sábado, 31 de maio de 2014

(Em)Patético

O vapor quente subia e tomava todo o ambiente da cozinha. O aroma de café fresco invadia a casa enquanto a cascata da bebida enegrecida descia do bule até a caneca branca numa manhã de sábado. Ainda vestindo o jaleco e com o crachá pendurado no pescoço, cansada do plantão na noite anterior, minha mãe dizia uma frase emblemática na minha vida:

"Não é possível amar alguém se você não se amar primeiro."

Demorei anos para entender o que ela realmente queria dizer com essas palavras. Tivemos muitas conversas nas manhãs dos anos de 2008 e 2009. Ela trabalhava à noite no hospital e eu sempre a esperava acordado até de manhã para tomarmos café juntos e conversar. Mas de tudo o que ela me disse, nada marcou como isso.

Eu nunca lidei bem comigo mesmo e ela sabia, foi por isso que me disse essa frase. Maldita frase. Um sinal, minha sina, minha sentença para assinar.

Seis ou cinco anos já se passaram e até hoje não aprendi a ter o amor próprio do qual minha mãe me falava. Até hoje não aprendi o que ela quis me ensinar. E é exatamente por isso que eu venho aqui semanalmente há quase quatro anos. Tentar ter um pouco de auto-piedade. Enxergar nos outros aquilo que vejo em mim. Entender que não somos só carne e osso. Tem muito mais que isso aqui dentro.

Sabe como é acordar todos os dias pela manhã, se olhar no espelho e ver a pessoa que você mais odeia? Ter que conviver com ela todos os dias, ser aquilo que você detesta é desgastante.

"Você ainda pode mudar" - me disseram - "Nunca é tarde."

Pessoas não mudam. Cada um é o que é. O que acontece é que, ás vezes, a gente se redescobre. Eu já vi tudo que tinha pra ver, você também.

Você me disse que não tenho empatia. E isso deve ser verdade.

Mas não porque eu não consigo me colocar no lugar dos outros, é claro que eu consigo. Ainda tenho compaixão e simpatia por quase todo mundo. Mas se não consigo sentir piedade de mim mesmo, não é por outra pessoa que eu vou sentir.

Ao me colocar no lugar de qualquer pessoa, passo a enxergá-la da mesma forma que me enxergo. Então passo a enxergá-la de maneira patética.

Não sei quando foi que aconteceu, mas em algum momento eu fui emocionalmente castrado. Como um gato gordo, relegado a me arrastar pelos telhados de madrugada esperando um pedaço de qualquer coisa. Mas nem o meu rolo de lã me faz feliz. Não mais.

Mudei de emprego, estou saindo da banda. Meus amigos mal me vêem. No último ano, vi minha mãe uma vez só por quatro dias. Entro em casa querendo sair. Acordo querendo voltar a dormir. E vou dormir não querendo mais acordar.

É isso que é ser adulto? Descobrir que todos aqueles sonhos que a gente tinha quando criança eram meras vaidades? E que "pedir licença" e dizer "obrigado" caíram em desuso?

Continuem competindo e dizendo que sou eu que não vou crescer. É até um alívio.

De fato, as coisas não mudaram muito. Só que ao invés de ter medo de ver meu boletim, agora tenho medo de ver minha fatura do cartão de crédito.

E ninguém me parabeniza se eu tirar um dez. Nunca parabenizou.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Bilhetes nos bolsos do meu paletó.

Ouvi um homem gargalhar alguns andares abaixo. Ele ria freneticamente como se tivesse ouvido uma piada boa demais para ser verdade ou se tivesse visto algo extremamente engraçado. Ainda poderia ter pego alguém numa pegadinha ou brincadeira idiota. Mas não. Em algum momento, eu tive certeza que o homem ria de mim. O seu riso desesperado me manteve acordado por mais uma meia hora embora não tenha durado tanto assim. Ele parou de rir depois que começou a tossir. Continuou sua malévola gargalhada que ao mesmo tempo que parecia perversa era pura como a de uma criança, porém intercalada pela tosse tabágica que ecoava pelo pátio do prédio subindo até a minha janela. O riso mais desesperado que eu já ouvi em toda minha vida.

Eu me virei na cama e não consegui dormir. Estou com vinte e dois anos e mal sei passar minhas próprias camisas ou tampouco administrar meu próprio dinheiro. Quando eu tinha quinze, pensava que já seria um adulto à essa altura. Pensava que teria o mundo em minhas mãos. Mas ainda me sinto como o mesmo garoto com preguiça de estudar para as provas da semana que vem. E eu nunca estudei. Porque sabia que, no final, sempre teria notas boas o suficiente para me formar. Sinto falta do quão simples a vida era naquela época.

Não quero ser uma dessas pessoas que só conseguem ver o lado ruim das coisas. Mas todo mundo que eu conheço tem um plano. Algumas pessoas que estudaram comigo já tem filhos, já são casados. Já tem diplomas, casas e carros. E alguém que os espera chegar em casa à noite. E eu nunca ao menos aprendi a dirigir. Me disseram que nunca é tarde. Me disseram.

Eu deveria estar feliz. Tenho um emprego legal, um lugar pra morar, comida no meu prato, os melhores amigos do planeta e uma linda garota que me ama apesar disso tudo. Mas ainda venho aqui há mais de quatro anos dizer tudo aquilo que ninguém quer ouvir. E ainda lembro o aniversário de todas as coisas ruins.

São escolhas. Eu escolhi (escolhi?) não crescer. Vejo todos os meus amigos como adultos. Nenhum deles me parece mais um garoto procurando confusão por aí. Mas quando me olho no espelho ainda vejo o mesmo moleque medroso que não gosta de cortar o cabelo e nem de usar cintos. Por isso vivia com agulhas fazendo pences em suas calças e sempre se escondendo pelos cantos.

Entrei nos vinte com os mesmos problemas que tinha aos treze. Minha crise de meia idade só vai acontecer aos setenta e cinco. Será que até lá terei filhos que me odeiam, um casamento falido, um diploma amarelado na parede do escritório e um monte de dívidas como todo mundo? Todos precisamos disso, pelo menos foi o que me ensinaram.

E você precisa ter uma cabeça muito fodida pra se preocupar se vai morrer sozinho quando ainda tem vinte e poucos anos. Mas me disseram que nunca é tarde.

Eu não quero envelhecer. Não quero ter sessenta e três e estar regando meu jardim. Não quero encontrar bilhetes nos bolsos dos meus paletós me lembrando de tudo aquilo que eu não fiz. Não quero ter trinta e três e fazer malabarismo financeiro para pagar as prestações do meu carro. Nem ir à terapia de casal aos quarenta e um pra tentar salvar meu matrimônio. Nem quero ir à minha própria formatura aos vinte e sete pra fingir que é o momento mais importante da minha vida e que dali pra frente tudo vai ser fácil. Não quero um monte de gente que eu nem conheci direito no meu funeral. Não quero perder o parto do meu primeiro filho porque tive que ficar até mais tarde no escritório por uns trocados a mais.

Eu quero acordar de madrugada e caminhar até o centro da cidade e andar pelo meio das avenidas que durante o dia estão tomadas por carros e motos e ônibus e gente com pressa de viver a vida. Quero ouvir o silêncio daquilo que de dia pulsa como se tivesse vida própria e concluir que concreto é apenas concreto, asfalto é apenas asfalto e que minha sombra debaixo das luzes da cidade nunca vai ser maior do que eu mesmo.

Eu quero passar o resto da minha vida colecionando coisas engraçadas que eu acho na rua. Receber boas notícias de amigos que moram longe e, ébrio, rir de tudo o que me amedrontava anos atrás. Quero ter medo de fantasmas e usar minha camisa por fora da calça como se fosse uma mensagem que diz que eu ainda odeio cintos e não dou a mínima.

Eu quero encontrar meu lugar. E não estou falando geograficamente. Quero chegar em casa e me sentir em casa. Quero cantar sozinho pela rua e não me importar se as pessoas acham que eu perdi a cabeça. Isso pode ser verdade. E ter algum motivo pra deixar minha mãe orgulhosa que não seja um casal de netos e um diploma que eu comprei com minha juventude, meu suor, minha saliva e lágrimas, mas nunca quis ter no final das contas. Me disseram que nunca é tarde.

Não quero mais me sentir sozinho mesmo quando cercado de gente. Porque ninguém vê as coisas como eu vejo. Então todos acham que é exagero ou que eu estou inventando desculpas pra não fazer o que "eu devo fazer". Quero entender porque deus me entregou o fardo de enxergar tudo com tanto cinismo sem se preocupar em deixar alguém para dividir comigo o peso disso. Pois eu não aguento mais.

Estou cansado de enxergar estereótipos. Cansado das mesmas pessoas com os mesmos pontos de vista pré-concebidos. Estou cansado de ter medo de coisas que parecem simples pra todo mundo, menos pra mim.

Filas de banco, consultórios médicos, provas, escolas, universidades, restaurantes caros, escritórios, o assento do motorista, terno e gravata, carreiras bem-sucedidas, festas, casamentos, velórios, dançar e consertar coisas.

Eu preciso de um novo desastre. Imploro por ele todos os dias.

Isso me faz pensar que todos se conformaram com o fato de o mundo ser um lugar repulsivo. Será que só eu enxergo isso? Será que é por isso que eu me sinto como se estivesse sendo deixado pra trás há sete anos? "Fazer o que, as coisas são assim." Sempre que ouço isso, sinto vontade de me atirar do décimo segundo andar.

Estou cansado de ideologias e simplistas dicotomias que usam para enxergar o mundo. Eu sinto falta de pessoas que pensem por conta própria ao invés de reproduzirem várias e várias vezes o mesmo conjunto dogmático de ideias.

Eu sinto falta da minha mãe. E quando meus amigos eram um bando de moleques sem um puto no bolso sonhando em formar uma banda. Sinto falta de conseguir chorar quando sentia vontade.

Quero alguém que entenda e não me diga nada.
Quero alguém que entenda.
Eu preciso.

Quero rir sem ter medo de mostrar meus dentes.
Quero rir sem ter medo de estar sozinho.
Quero rir sem me importar se devo.

Então me desculpe.

Me desculpe por não rir nas horas certas.

Me desculpe por rir.
Me desculpe.

Eu juro que vou limpar meu quarto.
Eu juro que vou começar tudo de novo.

Me disseram que nunca é tarde. Que também riram de Julio Verne.
Mas meu problema não é tempo. E eu não escrevi Viagem ao Centro da Terra.
Me disseram que nunca é tarde. Mas o problema é que nunca é cedo.
Na dúvida, vou manter os bolsos do meu paletó vazios.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

A outra face

Depois de passar um ano inteiro de aeroporto em aeroporto, já não suportava mais as salas de espera, as longas filas de check-in, os despachos de bagagem, o péssimo inglês da tripulação, os assentos quase sem espaço e lutar para poder entrar com sua guitarra dentro da aeronave. Odiou voar de tal maneira que pediu a Deus - àquele mesmo em Quem a muito não acreditava e a Quem ainda não acredita - derrubasse o avião naquela manhã de Dezembro.

Chegou são e salvo, intacto. Perplexo por ainda se dar ao luxo de voar, conformado com o fato da aeronave não ter beijado o chão como quis quando esteve acima das nuvens. Arrastou-se pelo saguão puxando a mala com a rodinha quebrada que cismava em pender para um dos lados sempre que forçava um pouco mais para trazê-la pra perto do corpo. Lembrou de nunca mais viajar no último dia do ano, poucas experiências são mais desgastantes.


Metrópole cinza, estrada cheia de curvas e mais quilômetros pela frente do que facadas em suas costas. Nem se importou. No final, se sentiu em casa só de estar no chão. Terra firme é sempre um porto seguro. Tudo isso para chegar "em casa" e ouvir de quem o matou que não era tão culpada assim.

Sem querer, ele sabia que o cinismo não tem cura. Quis se levantar da calçada e ir embora, mas estava preso a ela por uma força muito maior do que a própria gravidade.

Fevereiro chegou. Ele percebeu ao se debruçar na sacada de madrugada e sentir suas tripas dando um nó como uma bizarra clarividência gastro-intestinal. Só depois de estar no chão frio e molhado, derrotado e sem forças para se levantar, percebeu que todos aqueles pesadelos eram, de fato, premonições. Mensagens do futuro encriptadas, enviadas em bilhetinhos escritos em guardanapos baratos na mesa de um bar que ele não leu. Ou não quis ler. Ou simplesmente não foi capaz de enxergar.

Não importa. Agora estava morto. Apunhalado dezessete vezes pelas costas pela única pessoa a quem permitira permanecer eu seu ponto cego. Ele, que nunca se permitiu ser visto chorando em público, que escondia metade dos sorrisos com os punhos e nunca se deitava sem cobrir os pés, morto pelo mais fraco de todos aqueles que chegaram perto o bastante pra desferir qualquer golpe.

Sentiu dor, sentiu pena de si mesmo, sentiu raiva. Mas nunca quis vingança. Muito embora soubesse que o preço da traição é ser atormentado pela própria consciência até o fim dos seus dias em vida. E justamente isso bastou. Soube ali que já não estava mais triste como antes, só precisava esperar aquele ano acabar que tudo ficaria bem. Repetiu isso para si mesmo como um mantra.

Ergueu-se de tal forma que não foi, de fato, ele que saiu do chão. Foi o solo que foi forçado para baixo a ponto de tirar a própria Terra de seu eixo e tornar-se mero cenário de todo o seu plano.

Respirar.
Recomeçar.
Agir.

Quinhentos e dois dias depois de desejar cair de trinta e dois mil pés de altura e acabar tragicamente esfacelado nos destroços de uma aeronave numa clareira qualquer na serra, completou vinte e dois anos querendo viver cada dia que ainda lhe resta viver. E embora tenha ressuscitado inexplicavelmente na metade de Dezembro, o fantasma de quem um dia foi voltou para atormentar o assassino e desmascarar sua falsa felicidade, sua falsa sensação de ter a consciência limpa. Aquela mentira tão grave que até o mentiroso acaba por acreditar. Até que um fantasma volte para expor toda a sujeira empurrada para debaixo do tapete.

Para ele, não importava muito, até alguém ler para ele o depoimento do assassino que dizia que sua morte foi acidental. Não sentiu raiva, apenas decepção. Acreditou na remissão dos pecados, no arrependimento que leva ao perdão. No aprendizado através da experimentação da consequência de cada erro. Apenas lamentou-se ao constatar o fato de que Judas nunca vai deixar de ser um traidor, ele só precisa de um novo Cristo para vender. E uma nova corda para se enforcar.

Estoico permaneceu até o fim de seus dias. E venceu, sim, embora nunca tenha competido. Venceu a si mesmo, a seus próprios medos. Superou a única pessoa que importava superar desde o princípio.

E no final, qual é o ponto da questão?

Dar a outra face não é aceitar o tapa. Mas sim, evidenciar a fraqueza do agressor. Bata mais. No final, só terá uma mão dolorida e um choro pesado preso na garganta para engolir. É tudo o que você tem agora, Corday.


"I spent the winter writing songs about getting better. And if i'm being honest, i'm getting there."

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Catch 22

"You mean there's a catch?"
"Sure there's a catch", Doc Daneeka replied. "Catch-22. Anyone who wants to get out of combat duty isn't really crazy."
There was only one catch and that was Catch-22, which specified that a concern for one's own safety in the face of dangers that were real and immediate was the process of a rational mind. Orr was crazy and could be grounded. All he had to do was ask; and as soon as he did, he would no longer be crazy and would have to fly more missions. Orr would be crazy to fly more missions and sane if he didn't, but if he was sane, he had to fly them. If he flew them, he was crazy and didn't have to; but if he didn't want to, he was sane and had to. Yossarian was moved very deeply by the absolute simplicity of this clause of Catch-22 and let out a respectful whistle.

(Catch 22, Josef Heller, 1961)

Vinte e dois anos e o Ardil 22 segue me perseguindo. Se eu tentar sair alegando que sou louco, quer dizer que eu não sou. Se eu ficar, quer dizer que sou. O que quer dizer que posso sair. Mas se eu resolver sair, quer dizer que não estou louco... vocês entenderam.

Feliz aniversário pra mim.