terça-feira, 25 de agosto de 2015

N.O.D.

Coletei pequenos fragmentos de memórias. Pedaços de lembranças que formam quem eu sou, partes de mim perdidas através do tempo. Pequenos manuscritos e bilhetes que encontro empoeirados pelos cantos prontos para serem re-lidos. Prontos para receber novas roupagens, novas interpretações. De tempos em tempos, são tudo o que tenho e tudo o que sou.

-

Cheguei em casa numa manhã e não consegui abrir a porta da sala. O miolo da fechadura estava arrebentado e o cilindro prendeu a lingueta trancada e eu só percebi depois. Ela acabara e sair do banho, me recebeu com um sorriso terno, mas parecia abatida, triste. Eu demorei a entender, alguns anos para ser preciso. Eles estavam se divorciando na época, mas ainda não se odiavam tanto quanto fariam nos anos seguintes. Eu era uma criança que já duvidava da credibilidade dos sonhos de estabilidade. Era uma manhã quente de Setembro. Eu tinha nove anos de idade e nunca consegui enxergar nada daquilo. 

-

Ela me beijou na porta da igreja. Foi a primeira vez que alguém fez isso. Eu disse que a amava, era uma mentira mesmo que eu ainda não soubesse, mesmo que eu acreditasse naquilo com toda a minha força. Eu nunca beijei a primeira pessoa que amei e descobri que a não é possível se forçar a amar alguém, mas o caminho contrário pode ser traçado mesmo que seja tortuoso Uma semana depois eu me confessei na mesma igreja pela primeira e última vez. Eu disse ao padre que acreditava não ter pecado de suma relevância. Menti mais uma vez, mesmo acreditando que dizia a verdade de novo. A inocência não me permitia ver que eu não era mais inocente. Era uma tarde ensolarada de Abril. Eu tinha doze anos de idade e nunca consegui entender nada daquilo.
-

Eu parei em frente ao seu caixão e fiquei por um tempo olhando seu rosto. Seus olhos e boca colados, seu rosto num tom de amarelo pastel. Eu não acreditava mesmo ouvindo o choro desesperado de sua mãe ecoando por todo o velório. Ele levantaria, era tudo uma enorme brincadeira de mau gosto. Eu o veria de novo na escola no dia seguinte. Nós iríamos juntos para a faculdade e ele batizaria meu primeiro filho. Não havia na minha cabeça a possibilidade de que nada daquilo aconteceria. Eu demorei quase dois dias para assimilar aquela verdade dura. Demorei a voltar para a escola, evitei fazer todo tipo de amigo, nunca mais quis ir para a faculdade e até hoje não me vejo tendo filhos. Era uma noite negra de Outubro. Eu tinha quinze anos de idade e nunca consegui aceitar nada daquilo. 
-

Ele me socou com força e eu não consegui entender porquê. Eu caí no chão e não senti o terceiro golpe nem os que se sucederam. Eu não tive reação alguma. Nem medo, nem dor, nem raiva. Eu não revidei. Quando ele finalmente me deixou, o sangue escorreu pelo meu rosto e desenhou pequenas gotas vermelhas pelo chão e só então eu percebi que havia me machucado. Eu perguntei "por quê?". A raiva no rosto dele se transformou em remorso. Nos dias seguintes, toda vez que me olhava nos olhos com meus curativos espalhados pelo nariz, testa e lábio eu podia ver que doía muito mais nele do que em mim. E eu me senti vivo. Criei o hábito de fazer o mesmo comigo mesmo sempre que não conseguisse sentir mais nada. Era uma tarde cinza de Novembro. Eu tinha dezoito anos de idade e não sabia de onde vinha toda aquela ira. 
-

Eu esqueci minhas chaves e voltei pro apartamento enquanto ela me esperava no elevador. Ele disse "beije-a". Eu disse que ele estava bêbado e não segui seu conselho. Não porque não quisesse. Por um bom tempo foi a coisa que eu mais quis, mas eu não queria enxergar ela daquela maneira depois que as coisas se complicassem. Eu gostava da imagem que tínhamos um do outro na época, eu gostava do que éramos um pro outro e não podia lidar com a ideia de que um dia talvez tivéssemos raiva um do outro e não quiséssemos mais nos encontrar por acaso nas ruas da cidade. Então eu me afastei. Essa foi minha efêmera maneira de amar. Era uma noite fria de Julho. Eu tinha vinte e um anos e não sabia lidar com esse medo. 
-

Eu não queria mais entrar na faculdade. Eu não queria mais fazer amigos. Eu nunca me senti como parte de qualquer coisa, nunca me senti apto a estar perto de qualquer um. Eu sou totalmente inepto para qualquer coisa que qualquer outra pessoa possa fazer e quero constantemente me afastar de todo mundo o tempo todo por isso. Mas descobri que por ser invisível eu consigo atravessar todas essas ruas sem encontrar mal algum mesmo quando estou desejoso por ele. Nada pode ser pior do que não sentir nada e mesmo um céu nebuloso é melhor do que não ver céu algum. E pela primeira vez pensei que isso pode ser uma qualidade ímpar. Era uma madrugada estrelada de Agosto. Eu tinha vinte e três anos e estava meio bêbado voltando para casa e finalmente me senti no controle da minha vida


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Saco de Ossos

Enquanto o vento frio se arrebentava pela janela do carro eu tentava me afogar com goles d'água enormes para tirar da boca o gosto de vômito e cerveja. Traumas da guerra travada num chão de banheiro molhado e sujo vendo meu reflexo na água do vaso e tentando entender como minha vida tinha chegado até ali. Um saco de ossos, ira e ressentimento tentando fazer seu peso sobre a Terra ser sentido, ansioso para entrar numa briga de bar só pra saber se ainda pode sangrar, se ainda pode sentir qualquer coisa que não o pesado desespero da irrelevância. Eu quis me sentir como uma catástrofe ambulante, a mancha de óleo sobre o Pacífico Norte, o trem descarrilhado indo pra lugar algum, a agulha sem ponta nas veias de um puta triste.

Ouvimos a mesma música tantas e tantas vezes que ela ecoou na minha cabeça e se alojou nos meus pensamentos como se não fosse forasteira. Mesmo essa estranha no ninho tinha uma capacidade maior de se adaptar do que seu próprio hospedeiro, inapto por natureza, ranzinza por opção. Sentamos no mato à beira do final da noite e minha cabeça era uma bagunça sem fim. O explosivo som de uma chuva de chumbo sobre um teto de cristal, meus pensamentos me sufocando no meu próprio inferno pessoal de asfalto, aço, vidro e má índole, a cidade disposta à minha frente à meus pés imersa no mais absoluto silêncio de uma noite fria. Mesmo a música eu já mal podia ouvir.

Foi quando o negro do céu cessado apenas pelo brilho branco das estrelas foi tomando tons de azul escuro sólido, cobalto, ciano e turquesa. Até a mais berrante magenta, o mais intenso laranja, o vermelho escarlate, e o alegre amarelo que tomou o horizonte e desenhou a silhueta negra dos arranha-céus, a espinha dorsal de um monstro cinza de concreto. O imenso deserto onde me senti sozinho por todos esses anos, o lugar de onde eu mais quis fugir, o pesadelo onde por mais que eu tente não posso correr.

E então silêncio. Apenas música.

E depois de muito tempo eu me senti capaz de me erguer sem me despedaçar como se os primeiros raios do sol fossem uma espécie de exorcismo, como se a nossa embriaguez fosse uma celebração, uma marca de luta onde vencemos quem nós um dia fomos, quem nós não queremos mais ser. Quis trocar meu par de algemas por um par de sapatos e correr até onde minhas pernas pudessem me levar antes de se partirem. Quis respirar o ar sem fumaça e sorrir diante da infinita possibilidade de dividir os terrores noturnos, as pilhas de planos que não deram certo, os pensamentos que todo mundo parece tentar evitar e compartilhar das mentes e do afago dos atravessadores da noite. As infinitas caminhadas no meio da noite, os infinitos desejos em manhãs de Natal e noites de Ano Novo.

O infinito que fomos nós mesmo que por uma fração de segundo. E eu fui parte disso.

Isso muda tudo mesmo depois de irmos dormir quando todos já acordaram, mesmo depois que a vida continua com sua desgastante monotonia. Mesmo quando seguirmos reféns da nossa rotina e dos demônios que nos aguardam a cada novo dia. Mesmo que eu ainda seja um saco de ossos, ira e ressentimento ainda há espaço para algo a mais, ainda há uma luz acesa em algum lugar esperando para ser encontrada mesmo que eu ainda precise ter algo para odiar. As coisas são como elas são e não há muito que possamos fazer sobre isso, mas nós podemos ser mais do que aquilo que vemos a cada manhã que nos olhamos no reflexo do espelho.

E mesmo que muitos dias não sejam tão bons e momentos como esse sejam cada vez mais raros hoje, o universo que compreende cada indivíduo ainda é algo que ninguém pode negar e, infelizmente, nem todos pode compreender. E se por uma pequena chance eu me permitir escapar, nenhum fantasma poderá me encontrar e me assombrar de novo já que só aceitamos o amor que acreditamos merecer.

E essa possibilidade é algo que ninguém pode tirar de mim.

Por isso, obrigado.