidade e matando milhares de inimigos. Mas a mesma água que descia da montanha afogou seu próprio povo e suas próprias tropas.

Quando Dezembro começou, os inimigos não tinham perspectiva de invadir a cidade. Com enormes baixas causadas pela inundação, sabiam que seria impossível chegar ao castelo com a cidade debaixo d'água. A recuada era inevitável. O conselho não aprovou os desmandos de sua Majestade, mas todos se calaram temendo serem presos por traição e condenados à morte. Porém aquele inverno se mostrou implacável e antes do fim da primeira quinzena daquele Dezembro, toda a água que cobria Konigsberg transformou-se em gelo, muitos morreram de fome e frio naqueles dias. Os invasores aproveitaram a condição do clima e no décimo nono dia do mês, ultrapassaram a muralha e tomaram a cidade. Os últimos soldados do Rei foram obrigados a se render, muitos morreram lutando pelo monarca covarde que se escondia no castelo. Os conselheiros abandonaram o rei e no natal, os inimigos já haviam tomado o castelo e o monarca foi condenado à morte.

No primeiro dia de Janeiro, a guerra estava vencida e todos os nobres do reino reclamavam o trono, exceto o nobre que declarou guerra ao rei. Tudo o que ele queria era casar-se com a jovem que a ele fora prometida. Mas para sua desagradável surpresa, a princesa o recusou. Ela vira seu povo morrer e seu pai ser condenado. Viu a cidade que tanto amava ser tragada pelas águas e tomada pela neve. Pilhas de cadáveres se amontavam pelas ruas de Konigsberg, tudo graças ao seu amor pelo lorde. "Se o amor é uma ponte, nós a construímos da maneira errada" disse ao seu amante.

Desolado, o jovem nobre abandonou o Castelo e estava a deixar a cidade com seus homens no mesmo momento em que o Rei era levado a guilhotina. Porém o gelo começava a derreter e o Lorde foi tragado pelo rio antes de sair da cidade. Morreu afogado com seus homens no mesmo dia em que a cabeça do rei rolou para deleite dos outros lordes que agora disputavam o trono. Á sua amada, só restou viver a vida que ainda tinha, de luto por um amor que custou a destruição de todo o reino.

Quando a primavera chegou, a princesa morreu atingida por uma misteriosa enfermidade. Só então perceberam que o preço do amor é a vida que se deixa por ele. Muitos anos depois, quando reconstruíram Konigsberg, um monumento em homenagem aos amantes foi edificado no centro da cidade, entre as sete pontes agora reconstruídas. E somente naquela enorme estátua de pedra fria que serviu de sepulcro para os amantes é que eles finalmente puderam estar juntos no descanso dos justos para lembrar que o amor entre duas pessoas pode tanto criar maravilhosas fábulas que são sempre contadas nas noites de verão como também ser centro dos piores horrores noturnos nos invernos mais frios.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

2007

Quarta Feira.

Cheguei atrasado e perdi a primeira aula. Fiquei meia hora sentado no pátio olhando pro nada, perdido dentro da minha própria cabeça. Pensando sobre tudo, sobre nada. Pensei na minha mãe chorando em frente a pia da cozinha numa casa morta que já não era minha. Assim como ela, eu não sabia porque ele tinha ido embora, até hoje não sei. Assim como não soube o que fazer diante do seu pranto. Pensei em abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Pensei em chorar e me desesperar também. Pensei que ser forte era não gritar de dor mesmo que furassem meus olhos. Então apenas assisti ela chorando. Estoico. Covarde.

Despertei com o soar do alarme. O sinal do fim da primeira aula, o começo da segunda. Coloquei a mochila nas costas e subi dois lances de escada até a minha sala. Vi todos me olharem com o mesmo desprezo de sempre. Parei na porta, hesitei, mas por fim, entrei. Ela não levantou a cabeça pra me ver entrar, passei sem nem fingir que não estava olhando pra ela. Tropecei sobre os meus próprios pés, mas equilibrei-me e logo sentei-me no fundo. Há tempos já não mais sentava perto dela. Há tempos já não mais conversávamos. Sentia me envergonhado, não sei bem do quê, mas acredito que fosse apenas de mim mesmo. Porque saber que todo mundo a queria, me fazia querer fracassar. Me fazia querer ignorá-la. Me fazia querê-la ainda mais.

A escola sempre me pareceu um campo de concentração. Andava sempre cabisbaixo, sem olhar ninguém nos olhos com medo do que eles poderiam ver ao olhar nos meus. Eu tinha quinze anos, mas aparentava ter doze. Todos pareciam adolescentes amadurecendo e prontos para a guerra no mundo lá fora. Eu era apenas um menino medroso. A sala me parecia uma prisão onde as paredes iriam me esmagar a qualquer momento. Me flagrei olhando pela janela, tentando fugir dali pelo menos em meus pensamentos, o que eu quase sempre conseguia fazer, mas agora eu tinha um "irmão" e um "pai" pra me preocupar.

No intervalo, eu estava escondido na biblioteca, lendo qualquer livro do Stephen King que eu pensei em roubar em algum momento, mas nunca o fiz. Sozinho como nunca, cercado de gente como sempre.Olhei pela janela o sol forte iluminando o pátio, casais de mãos dadas sentados nos bancos, alunos rindo nas rodas de amigos, garotas aos cochichos indo e voltando. Todo mundo parecia estar exatamente onde deveria. Por quê eu sempre senti que não fazia parte daquilo? Eu só queria poder fugir dali pra um exílio qualquer a beira do mar. Passar o resto da vida assistindo as ondas se quebrarem contra as pedras, ver o mar tomar a costa e o Oceano me engolir. Antes eu pelo menos tinha ele.

Na quarta aula inventei um motivo pra sair da sala. Meu cérebro parecia que iria fritar. Eu parecia pressentir o que estava prestes a acontecer. Deveria haver um nome para a antecipação que precede a catástrofe. A brisa macabra que sopra uma curva antes da colisão. O som da última prece antes da decolagem. O toque do último beijo do marido que não voltará mais para casa. A goteira no teto da sala que cessa para ouvir as más notícias de um homem com o chapéu nas mãos encostado contra o ventre.

Eu poderia reconhecer o ar daquela manhã mesmo no mais rarefeito dos montes.

Duas garotas chamavam no banco da frente. Não me esquecerei o silêncio absoluto de minha mente quando soube que não o veria mais. Eu nem imaginava o que tinha pela frente. Eu tinha apenas quinze.

Aqueles foram os dias mais difíceis da minha vida e não se comparam a nada pelo qual eu tenha passado ou esteja passando. Os anos se passaram, mas ainda pareço mais novo, ainda não me sinto como um adulto, ainda não me encaixo em lugar nenhum. Ainda sou o mesmo garoto medroso e frustrado que acredita que não chorar é sinônimo de força. Até hoje acredito que ela riria se soubesse como eu me sentia. E torno a andar cabisbaixo por corredores fuzilado por olhares de quem sabe que nunca vou me adequar. Ainda me escondo atrás de livros para que não me encontrem. Ainda me perco em minha mente olhando pra lugar nenhum, tentando fugir de mim mesmo.

Ainda sinto aquele ar pesado todas as noites antes de dormir.
E me deparo com a catástrofe na manhã seguinte: acordar.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Calendário

Onze de Junho. Amanhã começa a Copa do Mundo. Há pouco tempo, me parecia que esse dia nunca chegaria, mas chegou.

Já estamos na metade do ano, eu já estou com vinte e dois. Já estamos quase na metade da década. Já tem mais de meia década desde que eu saí da escola. O primeiro terço da minha vida já acabou.

Já fazem cinco meses desde que estamos juntos. São cento e cinquenta e três dias. Ou seriam cento e cinquenta e quatro? É quase um semestre, de fato. Dá pra se esquecer de muita coisa, dá pra lembrar de muitas outras.

Como o desenho animado esquisito que estava passando na televisão. O calor de uma manhã de sábado. O vento frio entrando pela janela do quarto. O cheiro de baunilha no meu travesseiro. Tua voz ecoando pelo quarto, o que eu jurava ouvir mesmo quando você não estava lá. A ansiedade de colocar a cabeça na janela e te ver na calçada com as pernas trançadas me ligando pelo celular antes de subir pelo elevador. As longas caminhadas pra lugar nenhum. Até porque, contigo, não importa muito o lugar pra onde esteja indo, o "ir" é mais importante do que o "chegar".

São mais seis meses até o fim do ano. São dezoito até você se formar. Há cinquenta e quatro eu me confesso com as paredes da minha casa esperando que elas me digam o que eu devo fazer. Enquanto isso, eu finjo que sei o que estou fazendo.

São quase cinco horas de viagem até a casa da minha mãe. Onde ela poderia me dizer o que fazer. Mas tem coisas que nem ela sabe.

À essa altura, eu deveria estar me desdobrando com minha monografia, meu trabalho e ainda ter tempo pra beber com meus amigos e me divertir. Eu já deveria estar entrando no último semestre.

Não vai rolar. E não tem um dia que eu passe sem me preocupar com isso.

Nada na minha vida é normal. É assim que tem sido há vinte e dois anos. E isso não é um clichê, quando eu digo que nada é normal, é nada mesmo. Você sabe.Quando eu abro a boca, nem mesmo meus amigos entendem o que está acontecendo. É como se eu falasse num dialeto próprio que só eu consigo decifrar. Ás vezes, nem eu.

Talvez seja melhor assim.

Faltam oito anos pra eu completar trinta. E os último oito anos passaram muito rápido, sinto que os próximos passarão ainda mais depressa. Será que até lá muita coisa vai ter mudado?

De qualquer forma, eu continuo caminhando do seu lado. Mais por andar contigo do que para chegar em qualquer lugar. Mas um dia chegaremos, afinal. Qual o próximo passo?

Você ainda vai estar lá quanto todas as luzes se apagarem? Queria que ficasse pra me ouvir cantar.

Eu amo você em todas as suas formas. E amo o fato de poder te ver crescer a cada dia. Odeio o fato de não acompanhar o ritmo de tudo isso. E eu sei que um dia eles vão nos comprar com promessas de estabilidade e futuro. Não há muito o que se fazer a respeito.

Eu tenho medo. O tempo todo. Mas uma bela paz de espírito quando estou com você.

Como quando eu acordo no meio da noite fico vendo você dormir. Pequenos momentos que eu nunca queria que acabassem. Talvez eu faça isso pra me certificar de que você ainda está lá. Respirando do meu lado.

E eu não sei como esse texto termina. Talvez o calendário não seja tão útil para medir o tempo nessas horas. Talvez vinte e dois anos não sejam só vinte e dois. Talvez cinco meses não sejam apenas cinco meses. Talvez nosso tempo não tenha necessariamente um fim da forma que a gente entende.

E talvez não tenhamos tempo.

A única coisa da qual eu realmente tenho certeza é que nossa caminhada é longa e virtuosa. E não importa muito onde ela vai nos levar. O mais importante é estar contigo até lá.