sábado, 18 de julho de 2015

A Valsa Dos Mortos Vivos

Sempre me intriguei pelos ritos funerários. Tem aquele mais pomposo com direito a presença de gente importante "se despedindo" do falecido com cliques e flashes de câmeras fotográficas, diplomacia e muita cara de paisagem, mais evento social do que ritual religioso ou espiritual. Quase ninguém chora de verdade e a maioria presente nem chegou a trocar mais que meia dúzia de palavras com o velado.

Também existem ritos mais modestos para gente "menos importante" que contam apenas com o pranto de familiares e amigos, Gente que trabalhou com quem habitou o corpo já sem vida selado pra sempre no caixão.

E ainda existem os que sepultamos como indigentes, sem ritos, sem passagens, sem prantos ou sensibilidade. Apenas a pá, a cova e tchau. Até o outro lado.

De qualquer maneira, enterramos todos eles, sepultamos todos os dias aqueles cujas vidas deixam de existir literalmente ou não. E todos nós seremos enterrados talvez mais de uma vez na vida.

Talvez como figuras notórias ou meros anônimos. Ou ainda indigentes cuja existência não foi relevante o bastante pra que alguém fosse prestar suas homenagens póstumas em água e sal correndo por rostos pálidos e abatidos.

O mais curioso é ver quantos sepultados e sepultadores encontramos quando andamos por nossas cidades cheias de gente moribunda. Nossa necrópoles de sacos de pele e ossos esperando a próxima procissão funerária.

Banalizamos a vida, subestimamos a morte e nos acostumamos com isso. E é assim que é, discordar não é subversão, é ignorância. Vivemos no tempo dos coveiros, dos abutres, e dos messias e Lázaros.

E nos encontramos em nosso sepulcro vitalício do cotidiano como causa e efeito do fenômeno da descartabilidade humana. Enfiando embaixo da terra todos aqueles que já não tem vida para que sirvam de adubo para raízes fortes de árvores das quais nunca colheremos frutos e que cuja sombra nunca nos abrigará numa tarde quente.

Sacos de estrume ambulantes prontos para serem enterrados. Impacientes coveiros prontos para entregá-los ao solo. O belo e triste paradoxo de todos nós.

Em tempos de guerra, a maior baixa de todas é o valor da vida.

Quantas pessoas você enterrou hoje? Quantas pessoas você enterrou no último mês? Quantas pessoas enterraram você no último ano? Por quantos sepultamentos você já não passou?

É tudo trivial. Não faz sentido contar. Não importa mais. O que está morto não pode ser ressuscitado. Muito menos ser morto outras vezes.

Coveiros de nós mesmos, cadáveres do que fomos. A marcha fúnebre é a valsa dos mortos vivos, aqueles que encontramos tempos depois quando já nem lembramos mais. Mas todos nós dançamos, todos nós vamos dançar. E quem sabe um dia não encontraremos uns aos outros em vida apesar de nossos atestados de óbitos carimbados.

Que descansem em paz os mortos vivos. Todos nós. E que alimentemos o solo para que germinem coisas maiores, com mais cor, com mais vida.

E que possamos ser a sombra-refúgio do viajante, o galho do ninho do pássaro, a fruta que nutre no faminto. As vigas que erguem as igrejas, a lenha que acende as fogueiras e, claro, o tampo que fecha os caixões.

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