quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O Samba de Uma Nota Só.

Foi no carnaval de 83.

A Rosas de Ouro cantava a nostalgia paulistana debaixo de chuva enquanto eu o seguia pela Avenida Santo Amaro num carro que não era meu. Eu tremia, fumava um cigarro atrás do outro e imaginava se teria a coragem (ou covardia) necessária.

Eu não sei bem onde ele estava indo e acredito que nunca saberei. Mas sabia que era ele, TINHA que ser. E sendo, eu deveria estar preparado. O carro dele adentrou em algum bairro, não sei onde direito, chovia bastante e estava muito escuro. Nessa época, a periferia de São Paulo era mais escura do que é hoje.

Ele parou em frente uma casa, desceu com o casaco sobre a cabeça para se proteger da chuva. Foi naquele momento que eu vi o brilho da calibre 45 no coldre e hesitei pela primeira vez abaixei a cabeça e rezei aos céus para que tudo desse certo enquanto ele chamava alguém no portão.

Quando dei por mim, ele já estava dentro do carro de novo e já partia ao fim da rua. E eu continuei seguindo e até hoje não entendo como ele não percebeu. Acho que a chuva me ajudou.

Há cerca de quinze quadras da casa onde havia parado, ele entrou num posto de gasolina. Enquanto o frentista abastecia o seu carro, o militar saiu, perguntou alguma coisa e dirigiu-se, a pé, pro lado de trás do posto. Era a minha chance. Tirei o velho revólver do porta luvas, coloquei na cintura e fui atrás.

Ele tinha ido ao banheiro, quando entrei, ele mijava no mictório. Eu jamais teria outra chance como aquela, estava muito fácil: um tiro na nuca, pintar os azulejos encardidos com o sangue e os miolos do filho da puta. Ele morreria ali, indefeso, sem chance de reação num banheiro imundo de posto na Zona Sul. Mas eu não queria que fosse assim. Eu queria olhar nos olhos do cara, queria ver o medo que eu tive refletido no semblante do interrogador que há uma década matara quase todos os meus amigos.

Me juntei a ele no mictório, até cheguei a cumprimentá-lo.

- Boa noite - eu disse meio sem saber o que estava fazendo.

- Boa noite - respondeu áspero, sem ao menos olhar na minha cara. Paulistano típico. Menos mal, temi que ele me reconhecesse.

Depois que ele terminou, saiu sem lavar as mãos. Eu ainda esperei um pouco, pensei em desistir. Mas não poderia, não era uma opção. Eu tinha que me decidir. E não há melhor lugar que um banheiro sujo numa noite chuvosa para decidir fazer qualquer merda. O banheiro é sempre o santuário mais sagrado dos desesperados.

Me decidi. Mataria ele naquela noite.

E assim fui, atrás daquele homem cujo nome eu nunca soube. Saí do banheiro bem a tempo de ver o carro dele deixando o posto. Corri até o meu próprio carro e continuei a mórbida perseguição.

Num momento, numa larga e deserta avenida na Zona Sul, não sei exatamente onde, pisei fundo, acelerei o carro e toquei com o para-choque a traseira do Corcel do militar. O carro dele rodou e capotou duas ou três vezes, parou só na calçada. No espetacular vôo do automóvel, vi algo ser ejetado, alguma coisa... alguém.

Desci do carro com o revólver em punho pronto pra ir de jornalista e idealista a homicida sanguinário.

Corri até o carro do militar, poderia ouvir ele gritar de desespero. Era o desespero que eu queria. Me aproximei, dei a ele a mão direita para ajudá-lo a sair do carro tombado.

- Me ajuda pelo amor de Deus! Meu filho! Cadê meu filho? - Presumi que ele estivesse em estado de choque, alucinado ou será que...

- Foi a mesma coisa que eu te perguntei. Lembra de mim? - Ele olhou no meu rosto, mas pareceu não se lembrar.

- Passei dois dias num porão vendo essa sua cara de bosta enquanto dois burucutus quebravam meus dedos me davam choques. Você não lembra de mim, mas eu me lembro de você seu filho da puta do caralho.

Ele resmungou alguma coisa, não pude entender. Esboçou uma reação, queria puxar a pistola do coldre, mas parecia não ter forças. Seu braço estava evidentemente quebrado.

Ainda segurando a mão dele, puxei da cintura o oitão com a mão canhota e acertei dois tiros no rosto do militar. O sangue respingou nas minhas roupas, o primeiro acertou logo acima da boca, afundou o palato e deixou o nariz dele "pendurado". O segundo atingiu o olho e foi o que provavelmente o matou. Ali estavam vingados todos os meus amigos da redação que ele me fez entregar e matou friamente.

Roubei a pistola, a bela calibre quarenta e cinco. Junto com ela, um maço de cigarros dele. Acendi um, mesmo debaixo de chuva e voltei pro carro e vi uma das piores cenas da minha vida.

Alguém caído no meio da avenida. Alguém pequeno demais. Eu estava com tanta raiva quando fui até o Corcel tombado que não percebi aquela pessoa.

Tinha mais alguém no carro? Ele parou em frente ao portão e chamou alguém, eu me lembro. Eu estava de cabeça baixa, ele com o casaco sobre a cabeça se protegendo da chuva. Alguém saiu da casa e entrou no carro e eu não vi. Alguém pequeno demais que passou pela calçada e cuja cabeça eu não poderia ver do outro lado da rua. Alguém baixo demais. Ou uma criança.

Um garoto. Apenas 7 ou 8 anos. Caído, na avenida, ensanguentado. Morto debaixo da garoa paulistana.
Lembro dos primeiros gritos dele preso no carro capotado: "Meu filho! Meu Filho!"

Eu estava em estado de choque, não soube como reagir. Vomitei no meio fio e sentei de no meu carro, fui embora rumo à Santa Fé.

No rádio do carro, transmitiam o desfile das escolas de samba e nunca me esqueço de um trecho do Samba Enredo campeão daquele carnaval:

"A cortina vai se abrindo lentamente
Eis o palco de luzes faiscantes
O show é maravilhoso
Tem plumas paetês e vedetes fascinantes"

Nenhum comentário:

Postar um comentário