sábado, 21 de janeiro de 2017

Cenotáfio


Ninguém nunca diz que ás vezes desistir requer coragem. Eu desisti de escrever e precisei convencer cada nervo do meu corpo de que era melhor assim. Eu não tenho dito muito. Eu não tenho sido honesto com ninguém há muito tempo. Eu não tenho sido honesto comigo mesmo.

Foda-se isso, eu não quero mais empilhar dezenas de milhares de caracteres sobre o quão fodido eu sou. Por mais que ás vezes eu sinta vontade e até mesmo necessidade eu não quero mais costurar narrativas egocêntricas sobre como eu não consigo lidar com toda a merda com a qual as pessoas lidam todos os dias. Eu levei sete anos para entender que eu não sou um floquinho de neve especial.

Eu não quero mais erguer monumentos a minha auto piedade. "Por favor, olhem pra mim, notem o quão miserável eu me tornei!".

Eu me lembro de acordar no banco de trás e ver o mar pela primeira vez através da janela do carro. Numa manhã nublada com os olhos ainda meio abertos eu não podia ver na linha do horizonte onde começava o céu e terminava o mar. Era tudo apenas uma camada de tons de cinza. É engraçado como algumas linhas são absolutamente tênues. Eu tinha 10 anos de idade e fiquei profundamente desapontado com o mar. Se o Oceano Atlântico não conseguiu atender ás expectativas da criança que eu era como eu agora o posso fazer? Esse não é um problema só meu.

Será que existe uma forma de se perdoar por não ter se tornado aquilo que um dia desejou?

Nós vagamos pela vulgaridade que é viver. Eu não sou único e nem deveria ser. Toda a minha geração escreve sua história imersa na crueldade ordinária do cotidiano que forma linhas tênues que não nos permitem ver onde um dia começa e outro acaba. Fillers. Pilhas de copos descartáveis acinzentados. Camadas e camadas de apatia e indiferença sob dezenas de filtros e mediações. Alprazolam, Metilfenidato, Lorazepam, Diazepam, Bupropiona, Clonazepam, Fluoxetina, Maprotilina...

Chegamos aos 25 com mais receitas de medicamentos controlados do que realizações em nossas vidas.

Nós continuamos vivos porque exige menos esforço. Porque persistir ás vezes é confortável. Seguimos esvaziados de significado ou desejo, caminhando sem saber porque movidos pela inércia. Engolimos comprimidos que não deveríamos, nos relacionamos com pessoas que não amamos, empreendemos carreiras que não queremos,

Esperamos milagres ou desastres que atribuam um novo significado ao que é viver. Porque só existir parece não ser o bastante.

Somos todos, em maior ou menor nível, miseráveis. Mas tudo bem. Porque mesmo nos piores dias, não estaremos sozinhos.

Mesmo nos piores dias quando não quero levantar da cama até que eu crie raízes que se alastrem pelo chão e pelas paredes. Mesmo nos piores dias em que não consigo olhar meu reflexo no espelho sem sentir nojo da pessoa que eu sou. Mesmo nos piores dias em que a masturbação se torna uma prática impossível porque nem eu mesmo quero me tocar. Mesmo nos piores dias em que sinto inveja de quem tem doenças terminais. Mesmo nos dias tão ruins que eu deixo de pensar em suicídio porque, caralho, eu mereço sofrer muito mais que isso antes de ir embora.

Tudo bem porque há uma legião de outros cadáveres ambulantes caminhando na mesma direção. Uma enormidade de pessoas que sentem medo e desespero do presente e do futuro e que não sabem lidar com o quanto que é vago estar aqui e agora se sentindo sempre forasteiras não importa aonde estejam. Gente que vai ler isso e se identificar. Somos muitos, nós temos muitas coisas em comum. Nenhum de nós é especial.

Então por quê é que eu nunca me senti tão sozinho?

Ser comum não quer dizer que seja normal ou tampouco que seja bom. E foda-se o que meu terapeuta diz: se todo mundo se sente assim então todo mundo está doente. E agora não entendo se não nos percebemos ou apenas nos acomodamos. Afinal, a fraqueza é confortável porque ela sempre vai estar lá. O que temos de mais próximo à tal da estabilidade. Não importa de qualquer forma.

No final, tudo o que podemos fazer é celebrar ritos funerários a quem nós pensávamos que poderíamos ser. Derrubar meia dúzia de flores sobre um túmulo e ignorar o fato de que não há nada sepultado nele.