quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Sweet and Sour

Parece que a vida resolveu zombar de mim - de novo. 





Hoje

Hoje, pela primeira vez desde que cheguei, não choveu. E toda água que já caiu serviu para lavar toda a labuta que que fez de mim morada, como a poeira sobre um pedaço de arte esquecido no átrio de um antigo palacete.
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Hoje, pela primeira vez, dormi sem ter pesadelos. Não me afoguei em águas escuras, não me atirei de grande altura, não senti a força do punho da auto-consciência esmagar meus pensamentos e desfigurar minha personalidade.

Hoje, pela primeira vez, senti fome. E quis um banquete para celebrar tudo pelo o que eu passei. Para o meu deleite, Eu ainda seria eu mesmo sem tantos talhos sobre a carne e tantas trincas nos meus ossos, mas seria ainda mais tedioso.

Hoje, pela primeira vez, quis voltar. E enfrentar os demônios que me afastaram. Não quis esquecer nada, não quis fugir. Cansei de correr de tudo.

Hoje, pela primeira vez em muito tempo, quis viver. Quis sair dessa caverna, deixar o sol tocar meu rosto, colocar os cabelos ao vento, tomar um banho e me sentir purificado.

Pois é bem verdade que me disseram que todos já desistiram. Mas eu ainda estou aqui. E sei que, cedo ou tarde, algum caminho eu vou encontrar - ou será que ele vai me achar primeiro? E quando isso acontecer, eu vou ter muito o que celebrar - bem modestamente.

Mas não, eu não venci. Existem guerras impossíveis de vencer, essa é uma delas. Mas continuar lutando é vital, é o único recurso que temos. E eu me recuso a simplesmente afundar.

Por hoje, não quero ser salvo. Quero que estejam lá quando eu me salvar.

Por hoje, vou nadar a braçadas até a costa. Não quero boias nem botes salva vidas. Não quero uma corda para escalar nem uma saída de emergência. Só quero encontrar os meus na praia orgulhosos de mim. Só quero provar pra mim mesmo que sou mais forte que as ondas que se quebram. E sim, vou engolir um pouco d'água, mas por hoje, não vou parar enquanto não chegar aonde quero.

Hoje, não vou deixar pra lá, não vou deixar para depois. Hoje, vou me deixar viver.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O Coral dos Sinos

O sol já subira alto no leste derramando sua luz amarelada sobre toda a cidade como uma cascata de luz e calor. Dentro dos muros, carroças puxadas por cavalos, soldados, homens e mulheres comuns já andavam lá e cá com seus afazeres. Crianças pobres brincavam nos becos e se banhavam nas margens do rio. Já no alto daquela manhã de Julho os sinos da catedral começaram a soar. Em uníssono, todos os sinos da cidade cantaram a fúnebre sinfonia de uma nota só que se espalhava por entre becos e avenidas, palacetes e prostíbulos, mercados e estábulos.

Todos sabiam que algo tinha acontecido, pairava no ar da cidade uma tensão tão pesada que podia-se tocá-la. As crianças corriam até o púlpito em frente ao pátio da Fortaleza curiosas para descobrir o que acontecia. Os mais velhos já se precipitavam em descobrir o que acontecia. A maioria tinha pessimismo nos olhos e nas palavras, a maioria era novo demais na última vez em que todos os sinos tocaram ao mesmo tempo. Soldados viam daqui e dali, como formigas operárias, meio organizados, meio confusos.

Um navio mercante atracava nas margens do rio quando os sinos começaram a tocar. Um homem atirou um saco de moedas ao capitão antes de atingir o assoalho de madeira do dique e empreitar rumo à fortaleza. Vestia negro dos pés à cabeça e portava aço da melhor qualidade. Haviam duas milhas entre o porto e à fortaleza que ele cobriria a pé. Grande parte do caminho, uma íngreme subida entre vielas de terra batidas e ruas de paralelepípedos de barro.

Resolveu parar numa taverna de esquina quase na metade do caminho. Uma pocilga que cheirava a madeira podre e cerveja velha, escura e úmida. Um balcão velho de madeira de lei, meia dúzia de mesas e cadeiras num espaço tão pequeno que não conseguiu imaginar o quanto era infernal quando lotado nas noites quentes de verão.

O viajante pediu uma cerveja à moça atrás do balcão. Uma jovem pálida e raquítica que parecia que iria desmontar-se se um vento soprasse mais forte. Um lenço amarrado à cabeça deixara revelar um pouco do cabelo loiro que se derramava ao lado das orelhas. Bebeu a cerveja satisfeito e ouviu a conversa de outros dois homens que bebiam na outra extremidade do balcão.

- Soaram os sinos por toda a manhã. Boas notícias não podem ser - disse um dos homens, gordo como um porco, já de escassos cabelos grisalhos e a pele ainda mais pálida quanto a da garota atrás do balcão, tinha o rosto avermelhado pelo sol e lhe nascia uma fraca barba grisalha pelo rosto. Trajava vestes grosseiras de couro curtido e trapos remendados.

- Não sejas tolo! Provavelmente algum nobre deve estar se casando com alguma cadela esnobe. Ou estão recebendo a visita de um Lorde de Sei-Lá-o-Quê vindo de Sabe-Deus-Onde. - O segundo homem era carrancudo, magro, careca. Falava como se fizesse esforço para tal. Tinha um rosto comprido e estreito e seus olhos denunciavam seu jeito falastrão. Era tão maltrapilho quanto o outro homem.

- Eu nunca ouvi tantos sinos soando em casamento. Os noivos devem certamente estar surdos à essa altura. Provavelmente, foi declarada uma guerra. Ou vão executar algum prisioneiro no pátio da Fortaleza - Continuou o primeiro homem sorrindo - nesse caso, adianto que deveríamos correr para não perder o espetáculo,

- Já vi demasiadas cabeças rolarem meu amigo, não tem espetáculo algum nisso. E se todas as vezes que fossem cortar a cabeça de algum desgraçado em frente ao púlpito soassem tantos sinos, não seriam só os noivos a ficarem surdos, nós também estaríamos. - o homem alto e carrancudo arquejou e tomou um gole do seu vinho. Engoliu com dificuldade e concluiu - certamente o rei recebe visitas.

- Sim meu amigo, os sinos dobram pela visita do rei - intrometeu-se o estranho viajante que tomava cerveja no lado oposto do balcão. Ambos os homens olharam para ele, depois olharam-se entre si, tentando reconhecer o homem que metia-se na conversa, mas a figura não lhes era familiar.

- Só há uma visita que faça soar tantos sinos nessa cidade, uma que em muitos anos deixou de vir para Vossa Majestade, o Rei. - o homem se levantara e agora caminhava lentamente na direção dos homens da beirada do balcão. Era como uma sombra de tão negras que eram suas vestes. Um capuz cobria-lhe a cabeça e uma longa manta chegava quase que aos seus pés. - Asas negras voaram sobre o castelo essa. Uma velha amiga de nosso rei - e de todos nós, se me permitem - prestou a ele uma visita que um dia ainda prestará a todos nós. Se soam todos sinos, só pode significar uma coisa meus amigos:

O Rei Está Morto.

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"Para nós e nossa tragédia, pedimos vossa audiência e suplicamos clemência."

- Isso é um prólogo ou a inscrição de um anel?
- Pelo menos foi curto.
- Curto como o amor da mulher. 


(Willian Shakespeare, 1599 "Hamlet", Ato III, Cena II)

sábado, 22 de novembro de 2014

Carta do Exílio

Três dias desde que toquei os pés no chão dessa cidade e já parece que se passaram alguns meses. É bem cansativo e ao mesmo tempo tedioso estar aqui. É claro que é bom ver minha mãe, aconchegar-me nos seus abraços ternos e suas palavras amigas. Eu sempre sinto falta dela quando estou longe.

Tenho passado o dia todo lendo. E conversando com minha mãe. Fazendo mais o primeiro do que o segundo, é verdade. É irônico saber que esse é o único lugar em que me sinto em casa, mas o único que sei que não posso morar.

Não tenho tido tanto saco para música como normalmente tenho. Também tenho pensado em começar a gastar dinheiro. Há pouco tempo, havia tantas coisas que eu queria comprar que vivia a lamentar por não ter dinheiro para tal. Hoje o tenho e não sinto empolgação nenhuma em comprar qualquer coisa.

Ao pensar nisso que fiz uma constatação impressionante: estou me tornando chato.

Eu sei que chato sempre fui, mas agora toma um sentido completamente diferente. Sempre fui inconveniente, irritante e teimoso demais. Mas estou me tornando rabugento, introspectivo, conformista - tenho medo dessa palavra. Não estou vendo graça em coisas que antes me faziam rir, também não me empolgo tanto com coisas que antes me moviam. Nem sequer assisti o último jogo do meu time. Então sabemos que tem algo errado. Também não tenho tido saco para as pessoas, por isso tenho evitado falar com todas elas.

Estou tentando me acostumar com meus óculos e, por enquanto, tenho me sentido extremamente desconfortável com ou sem eles. Quando os coloco, acabo por suar na testa e manchar as lentes, o peso da armação sobre o nariz também incomoda. Quando os retiro, continuo enxergando uma sombra de onde outrora esteve a armação na minha visão periférica. Fora o fato de que sempre me esqueço e acabo enfiando os dedos nas lentes quando tento coçar os olhos.

Tenho pensado no futuro. Tenho tentado planejar algumas coisas a curto e a médio prazo. Me surpreendi quando percebi que já tinha pelo menos dois planos para colocar em prática já em Janeiro. Tento me ver dirigindo e acho engraçado. Consigo me ver estudando e me embrulha o estômago. Ás vezes me vejo deixando a cidade e até mesmo o país. Acredito que em anos foi a primeira coisa que eu quis com força o bastante para tentar.

E tem coisas que continuam como há uma ou duas semanas: tenho que me lembrar de comer e tomar banho. Também me policio o tempo todo com os cigarros que eu passei a fumar em quantidade muito maior. E aquele vazio que eu sinto ainda está aqui, tão devastador quanto antes. Mas percebi que se você não olhar para a escuridão por muito tempo, não vai ter como sua mente lhe pregar peças. Se todo mundo consegue ignorar isso, talvez eu também consiga, tem funcionado por enquanto. Eu acho.

Então constatei outra coisa: queria ter alguém com quem conversar.

Atualmente, não tem ninguém disposto a ouvir sobre as coisas que eu tenho a dizer. Nem mesmo minha mãe. Nem mesmo meus melhores amigos, mas eu não culpo ninguém. Todo mundo fez o que pode por mim, já tá na hora de começar a crescer aprender a lidar com os próprios demônios.

Então não vejo mais tanto motivo para falar sobre isso, dramatizar e romantizar tudo aquilo que eu sinto. Eu já sei o que é que me incomoda. Está lá, não vai mudar. O jeito é lidar com isso e incomodar o mínimo possível as outras pessoas com essas coisas pequenas. E não me incomodar com as coisas delas, é o que todo mundo faz. Talvez apostar no óbvio seja o mais correto.

E uma vez disseram que as coisas pequenas eram tudo o que importava.

Mas agora acho que eu deveria parar de usar filmes e músicas parâmetro para entender e pensar a vida. A verdade é que, na realidade, tudo é muito mais prático - e menos bonito.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Ontem à Noite

Sentei-me na porta da tua casa já de madrugada. Acendi um cigarro e esperei.

Eu quase poderia tocar o tenso silêncio da noite. Vi corujas atravessarem em vôos rasantes a praça. Vi um carro ou outro descer a rua deserta, viaturas da polícia, um som alto tocando numa festa ao longe, o pesado ar de uma noite de (quase) verão. Mesmo assim, senti frio. Um frio que cortava os olhos e rasgava os lábios. Um frio tão agudo que acreditei que poderia perder uma orelha e alguns dedos se continuasse ali por muito tempo. Quis fazer uma fogueira no cenário imutável enquanto a cidade dormia profundamente.

Então eu vi.

Vi o sol nascer e se por várias vezes, o tempo passar. Vi manhãs de Janeiro chegando e o sol forte das primeiras horas do dia tingir de dourado as árvores, as casas, as ruas. Eu te vi acordar e sair cedo. Sozinha.
Você saiu e não me notou na porta da sua casa. Seguiu com passos firmes e determinados e subiu a rua como quem não pode ser detido por nada nesse mundo.

E vi além disso. Vi alguém que poderia entregar tudo aquilo que eu não posso, tudo aquilo que eu não pude. Mais belo que eu, mais forte que eu. Alguém que provavelmente dirige o seu próprio carro e já estaria formando-se então. Alguém que tenha mais dinheiro que eu ou que pelo menos sabe administrá-lo melhor. Alguém que saiba se portar num restaurante esnobe e que não faça as piadas estúpidas que eu insisto em fazer. Vi alguém que não tomava seu tempo e sua vitalidade com as próprias disputas pessoais, mas sim alguém que ajudava você com tudo aquilo que podia. Alguém que não lhe fosse um fardo pesado demais.

Voltei pra madrugada na porta da sua casa quando ouvi o portão se abrir. Não, eu não entrei na sua casa, não apertei a campainha. Senti que não devia como alguém impuro que prefere não macular um templo sagrado com a própria labuta.

Passei a viagem pensando nisso. Passei os últimos 17 dias pensando nisso. Passei o último ano pensando nisso.

Finalmente cheguei em casa pela manhã, mas não consegui sentir-me melhor.

Pois eu vi sua vida sem mim. E era incrível.

domingo, 16 de novembro de 2014

A Tempestade

Em nenhum dos relatos, artigos, livros, contos ou depoimentos sobre suicídio alguém fala sobre o mórbido e peculiar ritual de preparação que ocorre logo antes. Era o que ele pensava enquanto fitava a lâmina de barbear debaixo do chuveiro. A água quente caia sobre as costas e o vapor umedecia os azulejos branco azulados e o espelho do banheiro enquanto ele questionava se deveria estar com pelos na virilha quando encontrassem seu corpo.

Já havia cortado o cabelo há alguns dias, o que considerava importante. Fez questão de escolher a data com cautela: uma tarde de sábado quando seu pai estivesse trabalhando e sua irmã mais nova fora da cidade. Ele não queria que seu pai impedisse, muito menos que sua irmãzinha encontrasse o corpo no pátio do prédio.

Saiu do banho, vestiu-se com o melhor que tinha, como se fosse para um grande festa ou evento importante. E mesmo assim, o melhor que tinha no seu vestuário não chegava a ser formal ou elegante. Apanhou uma lata de Pringles na prateleira do quarto, abriu e retirou um maço de folhas dobradas e enroladas com um elástico de prender cabelos. Eram 6 cartas destinadas a diferentes pessoas. Enfiou todas dentro de um saquinho plástico transparente. Não queria que elas ficassem sujas ou respingadas pela sopa de sangue, miolos, tripas e ossos moídos. Enfiou o saquinho com as cartas no bolso da camisa com certo esforço pois elas mal cabiam dentro e ainda deixaram a camisa pesada. Antes de sair, também apanhou uma lanterna no armário do quarto, um velho presente da mãe para lidar com seu medo do escuro. Por muitos anos, dormiu com ela do lado do travesseiro até que aprendeu a enfrentar seu medo de escuridão.

Deixou o apartamento que cheirava a cigarros baratos e se dirigiu ao corredor que cheirava a água sanitária. Apertou o botão do elevador como de costume, mas até isso foi diferente. Apertou o botão para subir, e não para descer e o pressionou uma vez só e não várias seguidas como normalmente fazia - algo que quase todos nós fazemos. Teve paciência. Sentiu prazer na espera. Observou enquanto os números no visor do elevador indicavam o andar em que se encontrava o elevador, do térreo ao sexto.

A porta se abriu, o elevador estava vazio para seu alívio. Entrou, apertou o número 14, o último andar do edifício. Mais uma vez, pressionou apenas uma vez e ficou atento aos números vermelhos do visor que subiam do seis até o quatorze enquanto o elevador fazia sua subida fúnebre. Pensou em todos os acontecimentos que o levaram até ali. Em todos os motivos que teve para entrar naquele elevador naquela tarde de sábado. De cabelos cortados, bem vestido e perfumado, pronto para um banquete no inferno.

Chegou ao topo e engoliu em seco. Desceu do elevador e passou pela pesada porta corta fogo que levava às escadas. Subiu alguns metros na escuridão. Para cima, não havia luz alguma, era um breu total. Ele sabia disso, por isso fez questão de levar uma lanterna. Acendeu a lanterna antes de encarar o primeiro lance de escadas que, diferente dos andares inferiores, não era feita de granito e as paredes não eram pintadas em tons pastel de qualquer coisa. Ali, a escada era de cimento cru e grotesco assim como as paredes como se fosse parte inacabada da obra. Subiu o primeiro lance sentindo os degraus se esfarelando sob seus pés, não havia corrimão e os degraus eram mais altos do que o de costume. Lembrou-se do medo de escuro que havia superado, por um momento hesitou e deixou-se atormentar pelos terrores noturnos que o ameaçavam no passado. As formas macabras que se formavam no escuro do quarto como manchas de ketchup numa camisa branca que nos lembrava de qualquer coisa. Como figuras de cachorros e girafas que insistimos em enxergar nas nuvens. Tentou ignorar a hesitação, seu coração palpitava, mas teve coragem de prosseguir, de ir até o fim.

Podia ouvir o barulhento poço do elevador que poderia ser acessado por uma porta que ficava logo após o segundo lance de escadas. Quando passou pelo poço, percebeu que o barulho do maquinário era realmente infernal como centenas de motores elétricos em uníssono combinados com milhares de garfos arranhando o fundo de panelas de alumínio.

Quando subiu o terceiro lance e deixou o som ensurdecedor dos elevadores para trás, ouviu outro som que vinha de cima, do último lance. O som de movimentos sorrateiros nas sombras seguidos por agudos grunhidos irreconhecíveis. Parou e ficou aterrizado pelo que imaginou que o aguardasse depois do último lance de escadas: ratos, dezenas deles.

Depois que superou o medo de escuro, os ratos se tornaram seu maior pavor. Na verdade, o segundo maior pavor. O primeiro era - de longe - ser deixado sozinho com um bebê. Preferia ser comido por centenas de roedores demoníacos dos esgotos do inferno do que ter que ficar 5 minutos com o filho pequeno de alguém. Não porque não gostasse de crianças, mas porque não sabia como agir perto delas. Elas o faziam sentir-se vulnerável e desajustado, e esse era o sentimento que ele mais odiava.

Pensou, de novo, no medo do escuro, no som ensurdecedor do elevador e em todos os passos que o levaram até ali: em poucos momentos, estaria morto, estirado no pátio do prédio, os seus restos espalhados numa mistura indigesta de entranhas e ossos quebrados. Não seriam uma meia dúzia de roedores que o atrapalhariam. Mais uma vez, estufou o peito, sentiu seu sangue gelado sendo bombeado cada vez com mais força e avançou ao último lance de degraus. E não foram ratos que o surpreenderam.

Luz. Um feixe de luz vinha do topo das escadas, uma fresta da porta aberta que dava acesso ao terraço. Precipitou-se com cautela alguns degraus acima. Pela primeira vez, pensou em desistir de fato. Até esqueceu a possibilidade dos ratos estarem passando pelos seus pés. Alguém havia descoberto seus planos. Alguém enxergou através das lacunas e o esperava depois daquela porta para tentar convencê-lo a desistir. Por um momento, quis que isso fosse verdade, mas foi tomado pelo pensamento de que, provavelmente, algum dos funcionários do condomínio estivesse no terraço consertando sei-lá-o-quê da TV a cabo. Por fim, pensou que ele mesmo tivesse esquecido a porta aberta quando esteve lá na madrugada anterior.

Acreditou na última hipótese e continuou a subida - que agora já parecia uma escalada de tão exausto que ele estava. Não pela subida. Não, não era um cansaço físico, não eram as pernas que doíam, nem as costas ou as juntas. Era a cabeça que doía, cada vez mais perto do fim, mais cruel parecia o seu destino final. O vento frio passava pela fresta da porta de metal branca e parcialmente enferrujada, judiada pelo tempo e pelas intempéries. Precisou de força para afastar a pesada porta e chegar a um mezanino. A luz invadiu as escadas e afugentou os ratos escada abaixo. O vento frio da tarde de outono cortou-lhe o rosto como uma navalha. Lembrou-se da primeira vez que fez a própria barba e apareceu na aula com o rosto todo cortado. Seu pai não lhe ajudou, teve que aprender sozinho. Lembrou do constrangimento com os risos dos amigos de classe ao verem as pequenas fitas microporosas sobre os cortes no seu rosto. Lembrou que não tinha feito a barba. Era tarde demais e também era irrelevante.

O parapeito tinha um chão de cascalho grosso e dava de frente para a entrada do edifício. Era uma pequena faixa de menos de 2 metros. De lá podia ver boa parte dos projetos: um conjunto habitacional construído no final da década de oitenta, sete torres acinzentadas construídas próximas ao antigo centro da cidade. Ele morava na torre 7, a mais distante delas, aquela com os apartamentos menos conservados e mais baratos. A mais distante com as piores vagas de estacionamento. Podia ver também, ao longe, os bairros vizinhos, o centro velho, os trens do metrô passando lotados de gente apressada e os arranha céus que pareciam cutucar as nuvens naquela tarde nublada de outono. À sua esquerda, havia uma escada vertical de metal enferrujada e há muito sem pintura que levava até o topo do edifício.

Pela primeira vez, sentiu medo: durante o dia, a torre parecia muito mais alta. Mas enquanto subia a escada, sentiu uma certa paz de espírito. O vento forte e gelado batendo contra seu corpo, lá embaixo, podia ver pessoas e carros e motocicletas indo e vindo, crianças brincando nos parquinhos, senhoras fofocando nos bancos, gente de todo tipo. E todos muito, muito pequenos. De lá, mais pareciam formigas. Ele sentiu-se no topo do mundo.

Chegou no final da escada para o terraço do edifício. O chão úmido de cimento tão grotesco quanto o das escadas do poço do elevador. De lá, podia-se ver ainda mais da cidade. Deslumbrou-se com os horizontes cinzentos e pode ver tudo o que a luz do sol entre nuvens podia tocar. A cidade era uma mancha cinza que se estendia além de tudo o que ele conseguia enxergar em qualquer uma das direções. Viu o rio e a reserva florestal, a grande Igreja de São Pedro, pontes e viadutos, mais trens do metrô e edifícios tão altos que pareciam abrir caminho entre os céus cinzentos. Havia um para-raio com uma luz vermelha que piscava intermitentemente no terraço. E viu também, uma garota no terraço sentada, de costas para ele.

Ela se virou para ele naquele momento. Ele deu um passo para trás e quase caiu. Ficou totalmente sem reação. Parecia ser fuzilado pelo olhar da garota. Ela tinha os cabelos castanhos mais claros que os dele. O rosto pálido. O modo que ela se vestia remetia a uma outra época, como se ela tivesse saído de uma máquina do tempo e aterrizado ali, no terraço do seu prédio. Ele pode ver relâmpagos nos olhos acinzentados por trás dos óculos de armação grande da moça que não era muito mais velha que ele.

- O que faz aqui? - Ela não parecia surpresa ou assustada com sua presença, mas sim, irritada.

- Eu? Eu... o que você faz aqui? - Na hora, percebeu que foi uma resposta bem estúpida.

Ela moveu o corpo na direção dele, revelando que, no colo, pairava um caderno. Ele se aproximou e pode ver que ela desenhava a vista da cidade. A reserva, a igreja, o rio, os arranha céus, o metrô. Mas era diferente. Ele não saberia explicar. Era como se tudo fosse desolado e sem fundo. Um emaranhado e frio caos urbano cravado em grafite cinza na página branca do caderno.

- Nossa! Você é realmente muito boa.

- É o que as pessoas dizem, mas não posso concordar. - ela sorriu, meio que por sarcasmo, mas ele se sentiu melhor.

- Então, eu venho aqui para desenhar, venho por um pouco de paz. É o único lugar onde eu consigo ter um pouco de calma. O que te traz aqui?

A tranquilidade dele se foi por completo. Travou, não soube o que responder.

- Você veio para pular daqui não é? - Ela disse como se zombasse de suas intenções.

- Não, eu... só queria ver como tudo era daqui de cima.

Foi uma desculpa idiota, percebeu logo de cara. Mas ela pareceu ter engolido. Percebeu que havia certa ingenuidade na moça. Uma quase pureza rara de se encontrar nesses dias.

- Então trate de não perder nenhum detalhe.

Ela apontou como se quisesse que ele se sentasse junto a ela. Ele engoliu em seco quando percebeu que ela sentava-se bem na beirada do edifício, com as pernas penduradas. Teve uma vertigem filha da puta quando se aproximou da beirada e viu o tamanho da queda. Sentiu-se mal quando percebeu que jamais teria coragem de encarar a morte nos olhos atirando-se de cima daquele edifício. Sentou-se relutante, falhou ao tentar fingir que não estava assustado.

- Você parece bem perturbado.

- Eu tenho medo de alltura.

- Sim, eu percebi. Mas já parecia atormentado desde quando entrou no elevador.

A coluna dele congelou. Na verdade, sentiu gelar-se todo da nuca até os pelos da bunda.

- Você estava me seguindo?

- Não, você estava? - De novo aquele sorriso zombeteiro. Ele pensou numa resposta, pensou em levantar e sair dali. Pensou até mesmo em se atirar, bem do lado da garota. Pensou que havia algo nela que o fazia querer ficar. Sentiu sua mente voltar por as coisas no lugar: quem era ela? O que fazia ali de fato? Por quê nunca a viu antes? O que ela quis dizer com ele estar atormentado desde o elevador? Eram perguntas demais e antes de qualquer resposta, já havia mais o que confundi-lo.

Uma coruja pousou bem ao lado da garota. Com as penas acinzentadas como os olhos da garota e olhos de um profundo amarelo que pareciam sugar a sua alma. Mais uma vez, ela não parecia assustada. Era como se ela fosse inabalável, estoica. Nada poderia jamais tirar aquele ar de superioridade de seu rosto, nem mesmo o fim do mundo poderia tirar aquele perfeito sorriso zombeteiro de sua cara. Ele a conhecera agora e já a amava mais do que tudo e a odiava ainda mais.

Ela estendeu a mão e pareceu acariciar a coruja que abaixou a cabeça como se prestasse reverência à garota. Só então ele entendeu o quão surreal havia se tornado o cenário.

- Esse é Cognito.

Ela dizia sem nem ao menos olhar para ele. Continuava a acariciar a coruja vassala A garota tinha uma coruja de estimação. Ele teve de novo aquela sensação que tinha com os bebês, a vulnerabilidade. Não soube exatamente porquê, mas retirou do bolso as cartas amassadas enfiadas dentro do saco plástico e fitou-as por um momento. Pela primeira vez, refletiu que não queria que sua vida acabasse daquela maneira. Havia desistido do suicídio por causa de uma garota com uma coruja e alguns desenhos. Percebeu o quão vulneráveis eram suas convicções, o quão fraco era seu espírito. Sentiu seu coração palpitar de novo, suas pernas formigaram. A altura o assustava, queria sair dali.

- Há tanta raiva em você, tanto rancor. O que é que odeia tanto, afinal?

- Eu não sei - ele estava completamente aberto agora, não viu motivos para esconder qualquer coisa - eu nem sei ao certo o que me entristece.

- Você não está aqui por acaso.

Foi quando ele percebeu: não havia mais ninguém lá embaixo. Nem as crianças brincando, nem os carros, nem os trens do metrô. Nem os pássaros voando no final da tarde. Ninguém, a cidade padecia em silêncio. Por um momento, sentiu que eram só eles três no mundo: ele, a garota e a coruja. E agora entendia que era exatamente como no desenho dela, o cenário desolador da decadência urbana, como se a cidade fosse um reino fantasma em lugar nenhum. Ele podia ver água abaixo deles, como se todas as ruas e casas tivessem sindo inundadas por um mar negro. Abaixo dele, o pátio do prédio agora era tomado por águas que se quebravam contra o edifício no segundo andar.

- Trate de não perder nenhum detalhe.

- Eu não entendo... - ele estava realmente assustado. Sentiu-se como se fosse engolido pelo oceano cinza da cidade. A coruja bateu asas e voou para longe. O vento soprava ainda mais forte e mais frio.

- Você deve voltar. E buscar suas próprias respostas. Agora você sabe que esse é o destino que queria tomar. E também sabe que não é mais esse o lugar para onde quer ir. Mas não pode mais ficar aqui. Não é esse o seu lugar.

Ele não queria ir, mas nada disse. Soube que nada adiantaria. Ela pediu que se sentasse com ela na beirada do edifício onde mostrou seu desenho da cidade e sua coruja de estimação, mas agora queria que ele fosse embora e voltasse para a mesma vida da qual ele queria uma saída de emergência que não tinha coragem de tomar. Teria que enfrentar a nado os mares negros que o aguardavam lá embaixo.

- Tem uma tempestade vindo. - ela disse e, pela primeira vez, mostrou alguma preocupação.

Ele olhou ao longe e pode ver um paredão de nuvens em centenas de tons de cinza. Do mais escuro até o mais claro passando até por alguns tons de castanho quando os relâmpagos iluminavam a tormenta. Ele viu a luz dos relâmpagos refletida nos olhos dela.

- Nós temos que ir.

Ele concordou com a cabeça e se dirigiu a escada. Desistiu de tentar entender qualquer coisa que estava acontecendo, quis acreditar que estava sonhando. Desceu as escadas de metal em direção ao parapeito e a porta de metal enferrujada. Desceu sem se preocupar com a altura da queda. O vento soprando cada vez mais forte.

Quando seus pés tocaram o cascalho, ele olhou pra cima e a viu lá, na beirada da escada de metal. O vento desgrenhava seus cabelos. Lá de cima, ela parecia ainda mais superior, o inatingível, o inabalável. Estoica como ele pensou. Ela gritou:

- Alguém precisava te encontrar. Agora aí está você.

- Mas eu não sei para onde ir - ele gritou de volta, quase em desespero.

- Então todos os caminhos são uma possibilidade. E não vai precisar de um bússola. - Pela última vez, ele viu aquele sorriso que zombava dele

Atravessou a porta de metal e esperou seus olhos se acostumarem com a escuridão. O que não aconteceu. O escuro o tragou e ele se sentiu levitar sobre as escadas e desaparecer como os sonhos deixados a mercê da maturidade. Foi sendo apagado como as últimas luzes nas janelas da cidade tarde da noite. Mergulhou no mais repleto silêncio e no fundo de toda solidão.

Acordou no leito de um hospital. Sua cabeça doía. Analisou as paredes brancas da enfermaria e o senhorzinho na cama ao lado roncando alto e se sentiu aliviado por estar com a virilha raspada.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Otimismo

Escrever, guardar, apagar.

Publicar, mudar de ideia e voltar atrás. Ninguém quer saber.
Tudo vai ficar bem, eu sei.

Uma hora dessas o ano acaba.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

White Curtains

"Torn between being a child my whole life or the man you need."



Trophy Eyes - "White Curtains" (Mend, Move On - 2014)