domingo, 13 de março de 2016

Continuum

Esse é um texto sobre tudo.

Uma carta-bomba, um visceral manifesto passivo-agressivo lido por uma puta bêbada largada bebendo água da sarjeta. Um hino mudo e carismático, a falsa oração de um cético que esconde a sua falta de fé. Um livro de rascunhos e anotações sobre quem fode quem e todas as amizades que a gente precisa romper pelo caminho para atender a irracional vaidade de nosso código de conduta.

A fúria predatória dos olhos que anseiam em me devorar. É o medo constante de se ter algo a perder. Ou não saber o que fazer ao ganhar.

Vítima e assassino numa macabra dança sem pares. O palpitar do coração ao descer até a cova dos Leões. As quarenta e oito horas antes da queixa do desaparecimento de um membro da família. O espaço-tempo entre o tropeço e o encontro com o pavimento como um reencontro entre velhos amigos. A soma da ira de todos os desajustados e incrédulos como cães de caça levando orgulhosos os seus próprios rabos amputados como agrado aos seus senhores.

A percepção de que a vida nos assombra mais do que a morte e a dúvida nos tortura mais que a dor. Todas as palavras que nos destroem ao serem engolidas por temermos os monstros que elas podem despertar se bailarem soltas ao vento. O exílio no Bosque, as flautas sopradas pelo vento e o peso do aço sobre o qual somos fundados.

As manchas de sangue no tapete, o desconforto das camas de hospital, os gracejos que se confundem com o fio das navalhas. A peregrinação interminável por esse deserto chamado vida. As vezes em que mutilamos nossa carne e nossas almas na tentativa de ser qualquer coisa exceto nós mesmos. Tudo aquilo que perdemos pelo caminho. A ilusão do controle.

É contar o tempo na tentativa patética humana de mensurar os acontecimentos. Pois não existe nada como o nada, todo zero é um conceito abstrato que nem mesmo no nosso imaginário pode existir. Talvez o espaço vazio seja a única coisa que não exista, portanto é uma ilusão gigante sentir-me assim. Nossos ossos fracos revestidos de nossa coragem escassa prontos para se partirem com o vento.

Todos os acontecimentos, tudo que existe, já existiu ou vai existir. O que consta ou não no nosso dicionário de sofrimentos obscuros. As coisas que não importam mais, as coisas que fingimos importar. O amor. O sexo. A arte. A morte.

O caos.

Tudo é simultâneo. Tudo se resume em um único lugar: agora.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Lar

Eu me lembro do meu quarto, o último que tive e foi definitivamente meu para toda e qualquer possível interpretação. Ficava na última casa em que pude chamar literalmente de minha quando eu ainda tinha dezessete anos. No último momento em que pude chamar um lugar de lar sem qualquer sinal de hesitação. Foi meu santuário resumido a minha cama, meu computador, meu violão e meus poucos livros que eram tudo o que eu precisava para existir então. Onde eu passei quase todo o tempo que tive livre lendo, ouvindo música, assistindo pornografia e mantendo mínima interação com outras pessoas. Da mesma maneira que faço até hoje sendo que foi lá, inclusive, que tive a ideia e motivação de criar esse espaço onde eu posso destilar todas as minhas mais íntimas confissões. Aquele quarto foi minha cápsula do tempo que me levou até o futuro onde não mais poderia estar num único lugar embora, muitas vezes, eu quisesse. E isso tudo foi antes de eu dormir em sofás atraído pelo astro maior que era a televisão viajando através do tempo e do espaço sem jamais sair do lugar até o fim da existência.

Gabriel García Marquez em seu fantástico "Cem Anos de Solidão" diz que nenhum lugar pode ser chamado de seu até que se enterre um morto nele. O poeta americano Robert Frost diria que lar é onde, não importa quando ou como você chegue, será aceitado. Já Henry David Thoreau em seus diários comparava o homem dito civilizado com o nativo da terra sendo, o último, livre dentro de seu espaço, e o segundo prisioneiro de seu próprio lar. Acima de tudo, casas são prisões. Lugares que, de forma ou outra, nos restringem a liberdade através dos laços que nós mesmos criamos sem perceber seja através dos entes queridos enterrados ou pelos entes vivos que vão nos aceitar. E se esse lar é agradável ou não, não existe uma grande diferença, ele ainda funciona como uma prisão. Se cumpríssemos pena por um crime dentro da mais luxuosa mansão, ainda estaríamos presos, certo? Uma necessária prisão diante do medo de tudo o que há lá fora, da dureza do pavimento, do frio da chuva, da nossa insignificância em meio as luzes brilhantes e indiferentes das cidades com seus imponentes prédios e a frieza de todas as vidas que se cruzam com a sua todos os dias sem nunca de fato fazer uma diferença.

Talvez, por não ter um lar no sentido mais puro da palavra sem a sombra das ambiguidades que ela pode carregar, eu aprendi a enxergar o meu lugar em constante movimento. Pois talvez lar não seja um lugar, mas sim um momento, um sentimento, um recorte de nossa experiência em vida. Sua casa vazia, sem ninguém, nenhuma mobília, nada exceto aquilo que faz parte da construção, ainda é seu lar? Um amontoado oco de pedra, madeira e metal não é um lar assim como um cadáver não é uma pessoa. O residente é a alma do lar. Você sem a sua casa ainda é você. Sua casa sem você é só... uma casa. Talvez seja esse papel de protagonismo paradoxal à nossa insignificância no mundo que nos cerca que torne o conceito de lar tão confortante. Então eu comecei a enxergar minha casa em outros lugares: na saliva nos selos de cartão postal, nos cochilos do banco de trás durante uma longa viagem no meio da noite, nas catarses provocadas pelo álcool, no crepúsculo ou alvorada no horizonte, nas caminhadas longa sob a chuva, nas palavras amigas nos momentos difíceis, os cantos do passado para onde fugimos quando nada mais parece fazer sentido. Qualquer situação, momento ou lugar onde a minha insignificância diante da imensidão de tudo aquilo que existe, já existiu ou vai existir foi rebatida pela singularidade de ser quem sou e o quão único é o impacto da minha própria existência na vida de todo mundo a minha volta.

Isso é o que chamamos de legado. Aquilo que fica no mundo mesmo depois de partirmos para outra existência (ou existência nenhuma). Talvez sejamos tão obcecados com a ideia de possuir um lugar justamente para que ele se perpetue através das gerações posteriores como uma extensão de nossa própria personalidade. No final, todos os homens querem ser imortais, transcendentais, estoicos. Tudo o que queremos é ser o centro do universo, somente conseguimos fazê-lo dentro de um mundo criado por nós mesmos. Mesmo que ele vá da cama até o interruptor de luz. Ser o dono de alguma coisa, a alma de uma entidade, o protagonista das decisões. Tudo isso é reconfortante e funciona mesmo que seu lar não seja um lugar, mas sim um espaço de tempo, uma memória doce, um estado de espírito, um ideal flutuante que nada e ninguém pode tirar de nós.

Ainda, para mim, casa é qualquer espaço ou tempo onde eu possa repousar depois de salvar o dia não me tornando aquilo que me desapontaria aos oito anos de idade. E hoje, esse é um lugar que só existe dentro da minha cabeça.