domingo, 28 de dezembro de 2014

VI - Summer Park

Neguei quando me ofereceram a cadeira de rodas para sair do hospital. Fiz questão de ir andando, mesmo que com bastante dificuldade. A minha recuperação era tão inexplicável quanto o fato de eu ainda estar vivo, mas àquela altura, eu já nem me preocupava em perguntar os "comos" e "porquês". Eu só queria ir para casa. Mas minha casa era um lugar que já não mais existia, então voltei a morar com a minha mãe.

A viagem de trem foi em completo silêncio. Minha mãe parecia feliz por eu estar de volta, mas exausta demais para pensar ou falar qualquer coisa. Talvez ela não tenha acreditado na história de que eu não me lembrava de nada. E eu queria que realmente fosse mentira.

Observei abismado pelas janelas do vagão como a cidade tinha mudado: novos prédios, pontes, viadutos. Alguns negócios haviam sido fechados, outros novos tomavam lugar. A neve tomava a paisagem dividindo lugar com as luzes de Natal. Faltavam 3 dias para o ano acabar e tudo o que eu queria era um lugar para descansar a minha cabeça.

Era um belo Domingo de inverno, o céu aberto, sem nuvens. O sol brilhava apesar do frio pesado. Um grupo de adolescentes entrou no vagão, provavelmente voltando de alguma festa ou show. Talvez de uma balada. Eles riam, falavam alto e ainda pareciam animados apesar de estarem acordados a noite toda. Um mostrava alguma coisa para o amigo na tela do Smartphone enquanto ria e cochichava em seu ouvido. Atrás deles, um homem velho me fitava.

Ele deveria ter pelo menos uns cinquenta e seis anos, talvez mais. Mas parecia durão. O cabelo bem cortado e a barba já eram bem grisalhos, ele era quase tão pálido quanto a neve, seus olhos de um azul turquesa que parecia fuzilar-me através de seus óculos de armação pesada. Eu tive certeza que o conhecia de algum lugar, mas não consegui

Quando o trem partiu, ele se limitou a ler seu jornal em sua poltrona. Me senti melhor sem seus olhos disparando contra mim. E seria uma longa viagem. Íamos de Halifax a Moncton, quase três horas de viagem.

Minha mãe me despertou de um cochilo quando chegamos. Descemos na estação com nossa pouca bagagem e fomos atrás de um táxi. Quando adentramos ao táxi e ela deu o endereço de sua casa ao motorista, observei pela janela e vi o velho saindo da estação. Ele tinha olhos em mim como antes. Engoli em seco antes do carro dar partida.

A casa onde eu cresci ficava na região Oeste de Moncton, New Brunswick. A casa quase não mudara desde a minha infância: o modelo colonial de alvenaria e madeira branca num calmo subúrbio de uma cidade pacata. O lugar perfeito para criar os filhos, longe de todo o caos urbano dos grandes centros. As memórias mais doces da minha infância vinham não de casa, mas de um parque que ficava há algumas quadras. O "Summer Park". Me lembro dos meus pais nos levarem quase todo final de semana ao parque. Fiz a maioria das minhas amizades na infância por lá. E talvez seja por isso que eu tenha resolvido ir até lá, contrariando minha mãe.

Eu precisei de uma bengala para andar até o parque, apenas três quadras que então me pareciam três milhas. O sol brilhava no céu fraco demais para derreter a neve nos telhados e calçadas. Eu ofegava e minha respiração formava nuvens de vapor saindo de minha boca a cada passo que eu dava com dificuldade pelas ruas do bairro até avistar, de longe, o pequeno parque.

Sentei-me num dos bancos e me deixei ser invadido pelas boas memórias da infância. Podia me ver com meus amigos jogando hockey nas ruas próximas do parque. Puxei um maço de cigarros do bolso e risquei um palito de fósforo. O cobri para que o vento frio não apagasse e acendi o cigarro. Traguei com força e quando soltei a fumaça me senti libertado. Eu havia comprado o maço de cigarros na estação sem minha mãe perceber. Nesse momento, vi crianças passarem por mim, tão encapotadas em seus gorros e blusas de lã e casacos que pareciam que iriam rolar se alguém as empurrasse pelo chão.

Foi quando eu pensei se eu poderia ter tido um filho - ou dois - nos últimos anos. Se eu tivesse e não me lembrasse, que tipo de pai eu seria por me ausentar? Mas como poderia me lembrar deles? Me peguei perguntando se existiam muitos casos como o meu: pais que perdem a memória e nunca mais voltam para suas casas por não saber que elas existem. Eu precisava saber de qualquer maneira. Nesse momento, alguém sentou-se ao meu lado no banco.

- Você tem fogo? - perguntou o homem.

- É claro. - Puxei a caixa de fósforos do bolso da calça e me virei para entregar ao homem que levava um cigarro pendurado na boca. Foi quando percebi e fiquei congelado por um instante.

- Você realmente não se lembra não é? - disse o velho que eu vi no trem com um meio sorriso estampado no rosto.

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