quinta-feira, 16 de outubro de 2014

(Eu)logia

Eu nunca precisaria de um calendário para saber que é Outubro. Eu sinto nas minhas entranhas, é algo extremamente visceral. Deve ser o calor e a péssima mudança para o horário de verão. Os últimos sete Outubros foram iguais: faz um calor desgraçado, eu tenho essa sensação de vazio como se tivesse perdido alguma coisa. E no final do mês, sempre vem um temporal. E eu sempre acabo tomando chuva.

E sempre acabo escrevendo numa madrugada quente.

Se estivesse aqui hoje, você seria a única pessoa com quem eu poderia falar sobre todas as coisas. Tudo aquilo que já há algum tempo eu não tenho me permitido dizer a ninguém. E ás vezes eu fantasio que eu ainda posso falar contigo. Eu converso sozinho de madrugada andando pelo apartamento, tentando me convencer que você está sentado na sala, vendo os gols do Santos e ouvindo tudo aquilo que eu tenho pra dizer. É o que me impede de entrar em colapso, é o único jeito de não me sentir tão solitário.

Eu daria qualquer coisa pra voltar àquele verão onde éramos nós três sentados na frente da capela, escondidos da chuva conversando sobre todas as garotas que nunca conseguiríamos. Rindo da própria tragédia, mas de maneira doce e descontraída, nunca as coisas foram nebulosas quando você estava lá. Também ríamos do meu corte de cabelo - no começo eu não ria, é verdade. E eu posso imaginar de maneira perfeita você bêbado ouvindo uma música idiota que tocava na rádio dizendo o quanto ela era bonita. Foi a única que eu consegui te ensinar a tocar. E eu lembro dela até hoje.

Eu queria, no mínimo, saber dirigir. Então poderia atravessar a estrada no meio da madrugada, ouvindo todas essas músicas que fazem sentido pra mim, tentando ficar acordado até chegar de manhã na casa da minha mãe. Lá eu poderia sentar na mesa da cozinha dela de onde poderia ver a imagem de São Jorge montado no seu cavalo no altar depois do corredor escuro e imaginar como seria se eu acreditasse que sua espada pode me defender quando eu precisar. E poderia dizer pra minha mãe todas as coisas que eu tenho guardadas aqui dentro.

Eu nunca me senti tão solitário apesar de nunca mais ter estado sozinho. Mas pareço estar isolado do resto do mundo. Me sinto um intruso o tempo todo, em todos os lugares. É como se eu não pertencesse a lugar algum, de fato. Eu ainda sinto que você está mais próximo de mim do que qualquer pessoa que ainda respira, do que qualquer voz que eu ouça ou qualquer coração que ainda bate enjaulado no peito de cada um que parece cantar sublime no mais perfeito tom no coro dos contentes.

É quando eu sinto aquele nó se instaurar no fundo do garganta trazendo a boca do estômago até a minha língua.

Você teria se saído bem, muito melhor do que o resto de nós. E me machuca saber que eu nunca fui o amigo que você mereceu em vida. Nunca tive metade da tua sabedoria, um terço da tua paciência ou a mínima fração da sua cumplicidade.

E ninguém quer ouvir eu dizer que preferia ter sido eu.

Fantasmas tem me atormentado desde então por eu não conseguir viver por dois. Nem ao menos por mim eu tenho conseguido. Eu não consigo dormir, tenho fumado mais que deveria e comido menos do que poderia. Também não consigo perseguir meus objetivos por não saber quais são. Me sinto tão perdido quanto me sentia quando tínhamos quinze anos de idade e ríamos de você mijando na concha acústica. Eu estive lá no último ano. Ela não existe mais, foi soterrada para ampliarem a praça.

Sinto falta do quão estúpidos nós fomos. Não porque eu amadureci, mas é que, naquele tempo, eu tinha o direito de ser imbecil, mas o tempo cobra seu preço e todos tem me pressionado pra crescer de uma vez por todas. Mas aqui estou, desmoronando em lamentos para um morto que não pode mais me ouvir.

Também é difícil ouvir as outras pessoas contando histórias da juventude e sentir inveja por não ter vivido nada daquilo porque eu fiquei preso num ano que não acabou e me nego a aceitar que já se passou tanto tempo que todo mundo envelheceu, as coisas mudaram e as prioridades agora são outras. Mas eu passei a maior parte dos últimos sete anos trancado dentro de casa cumprindo minha promessa de odiar o mundo que arrancou de mim toda a minha ambição.

Estou cansado de sentir raiva de tudo. Estou cansado do constante sentimento de inadequação. E, principalmente, estou cansado das pessoas que acham que eu tenho controle sobre isso e posso parar assim que eu desejar. Ser uma pessoa "normal". Quando você morreu, isso era uma coisa boa. Hoje, ser diferente é moda, é hype, todo mundo gosta, exceto quando conhecem alguém que realmente não consegue se encaixar. Pois na vida real, não há romance algum em ser esquisito. Ninguém se importa e com certeza todo mundo vai te deixar pra trás se não conseguir acompanhar o fluxo das coisas. Ninguém quer ouvir um discurso triste de um derrotado, a não ser que ele seja um personagem de ficção.

Mas não, eu não desisti, ainda estou aqui, caminhando sobre essa linha amarela sem saber qual faixa eu devo seguir, sem saber qual direção tomar. Eu deixei o vento me levar pois não consigo tomar qualquer decisão sozinho pois aquele ano fodeu minha cabeça de todas as maneiras possíveis. Eu não consigo me olhar no espelho sem me envergonhar da comparação que insisto em fazer entre quem eu sou e quem eu imaginava que seria. Estou constantemente desapontado por não ser bom o bastante em absolutamente nada e não ter uma boa história pra contar.

Pelo menos em parte, aquele Outubro me matou junto com você. E eu não sei se me despeço de ti ou de todos os outros.

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