quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Coral dos Sinos

O sol já subira alto no leste derramando sua luz amarelada sobre toda a cidade como uma cascata de luz e calor. Dentro dos muros, carroças puxadas por cavalos, soldados, homens e mulheres comuns já andavam lá e cá com seus afazeres. Crianças pobres brincavam nos becos e se banhavam nas margens do rio. Já no alto daquela manhã de Julho os sinos da catedral começaram a soar. Em uníssono, todos os sinos da cidade cantaram a fúnebre sinfonia de uma nota só que se espalhava por entre becos e avenidas, palacetes e prostíbulos, mercados e estábulos.

Todos sabiam que algo tinha acontecido, pairava no ar da cidade uma tensão tão pesada que podia-se tocá-la. As crianças corriam até o púlpito em frente ao pátio da Fortaleza curiosas para descobrir o que acontecia. Os mais velhos já se precipitavam em descobrir o que acontecia. A maioria tinha pessimismo nos olhos e nas palavras, a maioria era novo demais na última vez em que todos os sinos tocaram ao mesmo tempo. Soldados viam daqui e dali, como formigas operárias, meio organizados, meio confusos.

Um navio mercante atracava nas margens do rio quando os sinos começaram a tocar. Um homem atirou um saco de moedas ao capitão antes de atingir o assoalho de madeira do dique e empreitar rumo à fortaleza. Vestia negro dos pés à cabeça e portava aço da melhor qualidade. Haviam duas milhas entre o porto e à fortaleza que ele cobriria a pé. Grande parte do caminho, uma íngreme subida entre vielas de terra batidas e ruas de paralelepípedos de barro.

Resolveu parar numa taverna de esquina quase na metade do caminho. Uma pocilga que cheirava a madeira podre e cerveja velha, escura e úmida. Um balcão velho de madeira de lei, meia dúzia de mesas e cadeiras num espaço tão pequeno que não conseguiu imaginar o quanto era infernal quando lotado nas noites quentes de verão.

O viajante pediu uma cerveja à moça atrás do balcão. Uma jovem pálida e raquítica que parecia que iria desmontar-se se um vento soprasse mais forte. Um lenço amarrado à cabeça deixara revelar um pouco do cabelo loiro que se derramava ao lado das orelhas. Bebeu a cerveja satisfeito e ouviu a conversa de outros dois homens que bebiam na outra extremidade do balcão.

- Soaram os sinos por toda a manhã. Boas notícias não podem ser - disse um dos homens, gordo como um porco, já de escassos cabelos grisalhos e a pele ainda mais pálida quanto a da garota atrás do balcão, tinha o rosto avermelhado pelo sol e lhe nascia uma fraca barba grisalha pelo rosto. Trajava vestes grosseiras de couro curtido e trapos remendados.

- Não sejas tolo! Provavelmente algum nobre deve estar se casando com alguma cadela esnobe. Ou estão recebendo a visita de um Lorde de Sei-Lá-o-Quê vindo de Sabe-Deus-Onde. - O segundo homem era carrancudo, magro, careca. Falava como se fizesse esforço para tal. Tinha um rosto comprido e estreito e seus olhos denunciavam seu jeito falastrão. Era tão maltrapilho quanto o outro homem.

- Eu nunca ouvi tantos sinos soando em casamento. Os noivos devem certamente estar surdos à essa altura. Provavelmente, foi declarada uma guerra. Ou vão executar algum prisioneiro no pátio da Fortaleza - Continuou o primeiro homem sorrindo - nesse caso, adianto que deveríamos correr para não perder o espetáculo,

- Já vi demasiadas cabeças rolarem meu amigo, não tem espetáculo algum nisso. E se todas as vezes que fossem cortar a cabeça de algum desgraçado em frente ao púlpito soassem tantos sinos, não seriam só os noivos a ficarem surdos, nós também estaríamos. - o homem alto e carrancudo arquejou e tomou um gole do seu vinho. Engoliu com dificuldade e concluiu - certamente o rei recebe visitas.

- Sim meu amigo, os sinos dobram pela visita do rei - intrometeu-se o estranho viajante que tomava cerveja no lado oposto do balcão. Ambos os homens olharam para ele, depois olharam-se entre si, tentando reconhecer o homem que metia-se na conversa, mas a figura não lhes era familiar.

- Só há uma visita que faça soar tantos sinos nessa cidade, uma que em muitos anos deixou de vir para Vossa Majestade, o Rei. - o homem se levantara e agora caminhava lentamente na direção dos homens da beirada do balcão. Era como uma sombra de tão negras que eram suas vestes. Um capuz cobria-lhe a cabeça e uma longa manta chegava quase que aos seus pés. - Asas negras voaram sobre o castelo essa. Uma velha amiga de nosso rei - e de todos nós, se me permitem - prestou a ele uma visita que um dia ainda prestará a todos nós. Se soam todos sinos, só pode significar uma coisa meus amigos:

O Rei Está Morto.

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"Para nós e nossa tragédia, pedimos vossa audiência e suplicamos clemência."

- Isso é um prólogo ou a inscrição de um anel?
- Pelo menos foi curto.
- Curto como o amor da mulher. 


(Willian Shakespeare, 1599 "Hamlet", Ato III, Cena II)

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