terça-feira, 28 de julho de 2015

Tinta Lavável

Eu constantemente tenho esse sonho com uma enorme casa vazia onde as lâmpadas tem uma luz fraca e o piso estala e se solta sob meus pés enquanto eu ando. Paredes manchadas e mofo se espalhando por todo lugar, móveis cobertos com plástico e um teto com goteiras. Mas é a janela que me fascina sempre: no lugar de grandes vitrais, espelhos onde não é a verdade que é refletida, mas sim uma versão mais limpa, bela e aconchegante. No reflexo, estou sempre bem vestido, a casa está reformada, bem iluminada e decorada. Todos os móveis estão novos e não há mais mofo, goteiras ou piso solto.

Tudo o que você enxerga quando tenta olhar para fora é exatamente aquilo que queria que existisse do lado de dentro. E acredito que isso reflete toda uma maneira de se enxergar o mundo.

Estamos nos decompondo, apodrecendo a cada dente de leite que perdemos, a cada pedaço da nossa inocência que vendemos à pornografia e à noção de grandeza que nos fizeram comprar. Talvez muitos de nós não sejamos incapazes de enxergar a realidade do outro lado da janela, estamos atados à falsa noção de que somos exatamente aquela versão melhorada de nós que vemos ao olhar no espelho. E nós estamos apaixonados por ela pois é tudo que podemos ver.

E esse é um daqueles textos em que você vai certamente enxergar alguém que conhece, mas jamais será você o próprio objeto o que me faz correr o risco de ser um grande hipócrita ou um tremendo visionário, provavelmente mais o primeiro do que o segundo.

Nós fomos corrompidos pelo amor próprio, pelo narcisismo do consumo, pelas promessas de estabilidade e pela falsa ideia de quem somos e quem queremos ser. Nos tornamos egocêntricos de mente fechada que não são capazes de ver mais daquilo que lhe interessa. E nesses dias onde vemos nada mais do que nós mesmos, o amor tornou-se um ato de extrema subversão punido com severidade pelos dogmas de uma nova era onde ninguém é mais importante do que você.

Eles não dizem isso nos filmes ou nos livros, mas você vai perder as contas de quantas vezes vai se mutilar metaforicamente ou não na tentativa de ser algo que outra pessoa deseja evidentemente sem sucesso. Eles nunca te dizem que você  terá de vestir um sorriso que não é seu, um traje de social desconfortável para que todo mundo te aceite e ninguém vai se opor a isso mesmo que estejam tão desconfortáveis quanto você.

E você vai descobrir que existem muitas maneiras diferentes de odiar a si mesmo.

Eles nunca te disseram que você vai se enfurecer e esmurrar as paredes antes de desabar em lágrimas ao tentar se masturbar debaixo do chuveiro e não conseguir porque subitamente aquilo lhe parece errado. Ou como você vai preencher cada folha de um caderno velho com o nome de alguém que não existe mais como um mendigo que atira a última moeda numa fonte seca pedindo por abrigo. Não há abrigo nenhum quando o papel acaba e você começa a escrever nomes nas paredes da sala de jantar desejando ter de volta qualquer coisa que você de fato jamais teve.

Todos sabem, mas ninguém te diz que a sua opinião é a que menos importa mesmo quando se trata da sua própria vida.

E quando você perceber, todos à tua volta terão erguido trincheiras com arame farpado e estarão escondidos nelas mesmo jurando que não tem medo de nada. E quando menos esperar verá que todos se encantaram por sua própria imagem no espelho e pintaram as paredes com tinta lavável para que nenhum nome permaneça lá por mais tempo do que o planejado e ninguém mais amará ninguém.

Ninguém amará você.

E todos os sonhos com o porto se desmancharão como papel na chuva e você se verá a deriva num mar de mágoa, fúria e ressentimento. E mesmo que se isole temerá que sua falta não seja notada, mas também viverá a paradoxa sensação de não querer que alguém perceba como num baile onde você não quer dançar, mas deseja um par para ter a oportunidade de lhe dizer não. E quando estiver enfurecido você vai querer deixar de viver, mas vai continuar pois sabe que isso seria um favor para muita gente. E quando se sentir cansado, tentará desistir, mas fracassará pois ainda alimenta um fogo revolucionário que existe dentro de você. No final, apenas desejará o chão do convés e a água da chuva. E desejará ficar lá até o dia em que não mais o fará. Pois amamos pessoas até que simplesmente não amamos mais e isso serve para nós mesmos.

Ainda há tanta coisa para comprar e tantos programas para assistir que não torna-se surpresa a descartabilidade humana. Estamos em uma decadência tão grande que valemos menos que as coisas que nós mesmos inventamos. Nos tornamos reféns de toda nossa tecnologia e da nossa indiferença com tudo e com todos. Hoje somos pratos num menu, produtos numa prateleira, itens de um inventário, números de um catálogo onde todo o universo que é você resume-se a um preço e uma descrição de setenta caracteres.

E então aceitará que é como todos os outros e velejará para casa conformado e jamais conversará sobre isso pois, mesmo que as pessoas entendam, você tem medo do que pode acontecer. Adapte-se ou morra, compre duas latas de tinta lavável e vista seu melhor traje desconfortável pois o amor próprio também pode ser seu quando uma palavra é dita tantas vezes que acaba se tornando verdade.

Contemple o mundo que criamos diante a ponta afiada de uma lâmina polida pela casualidade. Aceite-a como amiga. Vai ser fácil depois que aprender que ninguém de fato é. E se todo mundo faz, não pode ser errado, certo?

Diga que é como todos os outros. E uma hora, você vai se convencer disso.

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