quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

As Crônicas dos Piores Dias de Minha Vida #1

Isso foi há quase três anos atrás quando toda a merda do planeta parecia ter atingido o ventilador da minha sala de estar. Eu estava sentado nesse karaokê em algum lugar da Santa Cecília assistindo o Doda fazer a melhor performance possível de Last Kiss com seu affair da época, a coreana das poesias do tumblr, aquela de quem eu não gostava. Eu estava sentado vendo eles cantando, ou melhor, vendo ele cantando e ela tímida do lado dele do pequeno palco ensopados pelas luzes azuis de neon que me levavam a mais absoluta náusea. Estava sentado ao lado de sei lá quantas amigas dela com quem eu não consegui (ou não quis) trocar uma só palavra a noite toda. Eu estava ocupado demais sufocado com toda meu remorso e ira. Aquele que me acompanha até hoje.

Eu queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali, no meio da horda que sorria, aplaudia e cantava junto. Isso foi antes dos smartphones se popularizarem, foi antes de todo mundo ter a possibilidade de ser sugado pela internet no meio de situações sociais. Pelo menos eu ainda não tinha um, não podia ignorar o mundo ao meu redor e simplesmente ir chorar minhas mágoas no Twitter - eu nem tinha um Twitter ainda. Tudo o que eu tinha era um maço de cigarros e talvez esse tenha sido o único dia da vida em que esse vício valeu o preço que cobra. Meu álibi perfeito para sair de perto de todo mundo e ir fumar no mezanino, meu cúmplice no crime de não desejar participar de situações sociais por medo do constrangimento. É impressionante como eu me sinto nu em qualquer lugar com mais de cinco pessoas que eu não conheço.

Subi os três lances de escadas tentando fugir do som da música do outro ambiente assim que possível. Um ritual que eu repeti bastante naquela noite, fumei pelo menos uns quinze cigarros. Respirei o ar frio e senti a garoa fina me molhar o rosto pensando que eu nem deveria ter saído de casa naquele dia. Eu fui por causa dele, por sua insistência e teimosia. Doda foi quem me levou para São Paulo naquele mês de Março. Pagou pela minhas passagens, bancou quase todos os gastos da viagem, ele queria mesmo a minha companhia. Algo que ele fez mais por mim do que por ele na verdade. Ele queria me tirar da bolha, me levar pra ver o mundo lá fora, tentar me fazer sair do buraco de onde eu tinha me enfiado. É isso que amigos fazem e ele era - e ainda é - o melhor deles. Independentemente do esforço dele - ao qual sou grato até a data presente - a verdade é que eu me senti extremamente sozinho e isolado durante toda aquela viagem. E é sobre isso que escrevo.

Encostei-me no parapeito, puxei um cigarro de dentro do maço, acendi, traguei e exalei uma fumaça branca e densa que parecia dançar pelo ar enquanto eu olhava o movimento na rua lá embaixo. Na época, eu ainda fumava Dunhill Carlton Blend de filtros brancos com a embalagem mais bonita possível, isso foi antes de eu trocá-los pelo Marlboro Red - que é substancialmente mais forte -  influenciado por outra amizade. E por ser uma marca mais fraca, eu fumava mais, então já era a enésima vez que eu subia naquele mezanino que funcionava como fumódromo em menos de duas horas.

Eu observava os táxis que chegavam na porta dos bares e boates com moças de vestidos bonitos ou saias justas tentando fingir que não estavam com frio. Os rapazes de camisetas polo listradas falando alto na porta de uma casa de eventos, carros e ônibus disputando espaço pela e estreita e, ainda sim, movimentada rua. Desejei ser como todos os que estavam lá embaixo, desejei ser qualquer um menos eu mesmo naquela noite. Eu ainda não tinha me acostumado, mas seria uma sensação bastante recorrente. Foi nessa época que eu descobri que a mais cruel de todas as prisões é não se sentir confortável debaixo da própria pele - algo que eu me lembro de dizer há um tempo atrás.

Aquele foi o fundo do poço. Eu não tinha nada, ninguém. Eu não tinha dinheiro, vontade, estudo, trabalho, perspectiva de futuro. Se eu tivesse morrido naquele dia, teria sido um alívio. Tudo o que tinha me levado até ali, tudo aquilo sobre o que eu já escrevi tantas e tantas vezes, todos os fantasmas que me assombram até hoje e me levam ao limite do suportável levando-me a crer se eu já o atravessei ou não.

E aquele foi um dos momentos que eu escolhi como controle.

Aquele momento em que Doda cantava Last Kiss ao lado da coreana no Karaokê aos aplausos dos clientes bêbados enquanto eu fumava um cigarro atrás do outro como pretexto para não estar lá como todo o resto. Um de vários momentos em que simplesmente ser tornou-se algo insuportável ao ponto de eu não querer mais a dádiva-maldição que é estar vivo. Mas eu não desisti. Eu mereço tudo aquilo que já aconteceu e tudo mais que ainda vai acontecer. Os altos e baixos, as vitórias e derrotas. Até o momento em que eu perca totalmente a minha sanidade.

Até lá, eu decoro as paredes da lembrança com todos esses momentos-controle que eu pintei em telas imaginárias para que eu possa recordar com riqueza de detalhes nas madrugadas de insônia, nas fugas ao banheiro durante ataques de pânico na faculdade, nos dias em que me sinto tão sozinho e isolado ao ponto em que me convenço de que sou a única pessoa viva a caminhar sobre a face da Terra. Para não me esquecer que eu já estive pior, que se passei por aquilo e vou passar pelo resto. E quando eu me sinto tentado a rasgar minha própria pele para escapar dessa prisão e ser qualquer coisa menos isso que sou dentro desse caixão de carne e osso e finalmente me sentir vivo, eu penso que passei vivo pelo final do último ano e pelo começo do ano anterior, então nada mais pode me impedir de continuar.

Tenho chegado ao meu limite, tenho evitado as pessoas que amo, ando "esquecendo" meu celular desligado para não ter que falar com ninguém, estou dormindo no sofá porque só Deus sabe o quão difícil é sair da minha cama nesses dias. Mas talvez Ele nem exista afinal de contas. O que nunca foi importante pra mim de fato. Ainda tenho meus quadros na parede para contemplar, mas elas já estão quase lotadas e nos últimos dias eu tenho precisado de mais espaço. Muito mais espaço.

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