segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

VII - Tempestade de Cristais

O velho acendeu o cigarro e me senti extremamente curioso e assustado com o que ele tinha a me dizer. Me devolveu a caixa de fósforos, agradeceu, tragou e exalou uma espessa nuvem de fumaça.

- Eu sei o que você está pensando garoto, sei que tem suas dúvidas. E com o tempo, espero poder responder todas elas. Mas agora, devemos ir. Não é seguro ficar aqui.

- Não é seguro? O que você quer dizer?

- Você corre risco, a sua família corre risco. - Nesse momento percebi que os olhos dele eram de um tom de turquesa que eu nunca havia visto nos olhos de qualquer outra pessoa. Pareciam me sugar, me puxar pra dentro deles. - O quanto antes formos, melhor. Podemos acertar as coisas, consertar o que deu errado. Mas não posso te explicar agora, apenas venha comigo.

- Eu não te conheço, não sei quem você é. Você me seguiu desde Halifax, talvez antes. Como posso confiar em você?

O velho deu outro trago no cigarro, esse, mais forte e profundo do que o primeiro. A brasa acendeu com força e parecia me hipnotizar.

- Eu trabalho para alguém que você conhece, alguém que está te esperando. - ele falava enquanto soltava fumaça pela boca e nariz.

- Me esperando? Onde? Quem? - não pude disfarçar o quão nervoso eu estava.

Ele apontou para a esquerda, para o outro lado do parque.

- Vê aquele carro vermelho? Tem uma senhorita te esperando, alguém que há muito quer falar contigo. Você pode não me conhecer garoto, mas não é a primeira vez que eu te vejo. Já trabalhamos juntos por vários anos. Eu devo ser a última pessoa viva em quem você pode confiar.

Eu hesitei. Mas minha vontade de saber do que ele falava era tão grande que eu não podia simplesmente dar o braço a torcer. Não podia mandar ele ir à merda e sair andando. E no final das contas, era só um velho. Mesmo debilitado, eu não me sentia ameaçado por ele. Mas tinha algo que realmente me atormentava.

- Eu vou se me disser exatamente que risco eu estou correndo. Quem está atrás de mim além de você? Quem é um perigo pra minha família?

- Apenas você mesmo jovem. Estou aqui pra te proteger de você.

Engoli em seco. Não soube o que responder. Joguei fora meu cigarro, me levantei apoiando-me na bengala. Ele também se levantou. Caminhamos até o outro lado do parque entre crianças montando bonecos de neve e carrinhos de pipoca e cachorro quente. Faltava pouco para o sol se por, mas ainda era dia e estávamos cercados de muitas outras pessoas. Me senti estupidamente seguro por um momento.

Entrei no carro junto com ele, no banco do passageiro. Ele atirou a bituca de cigarro no asfalto, assoprou fumaça e entrou logo em seguida. Quando ele dava partida, eu ouvi uma voz familiar chamar meu nome.

- Não se vire.

Olhei pelo retrovisor e vi um par de olhos negros me fitando. A mulher do fundo do rio. O velho manobrou e saiu com o  carro indo para o sul.

- Quem é você? - perguntei à mulher do banco de trás.

- Essa não é a pergunta correta. Você deveria perguntar isso a si mesmo. Eu te conheço há muito tempo, mesmo antes do fundo do rio. Eu estive nos seus sonhos, conheço seus mais íntimos medos e seus mais belos sonhos. Eu sou a voz que fala dentro da sua cabeça. O que você precisa saber é quem você é.

- E quem eu sou?

- Você é um de nós. Como seu pai também foi. Você esteve conosco na escuridão nos últimos anos.

- Meu pai? - nesse momento, percebi que desde quando eu acordei, ninguém tocou no nome do meu pai. E embora o carro dele estivesse parado na garagem da nossa casa coberto por uma lona, ele não estava lá.

- Sim, seu pai. Nós temos uma longa história com ele. Ele tem um débito conosco que gostaria que você quitasse. Você acredita em karma?

- Karma?

- Sim. Digamos que faz parte do seu Karma.

- Eu... eu não consigo entender. Como podem me conhecer sem que eu faça ideia de quem vocês são? Onde eu estive nos últimos anos, com quem estive, o que fiz? Por quê eu não me lembro?

- Você escolheu esquecer. Quis retomar a sua antiga vida de onde parou, mas isso quase nunca funciona. Uma vez que se atravessa para o outro lado, não há mais volta. Não existe mais como recomeçar. Você fez uma escolha quando saiu do lago congelado naquela noite de Natal. Uma escolha pra vida toda. Nesse exato momento, você não sabe que é um risco para todos a sua volta. Nós vamos te levar de volta pra casa.

- De volta pra casa? Ok, nada disso faz sentido. Achei que tivesse respostas. Pare o carro, eu quero descer. - Eu já estava bem desconfortável antes, mas agora minha cabeça doía e tudo parecia girar. Eu não entendia nada do que estava acontecendo.

- Aaron, confie em mim, olhe nos meus olhos. - imediatamente nossos olhares se encontraram através do retrovisor e subitamente, de forma que eu não conseguia explicar, eu estava de pé, no topo de um edifício.

O vento forte soprava vindo do Atlântico. Me sentia alguns anos mais jovem. Já não vestia mais casacos, apenas uma camisa de flanela agitada pelo vento e um ar quente de verão pesava sobre mim. Á minha frente, a paisagem urbana desaguava no mar alaranjado que refletia a luz do sol. Eu não fazia ideia de como fui parar ali ou que lugar era aquele, mas sabia que não era real. Eu deveria estar sonhando. Ou será que eu estava me lembrando de algo.

- Se você pular, eu pulo.

Era a voz da mulher de olhos negros. Ela estava logo atrás de mim. Eu não podia vê-la, mas pude sentir sua presença. Pude ouvir seus passos. Pude sentir ela se aproximar de mim. Pensei que ela fosse me empurrar. Mas ela só se aproximou e disse no meu ouvido:

- Nós somos o que somos.

Eu ouvi um baque e senti o carro rodar na rodovia. Vidro voava à minha volta como uma tempestade de cristais de gelo. O carro só parou no canteiro envolto a uma nuvem de fumaça. Tentei voltar a mim mesmo, entender o que havia acontecido. Foi só aí que percebi que estávamos de ponta cabeça. Olhei para trás e a mulher de olhos negros não estava mais lá. O velho jazia desacordado com a cabeça apoiada sobre o volante. Sangue pingava do seu rosto no teto do carro. Tentei acordá-lo sem sucesso.

Não conseguia sentir nada direito. Meu corpo inteiro formigava e senti meu rosto inchar-se, mas não havia dor. Cuspi sangue no meu colo. Eu havia mordido o lábio no momento da batida. Foi quando a minha porta se abriu e alguém me puxou para fora do carro. Eu fui literalmente arrastado pra longe do carro vermelho retorcido no canteiro da avenida. Fumaça branca saia do radiador. Eu vi carros pararem no acostamento. Um homem falava no celular com a mão na cabeça. Destroços se acumulavam pela pista.

Foi quando eu vi o homem que me carregava. Ele tinha meia idade, os cabelos curtos e um cavanhaque imponente. 

- Você vai ficar bem - ele disse e foi a última coisa que eu me lembro antes de apagar.

Acordei tonto, minha vista completamente embaçada. Pensei estar numa ambulância, pensei estar num hospital. Pensei estar em casa ou ainda sentado no banco do parque fumando meu cigarro. Mas estava sentado no banco do passageiro de um outro carro com um outro motorista. Quando minha vista finalmente voltou, percebi que era o homem que havia me tirado do acidente. E agora sim, sentia dor. Nas pernas, nas costas e no rosto.

Ele virou o rosto e olhou pra mim e percebeu que eu estava acordado. Havia sangue e sujeira nas minhas roupas.

- Fique calmo Aaron, tudo vai ficar bem. Você não deveria ter voltado. Estou te levando para um lugar seguro.

Eu simplesmente apaguei. Acordei já era noite. Na verdade, madrugada. Eu estava num quarto de um apartamento acabado numa cama desconfortável. Me sentia anestesiado, mas meu corpo inteiro doía. Uma televisão ligada passava um filme qualquer. O homem que me trouxe sentava-se de frente pra mim.

- Ouça atentamente o que eu tenho a dizer e eu não vou repetir. Está prestando atenção.

Mexi a cabeça como se respondesse que sim.

- Ótimo. Assim que estiver se sentindo melhor, você vai deixar a cidade. Eu não vou estar aqui. Tem um envelope em cima da cozinha com tudo o que você vai precisar. Carteira de habilitação, dinheiro, passaporte e uma passagem. Chame um táxi e vá direto para o Aeroporto. Não fale com ninguém, não volte para a casa de sua mãe. Eu prometo que ela e sua mãe estarão seguras. Essa passagem é para Pittsburg. Você também vai encontrar um endereço dirija-se para lá e espere eu entrar em contato. Não fale com ninguém. Fui claro.

- Eu não vou a lugar nenhum.

- Aaron...

- Eu não vou a lugar nenhum antes de saber o que diabos está acontecendo. Onde é que eu estou? Por quê vocês estão atrás de mim? O que aconteceu?

- Não revire o passado. Você escolheu assim, você escolheu esquecer. Para recomeçar a sua vida. Mas você cometeu um erro Aaron. Eles te encontraram e vão fazer de tudo para te trazer para o lado deles. Sua vida como era antes nunca poderá voltar se insistir em voltar ao passado.

- E por quê eu fiz isso? Por quê esquecer? Isso não faz sentido.

- Porque você não poderia viver tendo feito as coisas que fez, tendo visto as coisas que viu. Sabendo das coisas que sabe. Você esqueceu pois escolheu viver.

- E esse é o preço que eu devo pagar por querer viver? Ter que deixar tudo para trás de novo? Minha família, meus amigos?

- Você já escolheu os deixar para trás há muito tempo. Terá de fazer isso de novo se quiser continuar vivo.

Me levantei da cama e o fuzilei com os olhos.

- Minha vida não vale tanto. Eu não sei o que fiz nem como eu te conheço, mas tenho certeza que tudo isso foi um erro. Eu estou indo embora daqui, mas é para casa que eu vou voltar.

- Você não pode...

- E é você que vai me impedir?

Cambaleei até a porta quando ele me puxou pelo braço:

- Aaron, me escuta: você vai morrer antes do ano acabar se não fizer o que eu estou te dizendo.

- Eu já morri há muito mais tempo que isso.

Deixei o apartamento e chamei um táxi para me levar de volta pra casa.

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