domingo, 4 de janeiro de 2015

Luz do Sol

Eu convenci a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Nem apenas uma vez que fosse. Mas nos últimos vinte dias, um conjunto de palavras ganhou força dentro da minha cabeça e tem implorado para sair desde então. Eu escrevo a maioria dos textos, mas tem alguns que eu só digito. Eles já existem e esperam que eu lhes dê vida em algum momento. Eu tenho essa facilidade de encontrar as palavras certas quando já é tarde demais. E esse é um desses textos.

Nunca quis isso. Nem o começo, nem o final. Eu estive apagado por muito tempo, eu estive submerso, quase vivo. Na época, eu não queria viver nada disso que eu vivi no último ano. Mas numa manhã quente de sábado, com o sol brilhando forte e preenchendo o quarto com calor e uma luz amarelada eu resolvi me permitir enquanto te ouvia respirar. E quando você foi embora, lembro-me de parar na esquina e te ver andando enquanto seus passos marcavam o ritmo de uma música no fone de ouvido, uma dança de graça e naturalidade. Fiquei lá por minutos, até te perder de vista e um pouco mais. Seis meses se passaram enquanto eu via você desaparecendo, um passo de cada vez, um pé na frente do outro. Suando debaixo do sol quente, querendo correr e te alcançar tendo me sobrado fôlego o bastante pra te dizer algo que nem eu sabia o que era. Era a felicidade em suas cores mais puras.

Vou passar por mais um ano e outros depois dele. Uma enxurrada de anos novos e manhãs de Janeiro vão se acumular na minha vida entre mais erros que acertos, mas salvei um espaço especial para guardar aquele sábado, há um ano atrás. Como quando a gente guarda aquela camisa velha e encardida que já não serve mais, mas que significou tanto que não há maneira de apenas jogá-la fora, mesmo que quiséssemos. Como aquele cachorro velho que a gente nunca conseguiu sacrificar por amar demais. Assim como guardo cartas, guardo presentes, guardo textos e fotos, memórias que eu sei que só vão me torturar mais sabendo que nada disso vai voltar. Mas eu tenho medo de me esquecer de qualquer coisa, embora muitas vezes eu queira.

Me lembro, ainda, de tantas outras coisas. Promessas escritas e embrulhadas em papel amassado, enroladas por linha de costura vermelha. Segredos e músicas cantadas no pé do ouvido. A melodia que tocava quando você abria a boca para dizer qualquer coisa, por mais estúpida que fosse. Eu guardo tudo com carinho e pesar ao mesmo tempo. Oceanos gélidos de lembranças doces. E ainda me sento na frente do mar para ver as ondas se quebrando nas pedras, sabendo que a água é fria e agitada demais para que eu possa entrar. Como aquele filme que a gente assiste várias vezes tentando convencer a si mesmo que dessa vez vai ter um final feliz.

Esquecer nunca fez sentido pra mim, nem antes e nem agora. Simplesmente não funciona comigo, e ás vezes me pego perguntando se eu gostaria de esquecer se pudesse. Pois, afinal de contas, tornaria tudo tão mais fácil, tão mais simples. Pra mim, nada e nem ninguém nunca foi um rabisco a lápis no rodapé de um livro que a gente apaga com borracha quando devolve pra biblioteca. Sempre escrevi as páginas da minha vida com tinta preta e com bastante força quase rasgando cada página de uma bíblia que fica aberta nos salmos na minha casa. E agora você entende como ter uma memória como a minha pode ser uma desvantagem.

De repente percebi que perdi minhas cores, pelo menos para você. Meu aço enferrujou e se tornou quebradiço, meu assoalho de madeira apodreceu e passou a se esfarelar sob seus pés. Meus livros foram tomados pelo bolor e pelas traças. Minhas cores desbotaram como em fotos velhas que a gente guarda sem nem se lembrar quem são as pessoas que nela aparecem. A sombra de algo que um dia já foi. Passei tempo demais debaixo do sol te vendo caminhar pra casa. E todos os sonhos deixados muito tempo sob a luz do sol tendem a desaparecer cedo ou tarde.

Todos os cantos dessa cidade me fazem lembrar, todas as músicas, todas as cores, todos os filmes na TV.  O bairro que você mora. O bairro em que você morava. Uma padaria que ainda está à venda desde a época que eu te acompanhava da faculdade até em casa tarde da noite sem medo de morrer ou ser estuprado. E é absolutamente tudo. Ás vezes acordo com meu ronco e você não está lá para reclamar. Ás vezes sonho que acordo na sua cama. E eu tenho andado por aí com os olhos no chão com medo de te encontrar na rua. E ás vezes eu até gostaria de te encontrar e ter algo para contar. Gostaria que estivesse mais gordo, barbado e sem cabelo para que não me reconhecesse. Mas eu nunca encontro, mesmo passando pelos mesmos lugares que passava quando estávamos juntos. É como se estivesse perseguindo seu fantasma com medo de encontrar.

Aqueles discos soam ainda mais tristes, como se na época fossem presságios do que significariam pra mim um dia. E faço questão de manter tudo na maior desordem possível porque sei que você gostaria que tudo estivesse arrumado. E tenho fumado mais porque sei que você odeia. Tenho reclamado mais do que antes porque te irritava. Tenho estragado mais piadas explicando elas depois que todo mundo já entendeu porque se você estivesse aqui ficaria com raiva. Tenho tentado te odiar sem sucesso há um bom tempo porque o caminho do ódio é sempre mais fácil. Destruir sempre foi mais fácil do que construir. Efeitos colaterais de tantos dias memoráveis, da perfeita simetria de corpos que se encontram no escuro sem precisar de um mapa, frases bobas em línguas de sinais e outros dias de eternas discussões sobre cafés da manhã, toalhas de mesa e nomes de filhos que nunca teremos. O buraco por onde sai o tiro é quase sempre maior do que aquele que ele deixa quando entra e o buraco que você deixou vai precisar de muito mais do que areia ou cascalho pra cobrir.

Dias como esses nunca foram e nem serão de graça. Eles cobram seu preço cedo ou tarde, das maneiras mais diferentes possíveis. Mas eu pagaria quantas vezes eu precisasse pra poder guardá-los naquele espaço que eu salvei. Sou o único que sei pelo que eu passei e sinceramente não espero que tenha passado por metade disso. Mas estou melhor a cada dia. Pois mesmo agora, o sol da manhã de Janeiro me traz uma estranha felicidade possível somente nos raros verões onde a gente acredita que tudo é possível. Um souvenir de como é bonito não enxergar nada além do lado bom das coisas. Hoje eu me amo mais ou pelo menos me odeio menos do que há um ano, o que era quase nada se comparado há uns trinta e cinco dias atrás.

Nem mesmo agora tenho certeza se eu realmente quero, devo ou posso dizer tudo isso pois eu convenci a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Nem apenas uma vez que fosse. Mas eu precisava te agradecer por ter me dado tanto do seu tempo, por ter aberto a porta da sua casa, por ter me deixado brincar com seus cachorros enquanto fumava no quintal. Por ter me estendido a mão quando eu precisei, embora eu não tenha agarrado nela firme o bastante. Por ter me feito olhar pra trás tantas vezes saindo da sua casa, por querer correr até você tantas outras vezes durante a madrugada só pra te ouvir dizer uma frase de três palavras. Por não ter me dado motivos para não querer ouvi-las. Por ter me aturado esse tempo todo. Por ter sido a última pessoa em sã consciência a acreditar em mim. Obrigado.

Você nunca foi do tipo que precisou bater na madeira, e espero que nunca seja. E espero que eu também deixe de precisar um dia. Quem sabe numa dessas manhãs de verão.

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