segunda-feira, 23 de março de 2015

Os Olhos do Gato

Eu só queria poder exorcizar meus demônios através da tosse que tenho tido esses dias. Já poderia estar dormindo tão melhor e mais confortavelmente.

O improvável aconteceu: as coisas deram certo. Minha vida (em termos) progrediu, andou para frente como há tempos não o fazia. Se há três meses atrás eu celebrava um natal sem ter muitos motivos para fazê-lo, hoje tudo parece ter saído melhor do que o esperado. Tendo conhecimento de causa a respeito da disciplina "minha vida", tenho uma compreensível suspeita acerca de tudo que dá certo demais.

Bem como o gato de rua que nunca chega perto para comer na sua mão ou receber seu afago. Não importa se suas intenções são as melhores, ele vai demorar muito tempo até ter confiança de encurtar a distância até que sua mão possa tocá-lo, seja com afeto, seja com raiva. Ele apenas de observa de longe, com o corpo arqueado e os olhos estralados, curiosos, famintos de novidade, mas pronto para fugir ágil como a natureza o fez ser caso qualquer coisa lhe pareça estranha

Talvez seja por isso que eu insisto em voltar lá.

De certo, o gato se lembra de algum outro humano que praticou alguma perversidade com ele. Talvez uma traquinagem de garoto ou uma maldade maior praticado por adultos que tendem a ser mais fortes, cruéis e conscientes de sua maldade. O passado do gato é um navio atrás de um horizonte nebuloso: não podemos vê-lo nem dizer que está realmente lá, mas torçamos para que esteja vindo encontrar o cais.

O meu passado é o cais para o qual meu navio tende a voltar.

Próximos ou distantes, meus destinos nunca se contam em milhas ou léguas, mas sempre em minutos, horas, dias, meses ou anos sempre negativos. Sempre zarpo rumo a pontos no tempo passado quando participo das minhas próprias histórias como mero espectador, e nunca como participante. Nada posso fazer para mudar o que acontece na trama, mas assisto o filme de novo e de novo.

E tenho voltado muitas vezes até a casa da minha mãe. E sempre sinto que lá é um lugar frio mesmo durante o verão, mesmo com a cama e a comida quente, mesmo com os abraços cheios de carinho dela. Oras pois, a sensação de frio é mera associação ao um estado emocional que cultivo em relação a determinado ambiente. Não que o ambiente na casa dela seja ruim, muito pelo contrário. Mas eu atribuí a São Paulo e a casa da minha mãe essa característica e agora não consigo mais desvencilhar uma coisa da outra. Mas não é por isso que tenho voltado lá, pelo frio. O frio é consequência e não causa, ele esteve lá mesmo no mais quente final de primavera - ou mais frio final de outono dependendo de qual hemisfério a gente enxerga.

Acredito que volto lá para me lembrar, como o faz o gato. Para me alertar sobre lições que o passado já me ensinou uma ou mais vezes, para tentar me entender melhor e buscar uma tomada de decisão mais correta. Aceitar ou não a comida e o afago correndo o risco de sofrer algum tipo de crueldade nas mãos de um humano. Aos olhos do gato, o prêmio não vale a pena o risco. Os meus talvez já não enxerguem da mesma forma. Talvez sejam mal treinados perto dos dele ou menos maliciosos.

Talvez.

Mas nós já temos nosso próprio pacto: nunca mais seremos tão frágeis. E nos pegar não será mais tão fácil.