quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

III - O que não mata...

O gelo se partiu debaixo dos meus pés. A água negra do rio engoliu primeiro meu pé direito e a água gelada pareceu quebrar todos os meus ossos. Eu tentei sair, tentei lutar, tentei ignorar os estalos cada vez mais altos, o gelo se desmanchando abaixo de mim. Uma sinfonia mortal de gelo se partindo e da água me engolindo. É assim que a morte soa quando ela sussurra em nossos ouvidos.

Veio a escuridão. Não podia enxergar ou ouvir nada, somente lutar e tentar subir, encontrar o buraco por onde eu entrei. A água tão fria que fazia com que eu rompesse as fibras dos meus músculos tentando subir. Todos os meu nervos se retorciam e meu corpo parecia se despedaçar na água negra. Eu lutei o quanto pude, mas a escuridão me engoliu aos poucos assim como engoli a água tão gelada que parecia dissolver meu estômago e parecia cravar facas por cada centímetro do meu corpo.

"Eu ouço Deus sussurrando seu nome todas as noites."

Perdi o senso de direção, não sabia mais se estava subindo ou descendo, se estava mais perto de me salvar ou morrer. Eu desisti. Fiz minhas pazes com tudo, com todos. Quando parei de lutar, só havia o silêncio. Eu orbitava na água fria entre gelo e cascalho. O ar fugia dos meus pulmões e fazia bolhas que saiam da minha boca e chegavam até a superfície explodindo em bolsas de vapor.

Quando meus pés tocaram o fundo do rio e se fundiram ao cascalho, eu me senti em casa. Não como depois de um dia de trabalho, mas como o pai que volta de uma longa viagem e encontra o aconchego do abraço dos filhos e da esposa, a redenção do sofá da sala e um banho quente para lavar a alma.

E era isso. Não tem filme da sua vida passando na sua cabeça, nem coral de anjos ou as portas do inferno se abrindo pra te buscar. Só o silêncio, o frio e a escuridão.

Então eu vi luz no fundo do rio. Eu a vi.

Cantando uma doce melodia mortal, estoica, efêmera. Seus cabelos dançavam pela água gelada como se sempre fossem livres da gravidade, mesmo lá em cima. Os seus olhos negros me fitavam, me seduziam, me devoravam como se não houvesse nada além deles. Um par de pupilas negras me chamava. Não era da boca que saia o som, nem nas cordas vocais ele era produzido. Eram os seus olhos que falavam comigo.

- Nunca confie no gelo fino. Eu posso te dar asas para te levar pra casa. Eu posso te aquecer com um banho e uma boa refeição. Posso te trazer pro lado da minha lareira. Não haverá mais dor, não haverá mais frio. Basta aceitar.

Ela chegou perto, pousou a mão no meu rosto e se curvou pra me beijar. Sua mão era quente e me trazia de volta lembranças mais remotas e doces. Eu quis ficar, eu soube que me sentiria em casa. Não haveria mais nada com o que me preocupar, não haveria mais dor nem dúvida. Mas quando os lábios dela já quase tocavam os meus, encontrei forças nas minhas pernas e empurrei o fundo do rio. Terra e cascalho fizeram uma névoa turva e lenta. Dançaram em volta de nós como um cinturão de asteroides na órbita de duas almas. Enquanto subia, lembro de ver mais uma vez seus olhos negros, olhando pra cima, disparando seu desespero contra mim.

À essa altura, eu já não sabia se meu fôlego tinha acabado, se eu já tinha tragado a água do rio pra dentro dos meus pulmões. Não sabia se estava vivo. Apenas subi e tentei encontrar uma saída. Quando toquei o gelo, não senti absolutamente nada na ponta dos meus dedos. Era no meu cotovelo que eu sentia o toque. Mas eu sentia meu sangue pulsando, podia ouvir meu coração bater e meu sangue correr pelas veias numa tentativa desesperada em manter o corpo quente. Mas já não havia mais oxigênio e meu sentidos já começavam a me falhar.

Foi quando eu encontrei o buraco por onde entrei. As mãos saíram primeiro e puxaram o resto do corpo com dificuldade enquanto as bordas do buraco no gelo também se rompiam como os tendões do meu corpo. Quando saí, finalmente ouvi algo, o primeiro som desde que cheguei ao fundo do rio: ar enchendo meus pulmões e água pingando ao meu redor. Saí do buraco e me atirei no gelo que, agora, parecia tão quente e aconchegante quanto uma cama.

Não tinha como continuar. Simplesmente desabei no gelo ao sair da água. Meu corpo inteiro parecia ter desistido. A única luta era para conseguir ar. E no gelo permaneci, respirando, com frio e destruído. O que sobrou de mim jazia de bruços no gelo que cobria o rio.

Me lembro de ver o céu a as estrelas despontarem na noite de Natal. Minha última lembrança antes de apagar. E eu fiz questão de me lembrar daquilo que é o mais importante no final das contas e até encontrei forças para dizer em voz alta:

"Eu ainda estou vivo."

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