sábado, 27 de dezembro de 2014

V - Escarlate

Me lembro da primeira vez que me olhei depois de ter despertado. Não reconheci a pessoa no reflexo do espelho do banheiro. Eu não tinha mais cabelo e uma barba espessa crescia no meu rosto. Eu parecia muito mais velho. Bolsas se penduravam abaixo dos meus olhos caídos e havia uma cicatriz na minha têmpora direita há muito já fechada que eu não fazia ideia de onde tinha surgido. Também estava mais magro e pálido do que nunca.

Percebi que não sentia falta dos meus óculos. Eu estava enxergando perfeitamente bem sem eles.

Minha mãe vasculhou as minhas coisas. As roupas que eu vestia quando me encontraram. Não encontrou documentos ou qualquer pista que indicasse por ande andei por todo esse tempo. Apenas um ensopado maço de cigarros e um isqueiro que obviamente já não funcionava mais. O que é engraçado porque nunca fumei - pelo menos, não me lembrava disso.

Então lembrei da voz da mulher do fundo do rio, dentro da minha cabeça no dia anterior.

"Mantenha seus olhos no chão rapaz. Você é só uma criança jogando dados. Fumando um maço por dia, comendo e dormindo mal. Andando sozinho de madrugada, esperando ser baleado por algum trombadinha."
Pensar naquilo fez meu estômago revirar.

Ela também encontrou balas de menta - essas eu reconhecia, um vício antigo - e um relógio de pulso quebrado e travado em 4:34.

De resto, roupas que eu nunca vi na vida eram o que eu vestia quando me encontraram. A cada minuto que passava, eu ficava cada vez mais confuso. E ainda tinham as visitas: amigos antigos apareciam no hospital para me visitar, todos completamente pasmos e desacreditados. Nenhum conseguia me reconhecer de cara assim como eu não podia reconhecer a maioria deles.

Me perguntavam sobre coisas que eu não saberia dizer, contavam sobre coisas que eu nem imaginava que tinham acontecido. Minha irmã já era uma mulher feita, meus amigos todos já eram pais de família, doutores, engenheiros, advogados.

Eu não sabia o que dizer. Minha cabeça parecia querer explodir, meu estômago estava revirado e tudo o que eu queria era um cigarro. Não sei quando, não sei como, mas me tornei um fumante do dia pra noite.

Eu só queria voltar para casa. Mas descobri que casa é um lugar que não existe mais. Não para mim.

E na última noite, sonhei com ela de novo. Ela dizia que tudo ficaria bem desde que eu não insistisse em olhar para trás, mas era um conselho impossível de ser seguido. Eu não posso simplesmente fingir que nada disso aconteceu. Algumas pessoas esquecem fácil, mas essa é uma ideia que nunca fez sentido pra mim. Mesmo que eu quisesse, não poderia seguir em frente sem entender o que de fato aconteceu.

Nunca fui bom nisso, em simplesmente me desapegar do passado. Pra mim, sempre foi difícil esquecer qualquer coisa. Fui apaixonado pela mesma garota durante todo o Ensino Médio. Nunca deu certo. Mas por mais que eu tentasse me aproximar de outra pessoa, eu nunca conseguia preencher o lugar que ela ocupava.

Quando eu era criança, vi um garoto ser atropelado numa avenida perto da escola onde eu estudava. Por semanas, não conseguia dormir com a imagem dele sendo atirado no ar pelo carro e batendo com força no asfalto. Mesmo hoje, lembro com clareza o som da cabeça dele acertando o chão. Lembro dos médicos tentando reanimá-lo, lembro de como os olhos dele se tornaram fundos e opacos, lembro-me do vermelho escarlate do sangue escorrendo e formando uma linha vermelha até o meio fio. Foi algo que me fez ter pesadelos por anos, nunca superei completamente, nunca esqueci. E acredito que nunca irei.

E agora, tudo o que eu queria era lembrar de um enorme pedaço da minha vida que estava em branco, era saber o que de fato aconteceu. E descobri que mais difícil que saber é não lembrar. Mesmo a mais cruel das certezas jamais me torturaria quanto as dúvidas. Eu devo ter estado em algum lugar, deveria haver pelo menos uma pessoa que pudesse me responder, que pudesse me lembrar.

Comecei a pensar onde e com quem passei meus últimos aniversários. Como ganhei novas cicatrizes, quando comecei a fumar. Quando foi que minha vida tomou um rumo que nem eu mesmo consigo entender? Eu só queria sair e encontrar respostas.

Eu queria minha vida de volta. E resolvi buscá-la.

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