quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Sétima Torre - Fantasmas do Horário Nobre

Antes de tudo, certifique-se de ler os anteriores
PARTE 1 - A Sétima Torre - No Princípio
PARTE 2 - A Sétima Torre - Boa Vizinhança

Meu olfato nunca foi muito sensível e o fumo sempre foi um hábito que me impediu de aproveitar totalmente aromas e sabores, mas o cheiro de todo apartamento naquela noite de Julho era algo que eu notava facilmente mesmo imerso ao intenso pavor de meu mais sinistro devaneio. Um aroma doce enjoativo de perfume barato misturado a mofo e terra molhada. Meu pai havia morrido há quatro anos, mas eu acabava de vê-lo no corredor arrastando um cilindro de oxigênio com um semblante evidentemente abatido. Sua pele pálida tão clara quanto seus poucos cabelos grisalhos bem como as últimas lembranças que eu tinha antes dele partir.

Eu ainda ouvia sua tosse quando interfonei na portaria em busca de ajuda pelo sei-lá-o-quê e descobri que eu morava sozinho no décimo sexto andar e que era impossível eu estar ouvindo qualquer outra coisa que não fosse o barulho de meu próprio lar. Ou havia algo de errado com todo o andar ou eu havia perdido totalmente minha sanidade: não só ouvia a tosse, mas também uma televisão alta demais, conversas e passos nos apartamentos vizinhos. Quando pedi que alguém subisse para verificar o fato, o homem do outro lado da linha hesitou bastante, gaguejou e não escondeu que não tinha vontade alguma de entrar na sétima torre. A princípio eu não entendia direito o motivo daquilo, mas nos dias seguintes a coisa foi ficando clara como a luz do dia. Tive que ser bastante grosseiro para convencer o senhor da portaria a mandar alguém até meu andar.

Foram quase quinze minutos e quase dois cigarros de espera sozinho sentado de costas para a porta trancada e totalmente apavorado. Eu nunca havia me sentido tão sozinho em toda minha vida e nunca quis tanto ter alguém comigo ali naquele momento mesmo que fosse apenas para dividir o meu medo e minha incapacidade de lidar com aquilo que estava acontecendo. Conforme eu fui me acalmando, percebi que o barulho tinha desaparecido e eu estava imerso no mais completo silêncio dentro daquele apartamento. Pus a cabeça no lugar e percebi que era melhor que não houvesse ninguém ali e que eu estivesse sozinho. Que exemplo eu daria para minha mulher e meu filho? Um homem feito, pai de família totalmente apavorado por algo que pensa ter visto ou que acredita que ouviu. Não é esse o papel que esperavam de mim. Logo eu, um cético declarado, alguém que nunca temeu ou mesmo acreditou em tal tipo de coisa. E me lembro que essa foi uma das primeiras conversas que tive com minha esposa logo no dia em que nos conhecemos.

Eu era calouro, ela uma veterana. Eu cursava jornalismo, ela, contabilidade. Não tínhamos nada em comum quando fomos apresentados por um amigo. Na república de sei-lá-quem que havia convidado um amigo que namorava a irmã desse amigo meu que por acaso convidou tanto eu quanto minha futura esposa e claramente nós dois não sabíamos o que estávamos a fazer naquele lugar. Na verdade, a esse ponto eu já sabia: já estava envolvido nos encantos da "catarinense" que acabara de conhecer e estava convencido a fazer o máximo que pudesse para impressionar a mocinha. Como ela não tinha muita escolha e estava numa roubada sem fim, acabou entrando na conversa e passamos o resto da noite juntos conversando já que, aparentemente ela havia visto algo em mim que até hoje eu não consigo entender.

Cerveja após cerveja, eu percebia o quanto aquela garota era interessante: inteligente, bem humorada e extremamente bonita. E já estava a meio caminho de estar bêbado quando ela ainda estava começando a se aquecer e eu já estava bem pra lá do ponto quando ela me disse que não tinha nada de catarinense: era tão paulistana quanto eu e inclusive vivemos e crescemos na mesma vizinhança, mas o destino quis que só nos encontrássemos ali numa universidade de Santa Catarina.

Conversamos sobre coisas bobas e sobre coisas sérias. Rimos e ficamos sem graça quando alguém nos tomou por um casal ao se apresentar. Em pouco tempo, a própria festa ficou sem graça pelo menos para nós e decidimos ir embora. Mas a companhia era tão boa e a coisa andava tão bem que acabamos os dois indo para minha casa. Ela dirigindo meu carro pois embora tivéssemos bebido no mesmo ritmo a mesma quantidade de latas de cerveja, eu estava já bem embriagado e ela ainda estava "tranquila" como gostava de dizer.

Tudo naquela mulher me intimidava: era veterana, bebia bastante, tinha todo um papo cabeça sobre magia e espiritismo e era totalmente decidida com a própria vida e com o próprio dinheiro - ou pelo menos parecia ser. E mesmo sendo uma pessoa incrível, em momento algum ela me soava soberba ou arrogante. Era do tipo de conversa de igual pra igual com qualquer um sabe? Mas nada me deixou mais intimidado do que o momento em que ela me beijou na porta de casa e se convidou para entrar. Era o papo sobre Deus e o diabo, espíritos e vida após a morte que havia sido interrompido. Assombrações e contatos com além túmulo - área em que ela se dizia extremamente sensitiva - levaram-nos a ficar parados no carro na porta do apartamento que eu alugava quando veio o silêncio súbito de alguns segundos e inesperado beijo. Nosso primeiro.

O resto é história: eu não conseguia firmar meus passos ou achar o buraco da chave na porta do apartamento que girava sem parar quando eu entrei e vomitei no chão da sala. Acordei de ressaca com ela do meu lado sorrindo e fazendo piada da minha situação. Não passou-se muito tempo até que começássemos a namorar. Não durou mais que seis meses, as coisas simplesmente não deram certo. Eu não lembro direito o porquê, mas tinha a ver com o fato dela ter deixado a faculdade e resolvido perseguir um sonho antigo de transformar o hobby em profissão e vice-versa. Também por mero acaso, nos encontramos anos depois em São Paulo onde nos re-conhecemos, nos re-descobrimos, nos re-paginamos - e uso da tal licença poética pra usar quaisquer palavras inexistentes para descrever o que aconteceu entre nós. Nos casamos, tivemos um filho...

E então a campainha tocou.

Me assustei, levantei-me sem jeito e olhei pelo olho mágico para encontrar dois funcionários da portaria, um mais novo do que eu com cara de poucos amigos e um velho calvo baixinho e rechonchudo. Abri a porta e eles entraram.

O mais novo foi direto ao assunto e queria saber o que estava acontecendo. Obviamente, não falei do meu pai, não citei que vi um fantasma no corredor, mas falei do barulho constante vindo dos outros apartamentos. O rapaz mais jovem voltou a me dizer que não havia ninguém naquele andar e se dispôs a verificar todos os apartamentos enquanto o mais velho e gordo olhava em volta e parecia incomodado, desconfiado e hesitante.

Com um molho de chaves cintilantes, o mais alto abriu apartamento por apartamento enquanto eu tentava acalmar meus nervos. Todos estavam completamente vazios e empoeirados. Não havia uma alma viva em todo andar além de nós três, eu com meus trinta e tantos anos assustado feito um garoto, o porteiro rechonchudo meio desconfiado e o vigia incrédulo com um ar de apatia. Foi quando percebi que o cheiro já se dissipara.

Eles foram embora e eu fiquei com cara de bobo sozinho no apartamento, inquieto, assutado, meio bobo. Não consegui dormir direito naquela noite e quando minha esposa chegou pela manhã, eu estava sentado na área de lazer fumando e enrolado num cobertor com olheiras enormes e olhos vermelhos.

Não eram nem onze da manhã quando ela chegou e quis entender o que eu estava fazendo lá fora. Eu disse que contaria quando subíssemos. Eu não havia percebido o quanto eu estava assustando ela e meu filho, eu passei a noite inteira lembrando a distante visita à tia Ofélia e sendo aterrorizado pela remota memória da já distante experiência naquele edifício quando eu ainda era apenas uma criança.

Minha esposa era adepta do espiritismo, eu sempre fui cético em relação a tudo o que remetia à espiritualidade, à religião e ao sobrenatural. Nunca pensei que ela pudesse ser tão incrédula com o que estava acontecendo. Quando eu contei o que havia acontecido, ela simplesmente tentou racionalizar, me deu várias possíveis explicações sobre o que estava acontecendo: alucinações, excesso de trabalho, a própria acústica do edifício,

Embora extremamente frustrado com a falta de credibilidade da minha própria fala, logo tive de engolir aquele sapo e me conformar com o fato de que, talvez, eu estivesse mesmo perdendo a cabeça. Mas isso não durou uma semana.

Minha esposa e meu filho estavam em casa quando voltamos a ouvir barulhos por todo andar. Batidas, passos, sons de TV e rádio ligados. A princípio, até eu mesmo permaneci incrédulo acreditando que fosse realmente uma questão de acústica. Talvez algum duto de ventilação deixasse o som escapar de outros andares para o nosso ou os poços dos elevadores fossem os responsáveis por isso. Mas o episódio foi rápido, durou menos do que dez minutos até cessar completamente. Dessa vez eu estive mais calmo, mais tranquilo em relação à primeira. Eu não estava sozinho e sabia que não estava perdendo a sanidade. Estava há tanto tempo afundado escrevendo um livro que nunca ficava pronto e tinha um prazo muito curto para entregar o primeiro quarto da obra ao editor e não estava nem perto de terminar aquilo. Talvez eu realmente estivesse estressado o bastante para imaginar coisas, cheguei a considerar de fato essa possibilidade, mas era outra coisa.

No princípio, ficamos assustados, mas como os episódios tornaram-se recorrentes, jamais nenhum de nós sentiu-se em perigo com o que estava acontecendo. Em determinado momento, passamos a achar aquilo normal, algo corriqueiro. "Oh, sim senhor, eu moro num apartamento mal-assombrado. Nada demais". Quase sempre eram os barulhos, ás vezes, era um frio repentino que tomava conta do apartamento e desaparecia tão rápido quanto chegava. Portas se abriam e se fechavam tal como o registro da torneira da pia do banheiro. Ás vezes a campainha tocava, mas ninguém estava na porta quando atendíamos. Pequenos objetos apareciam em lugares diferentes daqueles em que os deixávamos. Chaves, brinquedos, controles remotos, telefones e até dinheiro desapareciam misteriosamente para serem encontrados em lugares inóspitos como quando um maço de cigarros apareceu dentro do freezer. Ou como quando chegamos e todos os mantimentos da despesa estavam cuidadosamente empilhados sobre o chão da cozinha.

Completaram-se quarenta e poucos dias desde que nos mudamos quando eu comecei a enxergar padrões em todas aqueles acontecimentos: os barulhos, os objetos aparecendo em lugares estranhos, as repentinas ondas de frio, a sensação de estar sendo observado e o cheiro de perfume velho sempre surgiam entre as seis da tarde e as onze da noite. Comecei a anotar todo e qualquer evento anormal em uma planilha no meu computador e percebi que nenhuma atividade do tipo acontecia em qualquer outra hora do dia. Eram fantasmas do horário nobre como eu costumava fazer piada com minha esposa. Nesse ponto, não estávamos assustados com o que acontecia, mas sim intrigados, curiosos e extremamente fascinados com todos aqueles fenômenos. A única coisa que preocupava era meu filho, mas ele nunca aparentou ter medo de nada daquilo. Pelo contrário, ele dizia-se bem indiferente. Alguns dias antes da noite em que as coisas pioraram, ele me disse que estava protegido pelo seu anjo da guarda que sempre o vigiava enquanto dormia e que nada poderia acontecer com a gente. Aquilo me assustou de uma forma diferente, mas jamais levei a sério de certa forma.

A nossa vida continuou da mesma maneira e aquilo durante um bom tempo não chegou a nos incomodar de verdade. Mas foi no final de Agosto que as coisas começaram a mudar.

Eu estava no escritório tentando escrever. Falavam apenas algumas semanas e eu precisava entregar cento e cinquenta páginas e ainda não tinha nem noventa. Já passava da uma da manhã e todos estavam dormindo quando veio o frio e o estranho cheiro de perfume. Pairou no ar uma estranha sensação como se todo e qualquer som fosse abafado. Eu podia jurar que poderia tocar o silêncio de tão absoluto que ele se tornara. E apenas continuei sentado sem me mexer vendo a fumaça do cigarro serpentar acima do cinzeiro e alcançar o teto ouvindo nada além da minha própria respiração. Uma sensação de pânico e euforia tomou conta de mim quando senti algo pesar sobre meus ombros. Era como se uma tonelada de tijolos se apoiassem sobre as minhas costas e eu simplesmente não podia me levantar. Aquilo não durou mais do que trinta ou quarenta segundos. O silêncio foi abruptamente quebrado por um estrondo ensurdecedor de objetos caindo e vidro se quebrando. Assustei-me e levantei-me por instinto sem perceber que o peso sobre meus ombros havia desaparecido. Corri em direção à sala que era de onde acreditei que vinha aquele som.

Choquei-me ao me deparar que a mobília inteira não só estava destruída no chão, mas amontoada perfeitamente no centro da sala. A estante com nossa coleção de DVD's, a TV, o rádio, a mesa de jantar, o sofá e até prateleiras parafusadas na parede. Tudo estava destruído e empilhado no meio da sala de estar. A porta da sala estava aberta escancarada, mas não vi ninguém do lado de fora do apartamento, mas as luzes do corredor que só se acionavam através de sensores de movimento estavam acesas.

Virei-me para o corredor e vi minha esposa sair do quarto provavelmente assustada com o barulho de tudo aquilo despencando. Ela não viu o que havia acontecido na sala, mas acredito que a expressão de pânico e perplexidade no meu rosto transpareceu que algo estava extremamente errado. Acredito que nós dois pensamos a mesma coisa ao mesmo tempo por uma espécie de telepatia ou sexto sentido que somente os pais podem ter e corremos em direção ao quarto do nosso filho. Nos encontramos na porta, abrimos, entramos e acendendo a luz.

Vazio. Ele não estava mais lá.

Eu olhei pro lado e vi ela com os olhos cheios de lágrimas e terror levar a mão a boca como que se tentasse evitar que alguma palavra profana escapasse. E foi ali que eu soube que minha vida estava prestes a desmoronar-se como a mobília da sala. E eu jamais conseguiria juntar todos os meus cacos pelo chão.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Tinta Lavável

Eu constantemente tenho esse sonho com uma enorme casa vazia onde as lâmpadas tem uma luz fraca e o piso estala e se solta sob meus pés enquanto eu ando. Paredes manchadas e mofo se espalhando por todo lugar, móveis cobertos com plástico e um teto com goteiras. Mas é a janela que me fascina sempre: no lugar de grandes vitrais, espelhos onde não é a verdade que é refletida, mas sim uma versão mais limpa, bela e aconchegante. No reflexo, estou sempre bem vestido, a casa está reformada, bem iluminada e decorada. Todos os móveis estão novos e não há mais mofo, goteiras ou piso solto.

Tudo o que você enxerga quando tenta olhar para fora é exatamente aquilo que queria que existisse do lado de dentro. E acredito que isso reflete toda uma maneira de se enxergar o mundo.

Estamos nos decompondo, apodrecendo a cada dente de leite que perdemos, a cada pedaço da nossa inocência que vendemos à pornografia e à noção de grandeza que nos fizeram comprar. Talvez muitos de nós não sejamos incapazes de enxergar a realidade do outro lado da janela, estamos atados à falsa noção de que somos exatamente aquela versão melhorada de nós que vemos ao olhar no espelho. E nós estamos apaixonados por ela pois é tudo que podemos ver.

E esse é um daqueles textos em que você vai certamente enxergar alguém que conhece, mas jamais será você o próprio objeto o que me faz correr o risco de ser um grande hipócrita ou um tremendo visionário, provavelmente mais o primeiro do que o segundo.

Nós fomos corrompidos pelo amor próprio, pelo narcisismo do consumo, pelas promessas de estabilidade e pela falsa ideia de quem somos e quem queremos ser. Nos tornamos egocêntricos de mente fechada que não são capazes de ver mais daquilo que lhe interessa. E nesses dias onde vemos nada mais do que nós mesmos, o amor tornou-se um ato de extrema subversão punido com severidade pelos dogmas de uma nova era onde ninguém é mais importante do que você.

Eles não dizem isso nos filmes ou nos livros, mas você vai perder as contas de quantas vezes vai se mutilar metaforicamente ou não na tentativa de ser algo que outra pessoa deseja evidentemente sem sucesso. Eles nunca te dizem que você  terá de vestir um sorriso que não é seu, um traje de social desconfortável para que todo mundo te aceite e ninguém vai se opor a isso mesmo que estejam tão desconfortáveis quanto você.

E você vai descobrir que existem muitas maneiras diferentes de odiar a si mesmo.

Eles nunca te disseram que você vai se enfurecer e esmurrar as paredes antes de desabar em lágrimas ao tentar se masturbar debaixo do chuveiro e não conseguir porque subitamente aquilo lhe parece errado. Ou como você vai preencher cada folha de um caderno velho com o nome de alguém que não existe mais como um mendigo que atira a última moeda numa fonte seca pedindo por abrigo. Não há abrigo nenhum quando o papel acaba e você começa a escrever nomes nas paredes da sala de jantar desejando ter de volta qualquer coisa que você de fato jamais teve.

Todos sabem, mas ninguém te diz que a sua opinião é a que menos importa mesmo quando se trata da sua própria vida.

E quando você perceber, todos à tua volta terão erguido trincheiras com arame farpado e estarão escondidos nelas mesmo jurando que não tem medo de nada. E quando menos esperar verá que todos se encantaram por sua própria imagem no espelho e pintaram as paredes com tinta lavável para que nenhum nome permaneça lá por mais tempo do que o planejado e ninguém mais amará ninguém.

Ninguém amará você.

E todos os sonhos com o porto se desmancharão como papel na chuva e você se verá a deriva num mar de mágoa, fúria e ressentimento. E mesmo que se isole temerá que sua falta não seja notada, mas também viverá a paradoxa sensação de não querer que alguém perceba como num baile onde você não quer dançar, mas deseja um par para ter a oportunidade de lhe dizer não. E quando estiver enfurecido você vai querer deixar de viver, mas vai continuar pois sabe que isso seria um favor para muita gente. E quando se sentir cansado, tentará desistir, mas fracassará pois ainda alimenta um fogo revolucionário que existe dentro de você. No final, apenas desejará o chão do convés e a água da chuva. E desejará ficar lá até o dia em que não mais o fará. Pois amamos pessoas até que simplesmente não amamos mais e isso serve para nós mesmos.

Ainda há tanta coisa para comprar e tantos programas para assistir que não torna-se surpresa a descartabilidade humana. Estamos em uma decadência tão grande que valemos menos que as coisas que nós mesmos inventamos. Nos tornamos reféns de toda nossa tecnologia e da nossa indiferença com tudo e com todos. Hoje somos pratos num menu, produtos numa prateleira, itens de um inventário, números de um catálogo onde todo o universo que é você resume-se a um preço e uma descrição de setenta caracteres.

E então aceitará que é como todos os outros e velejará para casa conformado e jamais conversará sobre isso pois, mesmo que as pessoas entendam, você tem medo do que pode acontecer. Adapte-se ou morra, compre duas latas de tinta lavável e vista seu melhor traje desconfortável pois o amor próprio também pode ser seu quando uma palavra é dita tantas vezes que acaba se tornando verdade.

Contemple o mundo que criamos diante a ponta afiada de uma lâmina polida pela casualidade. Aceite-a como amiga. Vai ser fácil depois que aprender que ninguém de fato é. E se todo mundo faz, não pode ser errado, certo?

Diga que é como todos os outros. E uma hora, você vai se convencer disso.

sábado, 18 de julho de 2015

A Valsa Dos Mortos Vivos

Sempre me intriguei pelos ritos funerários. Tem aquele mais pomposo com direito a presença de gente importante "se despedindo" do falecido com cliques e flashes de câmeras fotográficas, diplomacia e muita cara de paisagem, mais evento social do que ritual religioso ou espiritual. Quase ninguém chora de verdade e a maioria presente nem chegou a trocar mais que meia dúzia de palavras com o velado.

Também existem ritos mais modestos para gente "menos importante" que contam apenas com o pranto de familiares e amigos, Gente que trabalhou com quem habitou o corpo já sem vida selado pra sempre no caixão.

E ainda existem os que sepultamos como indigentes, sem ritos, sem passagens, sem prantos ou sensibilidade. Apenas a pá, a cova e tchau. Até o outro lado.

De qualquer maneira, enterramos todos eles, sepultamos todos os dias aqueles cujas vidas deixam de existir literalmente ou não. E todos nós seremos enterrados talvez mais de uma vez na vida.

Talvez como figuras notórias ou meros anônimos. Ou ainda indigentes cuja existência não foi relevante o bastante pra que alguém fosse prestar suas homenagens póstumas em água e sal correndo por rostos pálidos e abatidos.

O mais curioso é ver quantos sepultados e sepultadores encontramos quando andamos por nossas cidades cheias de gente moribunda. Nossa necrópoles de sacos de pele e ossos esperando a próxima procissão funerária.

Banalizamos a vida, subestimamos a morte e nos acostumamos com isso. E é assim que é, discordar não é subversão, é ignorância. Vivemos no tempo dos coveiros, dos abutres, e dos messias e Lázaros.

E nos encontramos em nosso sepulcro vitalício do cotidiano como causa e efeito do fenômeno da descartabilidade humana. Enfiando embaixo da terra todos aqueles que já não tem vida para que sirvam de adubo para raízes fortes de árvores das quais nunca colheremos frutos e que cuja sombra nunca nos abrigará numa tarde quente.

Sacos de estrume ambulantes prontos para serem enterrados. Impacientes coveiros prontos para entregá-los ao solo. O belo e triste paradoxo de todos nós.

Em tempos de guerra, a maior baixa de todas é o valor da vida.

Quantas pessoas você enterrou hoje? Quantas pessoas você enterrou no último mês? Quantas pessoas enterraram você no último ano? Por quantos sepultamentos você já não passou?

É tudo trivial. Não faz sentido contar. Não importa mais. O que está morto não pode ser ressuscitado. Muito menos ser morto outras vezes.

Coveiros de nós mesmos, cadáveres do que fomos. A marcha fúnebre é a valsa dos mortos vivos, aqueles que encontramos tempos depois quando já nem lembramos mais. Mas todos nós dançamos, todos nós vamos dançar. E quem sabe um dia não encontraremos uns aos outros em vida apesar de nossos atestados de óbitos carimbados.

Que descansem em paz os mortos vivos. Todos nós. E que alimentemos o solo para que germinem coisas maiores, com mais cor, com mais vida.

E que possamos ser a sombra-refúgio do viajante, o galho do ninho do pássaro, a fruta que nutre no faminto. As vigas que erguem as igrejas, a lenha que acende as fogueiras e, claro, o tampo que fecha os caixões.