quinta-feira, 25 de julho de 2013

Gordo

Eu tinha dezesseis quando o Gordo me contratou.

Ele tinha uma oficina mecânica e precisava de um novo ajudante que viria a ser eu. Ele era um cabra rústico, homem à moda antiga: enorme, de feições grosseiras, barbudo e cara de poucos amigos, o que contrastava com seu jeito receptivo e ótimo senso de humor.

O Gordo me ensinou muitas coisas, dentro e fora do ofício, a segunda melhor lição que ele me ensinou foi no meu primeiro dia de trabalho:

"Nunca, sob hipótese alguma, mexa com o ego de um homem, com seu dinheiro ou com sua família. Se aprender a respeitar isso, vamos nos dar bem." - Abriu seu largo sorriso amarelo o proprietário da oficina.

Ele deveria ter uns quarenta e poucos anos e era casado com uma moça muito mais jovem. Uma loira dessas de parar o trânsito. Era tão gostosa que fazia todos pensar o que diabos ela estaria fazendo com um velho barrigudo de meia idade. Na oficina, diziam que ela era apenas uma caça dotes, só queria o dinheiro do patrão.

Quatorze meses depois de ter entrado naquela oficina pela primeira vez, Gordo me chamou para conversar. Ele dizia que estaria fazendo uma viagem importante na Sexta Feira e confiou a mim a tarefa de abrir a oficina no sábado. Deu-me um molho com as cópias das chaves das duas portas da frente, dos cadeados dos fundos, do escritório e até mesmo da sua casa. Ele me disse que voltaria na segunda e que seria tranquilo o dia no sábado.

Fiquei feliz pelo voto de confiança e fiz minha parte. No sábado, abrimos a oficina, e trabalhamos como em qualquer outro dia. Minha surpresa mesmo foi na Segunda Feira.

Gordo não apareceu no trabalho.

E como eu já disse, o cara era um cabra macho à moda antiga, trabalhava no frio, na chuva, doente... Até quando tinha morte na família ele não deixava de trabalhar. Só salvava os Domingos para pescar ou assistir os jogos do Palmeiras.

Comecei a me preocupar quando ele não atendia o telefone. A esposa gostosa também não tinha aparecido. Resolvi passar na casa dele.

Quando cheguei lá, notei que seu carro ainda estava na garagem. Interfonei algumas vezes, chamei pelo seu "nome". Pensei em ir embora, mas senti que alguma coisa estava errada. Deslizei a mão pelos bolsos, procurei o molho de chaves que ele deixou comigo. Experimentei uma por uma, até encontrar aquela que serviria no portão. Encontrei e abri.

Passei pela garagem chamando pelo seu nome. A porta da sala estava destrancada e ao abrí-la, foi surpreendido por um cheiro forte. Uma mistura de qualquer merda queimada com carniça. Aquele cheiro que tem o sangue quando seca.

Percorri a casa procurando pelo chefe, chamando-lhe sem resposta. Até chegar ao seu quarto onde encontrei a porta entreaberta. Empurrei. Ela abriu-se lentamente rangendo para me mostrar uma das cenas que eu queria esquecer.

No sábado, quando saía de viagem, Gordo recebeu uma ligação: a viagem estava cancelada. Voltou pra casa no sábado mesmo. Ele ouviu alguma coisa no quarto. Aproximou-se e abriu só uma fresta da porta, muito pouco para ser notado, o bastante para ver sua esposa cavalgando sobre o vizinho.

Gordo tomou-se pela fúria, mas ao mesmo tempo, por uma serenidade invejável. Caminhou até o quarto de pesca, passou a mão na espingarda, carregou com três cartuchos e voltou pro quarto.

Abriu a porta e deu o maior susto da vida do casal de amantes. A loira saltou de cima do vizinho, cobriu-se com o lençol e ensaiou dizer um esfarrapado "Não é isso que você está pensando", mas não teve tempo. Gordo mirou a espingarda no amante, ainda deitado na cama, parecendo não entender o que estava acontecendo. Apenas um pequeno puxão no gatilho, sentiu o recuo, o som ensurdecedor do disparo, o ar tomado pela fumaça e pelo cheiro de pólvora. O frenesi assassino dele era tão grande que escutava somente um zunido que abafava os gritos histéricos de sua mulher.

"Pumpeou" a espingarda, o cartucho deflagrado cai sobre o tapete envolvido em fumaça branca, uma nova munição entra na câmara e o cano aponta para a cabeça da esposa que agora pede perdão ajoelhada desnuda. Ele desfere um chute que a lança para o canto antes de disparar de novo, pintando as paredes do quarto com massa encefálica e mechas de cabelo loiro ensanguentado ainda presos ao couro cabeludo, ainda preso à pedaços do crânio.

Ele se senta na cama, e lá fica por alguns minutos, talvez horas. Até que percebe o que fez, se arrepende, e engatilha de novo a espingarda repetindo o macabro ciclo: cartucho vazio sai - cartucho cheio entra. O cano no queixo, o dedo no gatilho e lágrimas nos olhos. Agora o quarto tem um novo papel de parede capaz de chocar qualquer decorador.

Eu tinha dezessete quando entrei naquele quarto. A espingarda calibre 12 no chão suja pelo sangue seco de Gordo, morto sentado na cama. Seu corpo desfalecido, seu cérebro colado no Teto e o que sobrou do seu rosto parecia dependurar-se de sua cabeça baixa. Sua esposa parecia ter o crânio virado pelo avesso e o vizinho tinha um buraco no peito tão grande que eu poderia enfiar meu punho através dele. Todo quarto envolto em sangue, fedendo a carniça e pólvora onde moscas faziam a festa. A cena que seria facilmente confundida com um abatedouro foi a mais pura essência do que é o ser humano: brutal, selvagem, inescrupuloso.

Polícia. Perícia. Depoimentos. Semanas depois, saí da tal oficina, não conseguia mais trabalhar lá. Só conseguia pensar na melhor lição que Gordo me ensinou: não confie em ninguém. No final, somos todos animais e a selva não é tão pior quanto um quarto de dormir - ou um abatedouro.

Por hoje chega, preciso dormir um pouco.

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