quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

IX - Olhos no Céu

Despertei cedo o bastante pra sair sem ser notado. Arrumei minhas coisas, fiz a minha mala. Eu tinha planos para ir para o Oeste, o máximo que eu pudesse. Eu tinha um pouco de dinheiro e o carro do meu pai. Provavelmente, dirigiria até Montreal onde eu tinha alguns amigos - ou costumava ter - que poderiam me ajudar a chegar até Calgary. De lá, eu teria que improvisar. Eu só sabia para onde deveria ir, não necessariamente o que faria quando chegasse lá. Mas quando acordei, me deparei com minha irmã na sala, sentada no sofá com as mãos no rosto.

Fiquei surpreso pois era muito cedo para ela estar de pé. Percebi que teria que adiar meu plano de fuga, mas a ideia saiu da minha cabeça quando percebi que ela estava em prantos enquanto assistia o plantão de notícias.

- Um amigo do trabalho estava nesse avião - ela disse soluçando.

Foi quando me atentei ao que passava na Televisão.

- De acordo com a Agência Nacional de Aviação, haviam 113 passageiros no Boing que caiu na Pennsylvania e é improvável que haja qualquer sobrevivente. O vôo 4102 da American Airlines saiu de Moncton com destino a Miami e tinha conexões com Pittsburg e Atlanta. Os motivos do acidente ainda são desconhecidos...

Eu estava em choque. O horário batia com o do vôo que o homem de cavanhaque queria que eu tivesse embarcado. Minha cabeça rodou. Pedi licença e fui lá fora fumar um cigarro totalmente alheio ao sofrimento da minha irmã.

Sentei na varanda do lado de fora e acendi meu cigarro. Era bem cedo, o sol ainda estava nascendo e fazia um frio que parecia me cortar as orelhas e o nariz. Eu tinha esquecido meu gorro lá dentro, mas desisti de buscá-lo depois que me sentei, embora já caminhasse melhor, mesmo sem a bengala que eu perdi no acidente. O que realmente me incomodava não era o frio nem a falta da bengala, mas a história da queda do avião. Era pra eu estar naquela aeronave se seguisse os conselhos do homem de cavanhaque.

Foi quando eu percebi o carro vermelho do outro lado da rua. O carro do velho em que eu tinha entrado dois dias antes. Onde tinha sofrido um acidente. Ele me olhava como se quisesse chamar minha atenção. Senti um calafrio subir-me as costas.

Apaguei o meu cigarro no cinzeiro e levantei. Atravessei a rua por puro impulso, por instinto eu acho. Não sabia o que esperar. Notei que o carro não tinha nenhum sinal do acidente que aconteceu dois dias antes e voltei a pensar na possibilidade de realmente ter sido tudo uma invenção do meu subconsciente. Alucinações, Estados de Fuga. Esquizofrenia.

Entre no carro e fiquei parado por alguns segundos sem dizer nada, sem olhar o velho. Apenas olhando pra frente como se dissesse, "dirija".

- Você precisa nos contar onde ele te levou, nos mostre o lugar. - quem falava comigo era a mulher do fundo do rio que estava, de novo, sentada no banco de trás do carro.

- Um apartamento na Alma Street no centro próximo a uma Loja Maçônica.

Era um pequeno prédio de apartamentos de três andares. As paredes incrustadas de tijolos alaranjados. No Térreo, funcionava uma loja de penhores ou coisa do tipo.

Quando chegamos e subimos até o apartamento - cujo número eu não consegui me lembrar, mas tinha certeza de qual era baseando-me nas direções - o velho sacou uma pistola de dentro do sobretudo cinza. O frame em aço inox reluziu pelo corredor escuro enquanto nossos passos estalavam o assoalho de madeira. Não foi medo que senti, mas uma familiar sensação de expectativa e ansiedade. Mas me assustei quando ele entregou a pistola em minhas mãos e sacou um pequeno revólver escuro do tornozelo. A arma me pareceu tão familiar entre meus dedos quanto a sensação de emboscar um homem em seu apartamento. O quê eu me tornei nesses últimos anos?

Antes de bater na porta, percebemos que ela estava levemente entreaberta. A mulher de olhos negros não nos acompanhava e acredito que eu me sentiria mais segura se ela estivesse lá, não sei exatamente porquê.

O velho empurrou a porta e ela se abriu lentamente com um rangido macabro das dobradiças. Nada. O apartamento estava vazio. Não havia ninguém. De fato, não havia nada, nem mobília. Não havia sinal de que alguém havia morado ali nos últimos seis meses pelo menos. A poeira se acumulava sobre o chão e os balcões da pia. Nas janelas da sala e dos quartos. O banheiro parecia que não via água há muito tempo.

Nada mais fazia sentido.

Voltamos para o carro e antes de contarmos qualquer coisa á mulher de olhos negros, ela se precipitou.

- Devemos ir. Ele já está um passo à nossa frente.

- Ir? Para onde? - Indaguei devolvendo a pistola ao velho.

- Boston. É lá onde ele está.

- Nós vamos matar esse homem? Que loucura é essa?

- Não assistiu os noticiários garoto? Ele queria te colocar num avião que caiu. Aquele homem te quer morto a qualquer custo. - se intrometeu o velho.

- Isso não faz sentido. Ele me teve inconsciente por horas nesse apartamento, poderia ter me matado facilmente se quisesse. Pra quê ele iria fazer isso num avião? Que tipo de monstro mataria centenas de pessoa para atingir um único alvo?

- Nós fazemos esse tipo de coisa - disse o velho.

- Ele não te matou no apartamento porque ele não pode Aaron - disse a mulher - ele precisa de algo que só você sabe. Algo que você escondeu há algum tempo. E provavelmente, ele te fez contar.

- Eu não contei nada. Eu não poderia, não me lembro de ter escondido coisa alguma.

- Não importa, existem outros meios de descobrir. Ele passou tempo o bastante com você desacordado. Ficaria surpreso com as habilidades daquele homem. - ela se dirigiu ao velho - precisamos de um vôo para Boston ainda hoje.

- É ano novo, dificilmente encontraremos, mas vou dar meu jeito.

- Eu sei que vai - disse ela antes de voltar a se dirigir a mim - te levaremos para casa, mas esteja pronto pois partiremos à noite.

Faltavam doze minutos para as dezenove horas quando eu vi o farol alto do carro vermelho na porta de casa. Saí com minha única mala sem minha mãe e minha irmã perceberem. Ambas estavam ocupadas demais preparando o jantar do ano novo.

Saí pela garagem e subi no carro sem trocar uma palavra com a mulher ou com o velho. Nos dirigimos ao aeroporto enquanto eu lutava comigo mesmo para entender as minhas próprias decisões, os motivos que me levaram a tal situação.

Eu não sabia mais que tipo de homem eu havia me tornado nesses últimos anos, mas tinha certeza que minha família estaria mais segura não me tendo por perto. Temia pela segurança de minha mãe e de minha irmã mais do que pela minha própria. Mas eu estava estranhamente animado com a situação. Eu finalmente sentia vontade de saber sobre o que estava acontecendo quando denotei que não sabia nem sequer o nome das pessoas que agora me levavam para uma viagem para outro país.

Foi no carro que descobri que o velho chamava-se Ross. Apenas Ross, não tinha nome ou sobrenome. Foi assim que ele se identificou. A mulher do fundo do rio era Frida, ou a Bruxa, como o velho me disse após rir. Foi a primeira vez que eu vi um sorriso naquele rosto severo.

Nosso vôo partia as 19:40 e chegamos bem á tempo de embarcar em meio ao caos de jornalistas que cobriam o acidente da noite anterior no aeroporto. Entrei no vôo e apaguei logo depois da decolagem vendo a neve cair sobre New Burnswick.

Quando despertei, já sobrevoávamos Boston e a aeronave fazia manobras para aterrissar. Olhei pela janela e vi os fogos de artifício iluminarem a noite de inverno. Naquele momento, aceitei dentro de mim a pessoa que eu havia me tornado. E até mesmo por isso, lamentei a pequena chance de acontecerem dois acidentes aéreos em dois dias seguidos.

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