quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dois Dedos D'água

Várias pessoas me disseram, nos últimos três meses, que eu deveria visitar um psicólogo.

Basicamente, pagar um profissional para ouvir todas aquelas coisas que eu tenho pra dizer e tentar me orientar sobre o que fazer. De fato, essas pessoas disseram pra eu pagar um especialista para fazer isso porque elas estão de saco cheio de fazer de graça.

Eu estou bem, obrigado. Não vou precisar de ajuda alguma por um bom tempo. Nem de piedade ou pena. Muito menos de julgamentos e ironias. Eu sei dos meus problemas (acho que todo mundo sabe).

Várias pessoas me disseram que o fato de eu não querer essa ajuda significa que eu não tenho problema algum e/ou não estou lutando contra ele. Da mesma maneira que uma pessoa que - seja lá qual for o motivo - não quer participar das sessões de quimioterapia não tem câncer de verdade. E aquela que se nega a usar uma prótese nunca sofreu uma amputação de verdade. Ou pior: essas duas pessoas se colocaram nessa situação simplesmente porque quiseram e podem sair dela assim que desejarem. Só não estão "se esforçando o bastante".

Estou vivendo submerso, mas descobri que o mar é raso, se eu lutar, nunca vou me afogar. Basta levantar o queixo e ficar nas pontas dos pés. Apenas dois dedos d'água me separam da superfície. Então corto meus pés em corais e estico meu corpo até seus limites anatômicos para projetar meu rosto pra fora d'água e, assim, conseguir respirar.

Cada um luta como pode, ninguém pode dizer que eu não estou tentando. Uns encontram conforto dentro de uma igreja, outros num consultório ou numa embalagem de remédios controlados. Tem aqueles que se agarram a coisas, a outras pessoas, às suas atividades.Mas alguns só aprendem a aumentar sua capacidade pulmonar.

Eu posso me afogar, eu sei. Mas não vou sem brigar até a exaustão para ficar aqui.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Enxoval

Ela desceu do trem com passos curtos. Parecia perdida na Estação, embora já estivesse lá outras tantas vezes. Dezesseis anos, na bolsa, um cartão com endereço onde tinha hora marcada. O resultado dos exames e um bolo de dinheiro equivalente a mais de seis meses do seu salário. Ela saiu da estação procurando o melhor caminho para chegar ao endereço.

O "consultório" ficava há poucas quadras do Largo da Concórdia. Era Setembro e ela podia ver a luz do sol por trás dos prédios do Brás numa tarde quente que deixava claro que o inverno estava acabando. A cada dia o frio de Julho e Agosto parecia mais distante.

A cada passo ela só podia sentir a sensação de culpa e medo pensando na conversa que teve com a irmã e o cunhado no dia anterior quando ela mostrou os exames. Sua mãe não sabia, nem poderia saber. Contar estava fora de questão. Era uma questão de garantir sua integridade física. A irmã mais velha era a única a quem podia recorrer. E seu cunhado - um bixeiro da Penha - eram seus confidentes então.

O pai ainda não sabia, e provavelmente nem iria saber. O cunhado chegou no dia anterior com um bolo de dinheiro, um cartão com um endereço e uma hora marcada. E disse que era uma alternativa, mas que ela fizesse o que achasse melhor com o dinheiro e com o cartão. Ele só não queria que ela fosse vítima do próprio destino, o que quer que acontecesse então, seria sua escolha.

E lá estava ela, sentada num banco do Largo da Concórdia no meio da tarde tentando tomar uma decisão. Conferiu de novo o bolo de dinheiro. Incontáveis cédulas enroladas num elástico em um formato cilíndrico. Ela não se lembrava de ter visto tanto dinheiro assim na vida. Pensou em tantas coisas poderia comprar. Todos os seus sonhos fúteis de consumo adolescente ou até mesmo como aquela grana poderia financiar um bom estudo. Agora, o dinheiro serviria para ela continuar tendo a mesma vida de sempre: a de uma adolescente da periferia paulistana, perdida meio ao caos suburbano imersa na miragem que o calor causava no concreto da metrópole.

Seria um crime assim tão grave não querer que sua vida se virasse de cabeça para baixo? As coisas nunca foram fáceis, agora seriam ainda mais complicadas. Seria possível que lhe apontassem dedos com julgamentos cruéis e insensatos? Poderia ela se condenar por tentar tomar controle da sua própria vida, ao menos uma vez?

Uma lágrima correu pelo seu rosto e evaporou ao tocar o chão quente. Percebeu que já amava uma pessoa que ela ainda nem conhecia.

Sua mãe ficou confusa ao chegar em casa e encontrar um enxoval de bebê completo sobre a cama do quarto da filha. Além de um berço bonito de madeira desses de qualidade que não mais se produzem. A filha lhe entregou o resto do dinheiro que ainda somava uma grande quantia perto do que entrava naquela casa humilde vindo do trabalho árduo das mulheres que ali residiam.

Ao invés do sermão ou surra, o abraço e a compreensão de mãe - que conhecia bem o peso de ser responsável por uma vida e a coragem necessária para tomar qualquer uma das decisões que a filha teve que tomar naquela tarde de Setembro. Coragem que só mulheres podem ter. Responsabilidade que nós homens tantas vezes nos negamos a assumir.

E é essa a coragem de quem escolhe (ou é escolhida) para gerar uma vida. Sabendo que suas vidas nunca mais serão as mesmas, travam uma guerra num campo de batalha que soldado algum jamais teve de entrar.

E se estamos aqui agora, é porque alguma delas já travou essa batalha e decidiu por nós. Mas principalmente, por elas.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cul-de-Sac

Então, aqui estamos.

Mais uma vez, presos a esse caos planejado onde todas as ruas não levam a lugar algum. E rodamos por muito tempo por essas ruas, queimando todo o combustível e tempo que tínhamos, passando por centenas de casas que parecem todas iguais, presos nesse labirinto suburbano. O gueto ganhou água encanada, esgoto, asfalto, luz elétrica, mas segue como o reduto de todos os desajustados, prisioneiros de suas casas pré-fabricadas, padronizadas, simetricamente construídas em loteamentos labirínticos, onde ruas levam a lugar nenhum, como uma metáfora que diz que jamais sairemos daqui.

É isso que eu sou, e disse desde o início. Uma estrada que leva a lugar nenhum. No final, só haverá um balão de retorno. A única opção, será voltar pelo mesmo caminho que veio. Ou então parar sem chegar em lugar algum. Todos já desistiram, ou pelo menos foi o que você disse, então não vou mais me preocupar em alertar ninguém. Não preciso colocar uma placa numa rua que todos sabem que não tem saída.

A escolha entre continuar ou não é sua. Mas você nunca poderá dizer que não sabia onde essa estrada iria te levar.