sexta-feira, 16 de outubro de 2015

So(m)bras de Outubro

É Outubro de novo. E eu estou escrevendo outra carta que você nunca vai ler esperando que seja a última, mas sabendo que não deve ser. Mas tudo bem. Essa será a mais vazia de todas elas pois já não sei mais o que dizer. Já me faltam palavras, já me faltam maneiras de descrever o que tem se passado desde que você saiu da minha vida.

Eu sempre achei que esse sentimento fosse passar, sempre achei que com o tempo eu fosse esquecer, deixar de pensar isso. No primeiro ano, choraria como se estivesse revivendo aquilo tudo de novo. No segundo, repetiria numa intensidade menor. No terceiro, relembraria sem lágrimas e sem dor, apenas saudade. Acreditava que no quarto já deixaria a data passar batida, que eu nem lembraria. Eu jamais imaginaria que no oitavo ano eu ainda me sentiria tão mal quanto me sinto agora, aqui, escrevendo essas palavras. E posso te dizer que curiosamente, não é tristeza o que eu sinto.

É complicado. É uma mistura de angústia, raiva e saudade. Você me faz muita falta, mas sobretudo, a pessoa que eu era me faz muita falta. Por mais que eu deteste quem eu fui, eu era mais feliz sendo aquela pessoa. Eu não pensava demais, eu tinha cicatrizes a menos e fôlego a mais. Eu sei que saberia quais palavras escolher se estivesse aqui hoje, sei que me impediria de entrar em diversas enrascadas, que me ajudaria a sair de algumas outras e que pelo menos estaria lá para dizer que me avisou na maioria delas.

Será que você sabe o quanto tua sombra tem moldado aquilo que me restou pra ser?

Eu ainda me pego pensando em você. Na verdade, o tempo todo você está comigo mesmo quando não é Outubro. Você está espalhado por todas as coisas que eu escrevo aqui ou nos rodapés de caderno, nos cupons fiscais amassados, nas folhas de guardanapo dos bares, no verso das provas da faculdade. Eu ainda te ouço nas músicas que eu escuto e te enxergo nos filmes que assisto e nos livros que leio.

Te imagino calçando os chinelos pra ir comigo comprar pão na padaria num sábado de manhã. Vejo você no quintal brincando com os cachorros ou no quarto jogando videogame. Te vejo correndo pela rua e abrindo o tampão do dedão do pé jogando futebol no asfalto escaldante. Queria lembrar de mim mesmo dessa maneira, mas só me enxergo quatro dias depois do funeral voltando pra casa sozinho debaixo de chuva e sol fazendo o máximo possível pra não chorar. Hoje eu já não consigo mais. Você acharia irônico sabendo o quão fresco e chorão eu já fui.

É isso que você tirou de mim no dia em que eu te vi naquele caixão. É por isso que tem dias que eu te odeio mais do que te amo. Sua perda me obrigou a ser alguém que eu nunca quis ser e de quem não me orgulho. E o pior de tudo é ter feito uma promessa que eu nunca conseguiria cumprir. Aquela de viver tudo aquilo que você não teve tempo. Eu só consigo pensar na ironia do destino pois eu tenho certeza de que você gostaria de estar aqui agora enquanto eu não gosto. A certeza de que você merecia a vida que hoje eu desdenho. Você não tinha o direito de tomar meu lugar naquele caixão bem como eu não tinha o direito de ficar com o teu aqui em vida.

Eu me odeio pelo fato de saber que você é quem deveria estar aqui vivendo a vida que eu muitas vezes não quero viver. Porque sei que não voltaria frustrado para casa por ter chegado inteiro quando desejou profundamente que um motorista bêbado te acertasse na calçada ou que um assaltante com o dedo nervoso no gatilho trombasse com você pela rua. Eu sei que você não pensava nesse tipo de coisa. Você era um rapaz normal, saudável, alegre.

E ultimamente, tenho pensado muito numa saída de emergência, mas só como uma ideia distante, só quando eu não suportar mais respirar a fumaça desse incêndio no teatro chamado vida. Mas a ideia de que eu jamais te encontraria se eu fizesse é atormentadora. Pois se existe um céu, eu sei que você está lá, mas não tenho certeza se é pra lá que eu vou quando minha hora chegar. Mas também não me vejo no inferno. Mesmo depois da vida, não pareço me encaixar em lugar algum.

Naquele Outubro, você foi embora e me tirou o direito de viver uma vida vazia, sem significado ou propósito. Você tirou de mim o direito de não ter ambição alguma, de não amar o fato de acordar respirando todos os dias. Você me deu esse sentimento de culpa por não ser o melhor que eu poderia ser, por não ter todas as coisas que poderia ter e de não alcançar a plenitude que eu sei que você alcançaria em meu lugar. Mas hoje, oito anos depois eu te exonero da posição de guia, da função de me orientar, da responsabilidade de ser o modelo do que eu quero seguir. Te tiro o fardo de ter que saber que eu fracassei porque você não estava mais lá. Nunca foi sua culpa. A culpa foi toda minha, o tempo todo. É hora de seguir em frente.

Eu vou te esquecer.

Eu te amo, mas eu preciso. É a única maneira da minha vida continuar. E ela vai continuar de um jeitou ou de outro.

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