terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Intocável

Eu tinha onze ou doze anos na primeira vez que assisti "Os Intocáveis" de Brian de Palma. Fiquei encantado pelo universo de gangsters, policiais, lindas donzelas, belos chapéus, longos casacos. Engraçado como tudo que remete à primeira metade do Século XX parece glamouroso, bonito, saudoso. Ainda mais quando todo esse enredo é esculpido e delineado pela enigmática e bela trilha de Ennio Morricone que já havia pintado, com notas e não com o pincel, a tensa atmosfera de "Era uma Vez no Oeste".

Desde então, me encantei com os Gangsters de De Palma e também com os mocinhos da década de 30, com a história de homens como Al Capone e John Dillinger. Ou  ainda Melvin Purvis. Nunca quis ser um "Inimigo Público" ou um homem da lei, mas invejava a coragem de homens capazes de andar na contramão de tudo. Capone morreu na prisão, Dillinger foi morto pela polícia e Purvis cometeu suicídio.

Embora suas vidas não tenham finais tão felizes na vida real, todos viveram no limite entre a lei, a moral e a ambição. Eram homens sem medo e, embora mortos, pode-se dizer que, historicamente, seguem intocáveis. Reproduzidos, imitados e ilustrados na cultura popular graças à sua coragem, ousadia e até mesmo ausência de apreço à vida, heróis e vilões como esses marcaram seu nome na história.

E é dessa falta de apreço à vida que eu estou falando.

Nos últimos doze meses, tenho andado às margens da vida, sobre estreitos trilhos de metal e madeira sem me importar se algum trem vai me atingir.

Na verdade, eu consideraria até bom se acontecesse.

Vou e volto à noite nas ruas escuras da cidade sem me preocupar com qualquer coisa que possa acontecer. Mais do que isso: eu espero que algo realmente aconteça. Talvez um motorista bêbado perdendo o controle do seu carro, subindo o meio fio e me esmagando contra a parede. Ou um assaltante que resolva levar mais do que minha carteira e meu celular. Eu quase imploro para que me encontrem apagado no passeio, como uma mancha para a qual ninguém quer olhar. Como quando queimei o sofá com meu cigarro e me sinto melhor ignorando a marca preta e esférica no braço do sofá. É bem mais fácil ignorar. E se eu fosse escolher como morrer, seria assim, a saída trágica, o que sobrasse de mim repousaria sobre o pavimento da calçada cercado de policiais, bombeiros e do médico legista.

As mães passariam do outro lado da rua com seus filhos e cobririam seus olhos. A família desesperada com a notícia. Os jornais vendendo a tragédia a quem queira.

"Um rapaz tão jovem, tão cheio de ambições, ainda tinha a vida inteira pela frente."

Mas a verdadeira tragédia é que isso nunca acontece. Sempre chego vivo em casa, tudo acontece 5 minutos antes ou 5 minutos depois de eu estar presente.

Eu não falo com Deus. Não temos uma relação muito boa. Mas me lembro de nossa última conversa. Foi a bordo de um avião ainda decolando no aeroporto em Guarulhos no ano Novo do ano passado. Assim que a aeronave deixou o chão, me curvei e rezei pela primeira vez em muitos anos. E pedi, humildemente, encarecidamente, que Deus derrubasse aquela aeronave. Foi a mais esquisita e minhas preces, mas o resultado foi bem igual a todas as outras: foi totalmente ignorada.

De certa forma, me sinto intocável. Nunca nada de "ruim" me aconteceu. Nunca quebrei uma perna ao cair de bicicleta e nem tive que levar alguns pontos no queixo depois de escorregar na garagem. Nunca fui assaltado, nunca acordei numa cama de hospital com uma sonda no meu pau depois de ser atingido por um carro a 90 Km/h. E o mais irônico disso tudo é que eu queria essa tragédia, eu espero ela todos os dias por isso, eu imploro, eu suplico. Hoje, seria a única coisa capaz de me fazer sentir vivo.

Mas sou ignorado. Pois sou invisível. Sou intocável.

As pessoas morrem todos os dias das maneiras mais estúpidas. Me contaram que máquinas de refrigerante matam mais do que ataques de tubarão. E só consigo pensar "PORRA, como alguém é morto por uma máquina de refrigerante?".

Eu ainda tenho minhas longas caminhadas tarde da noite, esperando algo acontecer, esperando qualquer sinal que me faça ter apreço por qualquer coisa. Quero chegar perto e implorar pela vida, perceber que na verdade ela é importante e que eu não estou tão indiferente quanto à tudo e quanto à todos. Mas nada acontece. Enquanto isso, alguém escorrega no banheiro e quebra o pescoço. Crianças se afogam em bacias, jovens da periferia são alvos de balas perdidas. E nenhum deles queria isso.

Esse é o preço de ser Intocável. Assistir isso tudo alheio ao mundo. 

Esse é o fardo que eu carrego todos os dias: ter uma casa e nunca se sentir em casa, estar vivo e nunca se sentir vivo, ter o que comer e nunca me sentir satisfeito, ter motivos pra chorar e nunca derramar uma lágrima, ter motivos para rir e nunca ficar feliz. Esperar uma tragédia e ela nunca chegar.

E ainda não entendo como alguém pode ser morto por uma máquina de refrigerante.

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