sábado, 17 de janeiro de 2015

Éramos Três

Essa noite sonhei com você. Há muito tempo que não te encontrava em meus terrores noturnos, há muito já quase esquecia seu rosto. No sonho, éramos três, sombras do que já fomos. Os mesmos três escondidos da chuva sob a sombra da capela. Os mesmos três bêbados tarde da noite no fundo do quintal. Mas era diferente.

Foi numa estação de trem que eu te vi, entre centenas de faces anônimas, borrões de tinta numa tela ordinária. Mas o seu rosto me vem tão claro quanto a luz do dia. No sonho, nós dois éramos quase adultos - legalmente homens - como de fato somos em vida. Você era um garoto como quando na última vez que te vi, com lábios e olhos colados num repouso sublime. Como quando não fiquei para ver a primeira pá despejar terra vermelha sobre o tampo perolado do caixão.

Estávamos nos despedindo, você entrava num trem enquanto assistíamos você partir, como foi de fato. Nós, as duas hastes que nunca mais conseguiram manter esse tripé no mesmo lugar depois que te perdemos. Foi então que todas as luzes se apagaram e toda a estação ficou entregue à escuridão. Só enxergava o pouco que a luz do sol que entrava pelas laterais da plataforma me permitiam ver. E vi você, dentro da composição que estacionou por falta de energia, assustado como um garoto que era.

Corri até chegar à sua porta. Usei toda a força que tinha e que não tinha para tentar abri-la, sem sucesso. Como se soubesse que invadir o mausoléu furtivamente com o número de sua quadra e sua cova e cavar a noite toda para abrir o seu caixão não fosse te trazer de volta. Como uma mensagem que nada que eu pudesse fazer te traria de volta. Nem hoje, nem nunca. Nem mesmo num sonho, eu fui capaz de não te deixar ir. E nem fui capaz de te fazer ficar.

Mas na verdade, eu quis abrir a porta para entrar, e não pra te tirar de lá. Para ir embora, pra onde quer que aqueles trilhos nos levassem. No egoísmo de deixá-lo para trás sem nenhum de nós dois.

E por mais que eu tente, ainda não consigo entender o que meu sonho quis dizer. Não entendo o motivo do trem ter parado e me dado a oportunidade de tentar - em vão - abrir a porta e empreender viagem contigo.

E tudo isso me fez reviver o ano mais difícil da minha vida e repensar quase todas as decisões. E, como sempre, imaginar como seria se você ainda estivesse aqui, segurando esse tripé que éramos nós.

Mas você não está.

Nós éramos três. Hoje já nem sei mais.

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