quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sirenes

Me disseram que quando os alemães se renderam a sirene da Companhia Antárctica tocou por horas seguidas e essa cidade inteira - o mundo inteiro na verdade - celebrou ensandecidamente. Como uma final de Copa do Mundo ou uma festa de seis anos novos seguidos com a única diferença: ninguém enalteceu o autor dos gols ou fez promessas que não cumpriria depois de muito bêbado. Contaram os corpos de sessenta milhões de pessoas e o incalculável estrago material de quase seis anos de guerra. Houve quem nunca mais voltasse pra casa. Houve quem perdeu a família inteira.

Eu faço parte de uma geração que fracassou em praticamente todos os sentidos, jamais conseguirei entender como as pessoas passaram por aquilo. Hoje nós não chegamos à idade adulta sem meia dúzia de anti-depressivos, sem uma ou outra tentativa de suicídio, sem sermos diagnosticados com distúrbios que nem sabíamos existir até certo tempo atrás. Somos o feto abortado pela TV por assinatura porque o sabonete anti-bacteriano não quis assumir a responsabilidade. Não conseguimos olhar o mundo à nossa volta e nos divertir porque estamos ocupados demais de cabeça baixa olhando nossos smartphones tentando convencer pessoas tão miseráveis quanto nós mesmos que vivemos a vida que sonhamos viver.

Eu seria modelo perfeito para ilustrar a decadência dessa juventude. O atrapalhado quase herói tragicômico do programa popular da televisão. O Dom Quixote que vive o drama de não lembrar a senha do Wifi ou de não ter tantos seguidores no Instagram quanto gostaria. A epopeia trágica do consumidor inconformado quando o atendente do McDonald's esqueceu de esclarecer no pedido que o Big Mac era realmente sem pickles. O drama do nerd punheteiro tarado na garota mais bonita do colégio, mas que não tem auto-estima o bastante para sequer conversar com ela e que usa seu próprio fracasso para construir um discurso misógino que nem ele compreende. A incrível geração de gênios que não fazem nada de genial, que pouco ou nada contribuem com o mundo em que vivem mesmo tendo nascido na época mais próspera, pacífica e livre da história. O frustrado e egocêntrico blogueiro que pensa ser escritor só porque digita um monte de lixo sobre ele mesmo e que finge não se importar por não ter sequer dez leitores.

 Foda-se isso, eu desisto. Eu não quero fazer parte disso. Eu não quero participar.

Isso não é bem uma carta de despedida, mas sim os termos da rendição. Porque eu cansei de tentar nadar contra a corrente, cansei de tentar ser mais do que isso, cansei de tentar impressionar. Não tenho mais recursos nem palavras. Nem coelhos para tirar da cartola, nem ases para sacar da manga do paletó. Não tenho mais paciência para lidar com a hipocrisia de vocês, não tenho mais equilíbrio para ouvir tantas mentiras agradáveis. Eu não posso mais me apegar a elas. Antes, era mais fácil ser forte, agora tudo parece longe e fora do meu alcance. Não adianta tentar reconstruir minha fortaleza, levantar meus muros, começar de novo. Hoje, minha defesa é uma cartela de Valium e meia dúzia de latas e cerveja. Um punhado de livros que amo sem ter lido, uma porrada de gente que carrego sem ter amado, um rancor maior que minha própria força de vontade, uma indiferença cada vez mais latente e a esperança do mundo ser um lugar melhor quando eu acordar daqui uns cinco dias.

Isso não é um adeus, é um até logo. Até o dia em que possamos nos ouvir e nos entender. Até o dia em que possamos ser melhores. Pois passei sei lá quantos anos achando que eu e minha vidinha éramos uma merda, mas percebi que não sou o único. Isso é uma doença social e quase todos nós estamos enfermos. Ébrios. Sujos. Estúpidos. Maldosos. Imperfeitos. Adoráveis. Humanos.

Ouço as sirenes soando, elas vieram me levar pra casa.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

So(m)bras de Outubro

É Outubro de novo. E eu estou escrevendo outra carta que você nunca vai ler esperando que seja a última, mas sabendo que não deve ser. Mas tudo bem. Essa será a mais vazia de todas elas pois já não sei mais o que dizer. Já me faltam palavras, já me faltam maneiras de descrever o que tem se passado desde que você saiu da minha vida.

Eu sempre achei que esse sentimento fosse passar, sempre achei que com o tempo eu fosse esquecer, deixar de pensar isso. No primeiro ano, choraria como se estivesse revivendo aquilo tudo de novo. No segundo, repetiria numa intensidade menor. No terceiro, relembraria sem lágrimas e sem dor, apenas saudade. Acreditava que no quarto já deixaria a data passar batida, que eu nem lembraria. Eu jamais imaginaria que no oitavo ano eu ainda me sentiria tão mal quanto me sinto agora, aqui, escrevendo essas palavras. E posso te dizer que curiosamente, não é tristeza o que eu sinto.

É complicado. É uma mistura de angústia, raiva e saudade. Você me faz muita falta, mas sobretudo, a pessoa que eu era me faz muita falta. Por mais que eu deteste quem eu fui, eu era mais feliz sendo aquela pessoa. Eu não pensava demais, eu tinha cicatrizes a menos e fôlego a mais. Eu sei que saberia quais palavras escolher se estivesse aqui hoje, sei que me impediria de entrar em diversas enrascadas, que me ajudaria a sair de algumas outras e que pelo menos estaria lá para dizer que me avisou na maioria delas.

Será que você sabe o quanto tua sombra tem moldado aquilo que me restou pra ser?

Eu ainda me pego pensando em você. Na verdade, o tempo todo você está comigo mesmo quando não é Outubro. Você está espalhado por todas as coisas que eu escrevo aqui ou nos rodapés de caderno, nos cupons fiscais amassados, nas folhas de guardanapo dos bares, no verso das provas da faculdade. Eu ainda te ouço nas músicas que eu escuto e te enxergo nos filmes que assisto e nos livros que leio.

Te imagino calçando os chinelos pra ir comigo comprar pão na padaria num sábado de manhã. Vejo você no quintal brincando com os cachorros ou no quarto jogando videogame. Te vejo correndo pela rua e abrindo o tampão do dedão do pé jogando futebol no asfalto escaldante. Queria lembrar de mim mesmo dessa maneira, mas só me enxergo quatro dias depois do funeral voltando pra casa sozinho debaixo de chuva e sol fazendo o máximo possível pra não chorar. Hoje eu já não consigo mais. Você acharia irônico sabendo o quão fresco e chorão eu já fui.

É isso que você tirou de mim no dia em que eu te vi naquele caixão. É por isso que tem dias que eu te odeio mais do que te amo. Sua perda me obrigou a ser alguém que eu nunca quis ser e de quem não me orgulho. E o pior de tudo é ter feito uma promessa que eu nunca conseguiria cumprir. Aquela de viver tudo aquilo que você não teve tempo. Eu só consigo pensar na ironia do destino pois eu tenho certeza de que você gostaria de estar aqui agora enquanto eu não gosto. A certeza de que você merecia a vida que hoje eu desdenho. Você não tinha o direito de tomar meu lugar naquele caixão bem como eu não tinha o direito de ficar com o teu aqui em vida.

Eu me odeio pelo fato de saber que você é quem deveria estar aqui vivendo a vida que eu muitas vezes não quero viver. Porque sei que não voltaria frustrado para casa por ter chegado inteiro quando desejou profundamente que um motorista bêbado te acertasse na calçada ou que um assaltante com o dedo nervoso no gatilho trombasse com você pela rua. Eu sei que você não pensava nesse tipo de coisa. Você era um rapaz normal, saudável, alegre.

E ultimamente, tenho pensado muito numa saída de emergência, mas só como uma ideia distante, só quando eu não suportar mais respirar a fumaça desse incêndio no teatro chamado vida. Mas a ideia de que eu jamais te encontraria se eu fizesse é atormentadora. Pois se existe um céu, eu sei que você está lá, mas não tenho certeza se é pra lá que eu vou quando minha hora chegar. Mas também não me vejo no inferno. Mesmo depois da vida, não pareço me encaixar em lugar algum.

Naquele Outubro, você foi embora e me tirou o direito de viver uma vida vazia, sem significado ou propósito. Você tirou de mim o direito de não ter ambição alguma, de não amar o fato de acordar respirando todos os dias. Você me deu esse sentimento de culpa por não ser o melhor que eu poderia ser, por não ter todas as coisas que poderia ter e de não alcançar a plenitude que eu sei que você alcançaria em meu lugar. Mas hoje, oito anos depois eu te exonero da posição de guia, da função de me orientar, da responsabilidade de ser o modelo do que eu quero seguir. Te tiro o fardo de ter que saber que eu fracassei porque você não estava mais lá. Nunca foi sua culpa. A culpa foi toda minha, o tempo todo. É hora de seguir em frente.

Eu vou te esquecer.

Eu te amo, mas eu preciso. É a única maneira da minha vida continuar. E ela vai continuar de um jeitou ou de outro.