terça-feira, 4 de agosto de 2015

Saco de Ossos

Enquanto o vento frio se arrebentava pela janela do carro eu tentava me afogar com goles d'água enormes para tirar da boca o gosto de vômito e cerveja. Traumas da guerra travada num chão de banheiro molhado e sujo vendo meu reflexo na água do vaso e tentando entender como minha vida tinha chegado até ali. Um saco de ossos, ira e ressentimento tentando fazer seu peso sobre a Terra ser sentido, ansioso para entrar numa briga de bar só pra saber se ainda pode sangrar, se ainda pode sentir qualquer coisa que não o pesado desespero da irrelevância. Eu quis me sentir como uma catástrofe ambulante, a mancha de óleo sobre o Pacífico Norte, o trem descarrilhado indo pra lugar algum, a agulha sem ponta nas veias de um puta triste.

Ouvimos a mesma música tantas e tantas vezes que ela ecoou na minha cabeça e se alojou nos meus pensamentos como se não fosse forasteira. Mesmo essa estranha no ninho tinha uma capacidade maior de se adaptar do que seu próprio hospedeiro, inapto por natureza, ranzinza por opção. Sentamos no mato à beira do final da noite e minha cabeça era uma bagunça sem fim. O explosivo som de uma chuva de chumbo sobre um teto de cristal, meus pensamentos me sufocando no meu próprio inferno pessoal de asfalto, aço, vidro e má índole, a cidade disposta à minha frente à meus pés imersa no mais absoluto silêncio de uma noite fria. Mesmo a música eu já mal podia ouvir.

Foi quando o negro do céu cessado apenas pelo brilho branco das estrelas foi tomando tons de azul escuro sólido, cobalto, ciano e turquesa. Até a mais berrante magenta, o mais intenso laranja, o vermelho escarlate, e o alegre amarelo que tomou o horizonte e desenhou a silhueta negra dos arranha-céus, a espinha dorsal de um monstro cinza de concreto. O imenso deserto onde me senti sozinho por todos esses anos, o lugar de onde eu mais quis fugir, o pesadelo onde por mais que eu tente não posso correr.

E então silêncio. Apenas música.

E depois de muito tempo eu me senti capaz de me erguer sem me despedaçar como se os primeiros raios do sol fossem uma espécie de exorcismo, como se a nossa embriaguez fosse uma celebração, uma marca de luta onde vencemos quem nós um dia fomos, quem nós não queremos mais ser. Quis trocar meu par de algemas por um par de sapatos e correr até onde minhas pernas pudessem me levar antes de se partirem. Quis respirar o ar sem fumaça e sorrir diante da infinita possibilidade de dividir os terrores noturnos, as pilhas de planos que não deram certo, os pensamentos que todo mundo parece tentar evitar e compartilhar das mentes e do afago dos atravessadores da noite. As infinitas caminhadas no meio da noite, os infinitos desejos em manhãs de Natal e noites de Ano Novo.

O infinito que fomos nós mesmo que por uma fração de segundo. E eu fui parte disso.

Isso muda tudo mesmo depois de irmos dormir quando todos já acordaram, mesmo depois que a vida continua com sua desgastante monotonia. Mesmo quando seguirmos reféns da nossa rotina e dos demônios que nos aguardam a cada novo dia. Mesmo que eu ainda seja um saco de ossos, ira e ressentimento ainda há espaço para algo a mais, ainda há uma luz acesa em algum lugar esperando para ser encontrada mesmo que eu ainda precise ter algo para odiar. As coisas são como elas são e não há muito que possamos fazer sobre isso, mas nós podemos ser mais do que aquilo que vemos a cada manhã que nos olhamos no reflexo do espelho.

E mesmo que muitos dias não sejam tão bons e momentos como esse sejam cada vez mais raros hoje, o universo que compreende cada indivíduo ainda é algo que ninguém pode negar e, infelizmente, nem todos pode compreender. E se por uma pequena chance eu me permitir escapar, nenhum fantasma poderá me encontrar e me assombrar de novo já que só aceitamos o amor que acreditamos merecer.

E essa possibilidade é algo que ninguém pode tirar de mim.

Por isso, obrigado.



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