quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

X - A Queda

Aterrissamos sem demais problemas em Boston apesar da pista estar escorregadia graças à chuva e ao gelo assistindo a fria água do Atlântico refletindo as luzes dos fogos de artifício. Entramos no Táxi e nos dirigimos para o nosso Hotel: Uma torre espelhada com tantos andares que eu mal poderia contar.

Me instalei numa suíte extravagante com muito mais do que eu precisava. Comecei a desfazer minhas malas quando encontrei algo curioso: um telefone celular. Eu digo curioso porque, até então, eu não tinha um. O último que eu lembro de ter morreu no fundo do rio no dia que eu caí.

Examinei o aparelho por alguns instantes. Liguei-o e percebi que ele estava bloqueado, precisava de uma senha que eu não conhecia. Larguei ele sobre a mesa e terminei de desfazer minhas malas ainda curioso com o artefato. Tomei um banho e fui dormir.

Sonhei com Frida, a mulher do fundo do rio. Ela se despia enquanto sussurrava uma canção sobre o fim do mundo.

Acordei na manhã seguinte com Ross batendo a minha porta. Eram nove e quinze da manhã e iríamos a algum lugar. Eu me arrumava para sair quando me lembrei do celular. Apanhei-o de cima da mesa e ele tinha a luz do display acesa e uma nova mensagem.

"Saia do prédio o quanto antes."

Fiquei perturbado pelo conteúdo da mensagem, mas acabei ignorando. Enfiei o telefone no bolso e encontrei Ross no corredor me esperando. Descemos até o saguão e saímos do Hotel. Nos dirigíamos a um beco ao lado do edifício para fumar. Esperávamos Frida para seguir viagem. De acordo com Ross, iríamos ao sul da cidade verificar alguns imóveis que já pertenceram a mim no passado - embora eu não me lembre disso.

Antes de sair, apanhei uma navalha no banheiro e escondi no bolso do casaco.

Pensei em contar para Ross sobre o celular que apareceu na minha mala na noite seguinte, mas preferi manter isso em segredo por hora. Foi quando o telefone tocou. Eu me assustei e quase deixei cair o cigarro da boca. Só então percebi que não era o meu telefone que tocava e sim o dele. Meia dúzias de "Ok" e "sim" foram o bastante pra ele terminar a ligação.

- Vamos sem ela - disse o velho carrancudo.

Alugamos um carro e basicamente passamos o primeiro dia do ano arrombando garagens e apartamentos. Casas e pequenos porões. Fazendo perguntas em halls de edifício e balcões de bar.  Nada. Apenas encontramos lugares vazios, e vizinhos que não viram nada e não sabiam de nada.

Quando decidimos voltar ao Hotel e continuar no dia seguinte, eu estava exausto e faminto. Resolvemos passar numa costelaria. Aproveitei a ida no banheiro para verificar as mensagens no celular. Novas mensagens se acumulavam na caixa de entrada.

"Eles derrubaram o avião. Assim que eles encontrarem os livros, vão te matar."
"Me encontre hoje à noite no terraço do Hotel. Precisamos conversar."
"Há uma arma no banheiro de sua suíte, você pode precisar."

Todas as mensagens assinadas por Francis, que julguei ser o homem de cavanhaque.

Voltamos para o Hotel antes do sol se por, voltamos ao Hotel e fomos surpreendidos por viaturas da polícia e do corpo de bombeiros. Escombros se espalhavam pelo chão. Vidro e metal retorcido podiam ser vistos espalhados por toda Avenida. A poeira tomava conta de tudo, deixando a neve cinzenta e a transformando em barro. Na altura do décimo andar, um enorme buraco esfumaçado no prédio espelhado era a explicação: uma explosão tinha acontecido. Enquanto eu andava por entre curiosos filmando e fotografando as cenas com celulares ou tentando contactar familiares, Ross me seguia aparentando não acreditar no que via.

Quando tentei entrar, senti a mão de um policial empurrar o meu peito. Ele não me deixou entrar, a área estava isolada. Ross sacou uma carteira do sobretudo e em algum momento citou o termo "Segurança Nacional". Imediatamente o policial levantou a fita amarela que tomava a calçada e permitiu que entrássemos.

- Você escapou dele mais uma vez garoto. - resmungou o velho enquanto passávamos pela fita.

Havia mobília queimada espatifada pelo chão molhado, papéis, pedaços de vidro e plástico. Uma banheira - ou que sobrou dela se precipitava em frente ao Lobby do hotel. Jornalistas corriam de lá pra cá e o lobby estava caótico. Perguntamos no balcão de atendimento quais eram as suítes atingidas, o quarto de Frida foi citado.

Me precipitei em subir correndo pelas escadas de emergência. Àquela altura, já não sentia-me limitado pelas minhas pernas, mas foi Ross quem me puxou pelo casaco e quase me fez cair para trás.

- Não há nada para ver lá rapaz. Ela já se foi. Nós temos que ir.

- Não, eu preciso voltar lá em cima. Eu sei que ela está lá - eu simplesmente tinha essa certeza sem ao menos entender o porquê.

- Não banque o rebelde agora garoto, temos que deixar Boston essa noite. Tenho alguns conhecidos em Nova York que podem nos ajudar. Precisamos daqueles livros, temos que continuar com ou sem ela.

- Eu sei onde eles estão.

Nesse momento, o velho pareceu finalmente surpreso. Foi a primeira expressão que eu vi no rosto dele desde o sorriso no carro a caminho do Aeroporto em Moncton.

- Onde?

- Numa cabana nas rochosas, a quatrocentas milhas a noroeste de Calgary. Eu posso te levar até lá. Mas precisa me deixar subir. - a memória apareceu de supetão como quando a gente subitamente se lembra de um sonho que teve na noite anterior

- De jeito nenhum garoto.

- Você não vai me impedir.

- Não queira foder comigo rapaz. - ele disse enquanto apertava meu braço e puxava discretamente a pistola e a encostava na minha virilha certificando-se de que ninguém estava vendo.

- O que você vai fazer? Atirar em mim aqui? Na frente de todo mundo? Eu acho que não.

Ele me fitou por alguns segundos com um ar de desprezo até que seus dedos se afrouxaram entre meu braço e eu me atirei em direção as escadas. Já no primeiro lance, era uma escuridão total. Tirei o celular do bolso para iluminar os degraus e percebi que havia mais uma mensagem:

"Cobertura. Agora."

Corri degraus acima pensando em tudo que acontecia. Antes de chegar no quarto andar, eu já estava exausto, minhas pernas latejavam e sentia-me cada vez mais fraco, mas não podia desistir ali. Não fazia sentido Francis me mandar todas aquelas mensagens tendo a intenção de me matar. Ele poderia ter me matado em Moncton, foi a melhor chance. Não precisaria explodir um prédio inteiro ou derrubar um avião.

Então me lembrei da ligação que Ross recebeu pela manhã, pouco depois de eu ter recebido todas aquelas mensagens no celular. E, afinal, quem colocou o telefone na minha mala? Quem esteve perto o bastante pra isso? Passou pela minha cabeça que Ross e Francis estavam trabalhando juntos. Ambos armaram para matar Frida. Ambos armariam para me matar. Nada melhor para ganhar minha confiança do que me convencer de que um faria tudo para me proteger enquanto outro tentaria me matar. Afinal, o que havia naqueles livros que era tão importante para todas essas pessoas? E se Francis já sabia onde eles estavam, porque viria até Boston atrás de nós?

Eu pensei em desistir da subida, mas fui tomado pelo impulso. Já não me importava mais se estaria vivo ou morto no fim do dia, eu precisava saber. Se alguém fosse colocar uma bala na minha cabeça, deveria ao menos e dar um motivo.

Cheguei ao último lance de escadas e forcei a porta que dava acesso ao terraço. O suor corria vasto pelo meu corpo e eu pensei que fosse morrer sufocado, então abandonei o casaco, guardei a navalha no bolso da calça e saí O vento forte quase me derrubou. Dutos de ventilação, uma enorme torre, claraboias de vidro e equipamentos de manutenção. A Sudoeste, eu podia ver a fumaça do décimo andar subir e ganhar os céus, mas não havia ninguém lá em cima. Até que eu resolvi olhar para trás.

Ross estava na porta com a pistola apontada em minha direção. Francis saiu de trás deu ma das claraboias também armado.

- Ele se lembrou onde estão os livros. Ele pode nos levar até lá. - disse Ross sem tirar os olhos de mim.

- Perfeito.

Francis se aproximou, levantou o revólver na direção da cabeça de Ross e antes que ele notasse, eu fechei os olhos para não ver. O estampido quase me deixou surdo, o zunido que ecoou pela minha cabeça foi interrompido pelo violento baque do corpo de Ross caindo no chão.

Quando abri os olhos, Ross estava estirado no chão e o sangue fluía pelo cascalho como uma cascata vermelha. Francis andava na minha direção enquanto guardava o revólver.

- Agora devemos ir Aaron, não há mais tempo.

- O que há nos livros?

- Informações. Datas de morte de pessoas importantes. Cotações de ações de grandes empresas, resultados e eleições, falências, fusões de grandes companhias. O começo e o fim de guerras e epidemias. Catástrofes naturais, acidentes aéreos...

- E o que há de tão importante nisso.

- A parte importante é que nada disso aconteceu. Ainda.

- Do que você está falando.

- São previsões Aaron. Coisas que você viu. Os livros tem uma descrição exata de acontecimentos importantes no mundo pelos próximos dez ou quinze anos. Nas mãos erradas, essas informações podem se transformar numa arma. Você escolheu esquecer, escolheu viver o presente pois não suportava mais ver o futuro. Você tinha se perdido e já não sabia mais onde ficava o presente. Sua vida se tornou um caos de previsões e mais previsões. Ela te hipnotizou, apagou a sua memória para que você pudesse voltar a viver sua vida normalmente. Mas suas anotações foram escondidas e a única pessoa além de você que sabia da localização delas morreu há alguns dias. Por isso eles foram atrás de você. Ross e Frida trabalham para pessoas que os pagam muito bem para conseguir esse tipo de informação. Você já foi muito bem pago para isso, mas o preço disso foi alto demais pra você.

Pra mim, aquilo tudo parecia uma brincadeira de mau gosto. Como eu poderia saber de todas aquelas coisas? Como poderia prever aquilo? Por devaneio ou pura fuga, olhei para Oceano. Então me lembrei-me do acidente na rodovia. Lembrei-me da visão que tive quando Frida estava comigo no topo de um edifício.

"Se você pular, eu pulo."

Percebi que era o mesmo prédio do sonho.

Francis percebeu quando eu olhava por cima do seu ombro e virou-se para trás. Ela estava logo atrás. As mãos nuas e o cabelo bagunçado pelo vento. Antes que Francis pudesse levantar sua arma e disparar, me atirei as suas costas, puxei a navalha e enterrei no seu pescoço. O sangue quente escorreu entre meus dedos. Francis lutou, tentou se livrar enquanto engasgava e morria nos meus braços. Até que ele parou de lutar e caiu envolto numa poça de sangue.

Frida andou em minha direção.

- Nós somos o que somos - disse ela - e ás vezes não podemos conviver com isso.

- Ás vezes eu queria escolher.

Ela olhou na direção da fumaça e disse:

- Se você pular eu pulo.

- Talvez seja a coisa certa a fazer. Ninguém deveria viver tendo visto as coisas que vi.

Deixei a navalha cair e me aproximei do parapeito, a vertigem me atacou como uma náusea violenta. Ela se aproximou e passou os braços pela minha cintura descansou a cabeça nas minhas costas e suspirou.

- Eu queimei os livros - disse para ela.

- Eu sei.

- Era a coisa certa a se fazer.

Me virei para ela e encarei seus olhos negros e profundos. O vento soprava seus cabelos e eles pareciam tão livres como pássaros no céu de Outubro. Ela se aproximou e me beijou. O beijo que a neguei no fundo do rio. Longo, estoico, aconchegante. Agarrei-a pelo braço e puxei-a com força o bastante para desvencilhá-la de mim. A empurrei na direção do parapeito e não olhei para trás pois não quis vê-la cair.

Nenhum comentário:

Postar um comentário