sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

IV - ... te torna pior

E então eu despertei.

Acordei numa cama de hospital com tubos enfiados em quase todos os orifícios possíveis do meu corpo. Eu podia sentir que estava claramente dopado, mas sentia dor por todo o corpo. Como se eu tivesse levado uma surra por dias. Cada minúsculo pedaço do meu corpo parecia ter sido esmagado.

Entre os borrões que eu enxergava, ouvi uma voz distante. Pensei na mulher do fundo do rio, aquela que há anos fala comigo de dentro da minha mente. Mas então reconheci. Era minha mãe, a primeira pessoa que eu vi depois de despertar.

Eu estava vivo. E ainda não sabia se isso era uma coisa boa.

Me encontraram na margem do rio praticamente congelado na manhã de Natal. Ninguém entendia como eu ainda poderia estar vivo. A hipotermia me fez perder a orelha direita. Os dedos mínimos e anelar da mão direita também se foram. No pé esquerdo, só me restou o polegar. Eu tinha dificuldade para enxergar, havia rompido sei lá quantos músculos me arrastando pela superfície de gelo do rio. Um tornozelo torcido e uma clavícula fora do lugar. Foi o que eu ganhei por sobreviver.

E essa nem era a pior parte.

Não sei quanto tempo passei debaixo do gelo ou na margem do rio, também não entendo como era possível eu ter ficado tanto tempo desacordado, mas eu acreditei que fossem meses, talvez anos. Não havia sobrado muito da minha vida quando eu despertei.

Meu pai "não estava mais lá", foi tudo o que me explicaram. A mulher que um dia me amou já havia há muito desistido de me esperar voltar para casa. Meus amigos se casaram, formaram família, cada um tomou um rumo distinto do outro. E a única pessoa que ainda estava lá do meu lado, era minha mãe. E ela havia envelhecido. Uma cascata de prata tomava seus cabelos e novas rugas apareciam em seu rosto. Ela estava mais magra e abatida do que nunca.

Eu perdi meu emprego, não tinha mais uma casa. Todas as pessoas à minha volta haviam desaparecido. Por quanto tempo estive fora? Por onde estive? O que fiz durante todo esse tempo?

Quando apaguei de novo naquele leito de hospital, sonhei com ela mais tantas vezes. A mulher do fundo do rio cujos cabelos negros flutuavam em torno de si. Seu rosto pálido e aqueles profundos olhos negros me olhavam como se pudessem me despir. Seus lábios sussurravam uma canção fúnebre e escura.

Minha mãe me disse que se passaram sete anos desde que o gelo se rompeu e fui tragado pelas águas. Me procuraram por muito tempo, nunca me encontraram vivo ou morto. Mas no mesmo dia 26 de Dezembro, sete anos mais tarde, alguém me encontrou nas margens do rio, como se eu simplesmente tivesse desaparecido por todo esse tempo e voltado ao mesmo lugar. O tempo parou enquanto estive na água fria do rio.

E esse era só o começo: eu voltei diferente de uma maneira que não conseguiria explicar. Mas posso garantir que não era o que eu queria ser. Podia sentir uma raiva escura queimar dentro de mim e sabia que era ela que tinha me mantido vivo. Então comecei a questionar se foi uma sábia escolha viver ao invés de abraçar a morte no fundo do rio naquela noite de Natal.

Esse é o preço de escolher a vida. E eu já nem sei se valeu a pena pagar.

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