terça-feira, 29 de julho de 2014

Pra sempre cinza

Tudo que eu tocar há de se desfazer. Vai ver é uma maldição de família. Uma doença hereditária, um quadro clínico onde o enfermo destrói tudo o que toca, endurece pessoas que ama, acaba com projetos que participa, arruina com os planos traçados, amaldiçoa o solo onde pisa e suga todo e qualquer fio de esperança que possa restar no coração de qualquer um que tenha tido a infelicidade de conhecê-lo.

Como um toque de midas ás avessas, ao invés de ouro, minha recompensa são as cinzas daquilo que eu toco. Fragmentos da memória em fotografias amareladas pelo tempo queimando na fogueira da solidão.

E que solidão. Uma névoa espessa que cega e impede que todos me vejam. Que todos sejam vistos. Eu sou invisível a maior parte do tempo. E essa nuvem que paira sob a terra e alcança muito alem do horizonte e os longínquos campos de centeio onde faço a minha vigia só pode ser enxergada por mim.

Há uma parede de fumaça me separando do resto do mundo e tudo o que eu mais queria era conseguir ver a luz do sol. Nem que seja apenas uma cortina de luz cortando um pedaço dessa névoa. Apenas para que eu possa ver o quão melhor eu posso ser. Mas, por enquanto, é tudo cinza. Pra sempre cinza.

E hoje só consigo enxergar o quanto  minhas ações , meus medos e minha impotência tem tragado os que se aproximam de mim para dentro dessa névoa maldita. Todos estavam bem antes disso. Nunca os vi chorar, nunca tiveram motivos. Vejo todos voces desapontados e isso tem me matado a cada dia.

E a cada dia reafirmo a quase certeza de que o melhor é desistir. E a cada dia reafirmo a quase covardia que mora dentro de mim. O quase egoísmo que me impede de fazer o que é melhor para todos, o que é melhor para mim.

A única coisa que eu sempre quis foi ser bom o bastante. E se eu estiver errado? Haveria um deus pra me agarrar depois do salto? Um herói pra impedir a queda? Ou só poderiam coletar os meus pedaços pelo chão?

Que diferença eu faria, afinal?

Cansei de ser a vítima. Tudo o que eu menos preciso é de mais gente pra sentir pena de mim e me dizer o que fazer. Ás vezes é necessário sair esmurrando o vento pra achar algo que deva ser socado.

Se a vida há de ser dura, deve ser ainda mais áspero. E se sente-se a cada dia mais sozinho, queira estar ainda mais solitário. E se te oferecem um mundo sempre cinza pra viver, só resta pintá-lo de vermelho. Nem que seja a tinta o seu próprio sangue. A água, suas próprias lágrimas e o seu suor.

Prive deles o direito de tirar qualquer coisa que você queira, qualquer um que voce ame. Basta nunca querer nada e nunca amar ninguém.

E um dia ver essa parede cair e entender: nunca quis ser como vocês, apenas quis a opção de escolher: ter ou não ter. Eis a questão.

Ter é ser.  Ser é crer. Crer é querer e comprar. Basta acreditar num deus maior. Elaborado e produzido, programado e corrompido de plástico com números e letras gravados com um poder ilimitado de te dar tudo que precise pra preencher o vazio de ser.

Viva esse mundo cinza que ensina e determina o que você deve ser. E a recompensa pretendida, o placebo de uma vida pra te entorpecer.

Nunca mais cinza.

Basta saltar.

domingo, 13 de julho de 2014

Cidades de Potemkin

Ainda não passavam das oito da manhã quando eu tomava um expresso curto no balcão de um cafe tradicional no centro da cidade. Desses repletos de esnobes, viadinhos elegantes e pseudo intelectuais. Sentado, assistia atônito à tempestade de elétrons da televisão que invadia meu sistema nervoso através dos meus olhos. O noticiário da manhã contabilizava os mortos nos conflitos da região da Crimeia onde separatistas querem anexar a região à Rússia e abandonar o resto da Ucrânia. As opiniões se dividem. Eu nunca fiz questão de ter uma.

- É um lugar interessante, tem uma história muito boa sobre a Crimeia. - O velho disse ao se sentar, estava bastante atrasado, eu quase havia desistido de esperar. Ele colocou o chapéu sobre o balcão, soltou um sorriso amarelado e seus olhos ainda fuzilavam a atendente através das lentes do óculos enquanto ele pedia um café através de gestos e prosseguia:

- Quer escutar?

- E eu tenho opção? - Ele notou minha irritação. Compreensível: um atraso não era algo aceitável vindo de um homem que se dizia senhor do tempo, capaz de navegar entre o presente, o passado e o futuro como quem entra num elevador.

- Bem, foi no século XVIII. Gregory Potemkin era governador da região da Crimeia quando a imperatriz Catarina II resolveu visitar a região com alguns aristocratas. Porém a Crimeia há pouco havia sido conquistada numa guerra contra os Otomanos e o lugar estava deveras fodido.

O café chegou, ele sentiu o aroma de olhos fechados, sorriu de novo, tomou um gole e continuou:

- Gregory então teve uma ideia mirabolante para impressionar os visitantes: construiu um vilarejo de mentira na beira de um rio por onde a comitiva haveria de passar. Era apenas uma frente de casas falsas com alguns de seus homens figurando como moradores. Durante à noite. Desmontavam o vilarejo de mentira e o carregavam para outro ponto às margens do rio, mais à frente do percurso da comitiva real. Assim, com meia dúzia de homens e algumas casas falsas de madeira, Potemkin fez com que os monarcas acreditassem que haviam várias cidades e vilas às margens do rio, dando uma falsa impressão de progresso. Genial não?

- Sim. Mas pensei que essa história fosse apenas um mito, uma lenda.

- De fato, pode ser. Mas o importante não é a veracidade, mas sim a mensagem que ela tenta nos passar. Todos os dias lidamos com coisas parecidas. As cidadelas de Potemkin foram um reflexo curioso do comportamento humano. Olhe em volta, vemos isso todos os dias: fachadas que existem apenas para impressionar. Não só na cidade tentando realocar os sem teto ou pintando prédios abandonados para que não fiquem tão feios na paisagem. Não só nos comerciais da TV nem nas malditas redes sociais, está à sua volta agora. Veja todas as pessoas nesse Café. TODAS elas, nesse momento, estão te passando uma imagem da maneira que elas desejam que você as veja. Todos nós mostramos apenas uma faceta limitada daquilo que somos de fato. Mostramos só o que nos interessa que as pessoas conheçam.

- Ora, pensando dessa maneira...

- E sabe por quê as pessoas fazem isso amigo? Porque, lá no fundo, elas são infelizes e estão constantemente insatisfeitas. Elas podem sorrir, contar piadas, fazer uma plástica, falar de suas viagens, se gabar de quantas mulheres comeram, se orgulhar dos seus diplomas, de suas famílias e suas posses. Mas no fundo, todos são atormentados pelo maldito vazio que é a existência. Veja todas essas pessoas meu amigo. Nenhuma delas é mais cheia do que um dos vilarejos de Potemkin. A vida que nós mostramos é a nossa fachada, nossa mentira convincente. Mas no final, não tem cidade alguma.

- Tudo bem senhor, mas onde quer chegar com tudo isso? Eu não estou entendendo.

- Então comece a entender. Eu não me atrasei, cheguei na hora mais interessante para te contar essa história. As nossas vidas são fodidas e vazias. Tomadas pelo desespero do despropósito. Mas isso tem um motivo: nós, como seres humanos, temos essa vontade filha da puta de ter controle sobre tudo o tempo todo, mas o que eu aprendi nessa vida foi que não controlamos quase nada do que acontece com a gente. E merda acontece, coisas dão errado. E não há nada que possamos fazer para mudar, o passado é passado. Só podemos lamentar e fingir que nada daquilo importa.

- E importa?


- É claro que importa! Se Gregory Potemkin soubesse da visita e tivesse mais tempo, planejamento e recursos, não precisaria de vilarejos falsos para impressionar a Imperatriz. Construiria cidades de verdade. E não uma rasa mentira como quase tudo nessa vida. E todos nós somos "cidadãos de Potemkin" reproduzindo tudo aquilo que queremos que acreditem que somos e não sendo absolutamente nada disso.



- Então tudo isso é sobre planejamento? Sobre tomar decisões certas?

- Não meu caro, é sobre errar. Errar e poder voltar e começar de novo, tomar o controle do tempo e, consequentemente, do próprio destino. As casas de mentira e os moradores figurantes você já tem, então vamos voltar e construir uma cidade de verdade.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Cento e Oitenta e Dois Dias de Verão

Eu poderia escrever duas mil páginas para falar sobre isso. Poderia publicar uma antologia sobre todos esses dias. Sobre esses últimos seis meses. Sobre como foi complicado no começo, sobre como tem sido leve desde então.

E colocar no papel com palavras em tinta nesse caos que é o meu vocabulário como uma tempestade de orações atiradas ao mar, carregadas pelo vento. Só pra contar como foi difícil não te querer desde o princípio dos princípios.

E sobre a luta para não trair os próprios princípios naquele começo.

Ou sobre como eu tagarelava e andava de um lado pro outro bebendo cerveja e fumando um cigarro atrás do outro tentando explicar o que eu pensava sem conseguir me sentar de tão exaltado. Sobre como eu me sentia devorado pelos seus olhos desde então, seduzido pelas suas palavras numa noite de Janeiro.

E se é sexta feira, é melhor desligar a televisão se a companhia é a melhor programação.

Seja o toque, seja o cheiro ou a luz dourada que atravessava a janela do quarto enquanto eu acordava com você olhando fundo nos meus olhos, como se pudesse me despir e me desorganizar de dentro pra fora. E caminhar numa manhã quente de verão por alguns quilômetros e não conseguir parar de sorrir e olhar pra trás voltando pra casa.

Quando me vi substituindo longas caminhadas cabisbaixo, sozinho, debaixo do sereno sentindo o cheiro de sangue e alcatrão pela troca de sorrisos e olhares tomando sorvete numa noite quente. Troquei meu muro das lamentações por uma sagrada oração de três palavras que jurei nunca mais ousar dizer em voz alta.

Sobre como você vai ter alguém que vai te amar como você merece um dia. Mas hoje à noite eu sou tudo o que você tem. E sei que minha voz não é grande coisa, mas também sei que vai ficar pra me ver cantar de olhos fechados na ponta dos pés.

Poderia escrever sobre levar macacos para ver outros macacos no zoológico. Sobre as noites acordados discutindo política e religião como se pudéssemos salvar o mundo. Ou sobre como minhas mãos voltaram a tremer quando eu penso num futuro que nunca vai chegar. Sobre como tem dias que é difícil amar você.

Sobre como não é mais difícil dizer essa palavra de quatro letras.

Poderia escrever tantas coisas, tantas histórias. Seria tudo em vão. Jamais conseguiria captar com perfeição o tamanho do significado que tudo isso tem pra mim. Jamais conseguiria um daguerreótipo capaz de registrar a presença do amor. E mesmo assim, sei que ele existe. É a fé que eu pensei ter perdido.

Não há muito o que escrever para descrever esses cento e oitenta e dois dias de verão que começaram naquele Janeiro - onde era verão de fato. Existem coisas que são indescritíveis. Mas espero que não se importe já que eu tentei colocar isso em palavras.

E sei que vai reconhecer cada referência e cada pedacinho nosso nesse emaranhado de palavras que eu insisti em criar. Então chega perto, venha aqui. Quero te contar um segredo.

Mas acho que você já sabe não?

Eu te amo.

Só um pouquinho.