sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Enxoval

Ela desceu do trem com passos curtos. Parecia perdida na Estação, embora já estivesse lá outras tantas vezes. Dezesseis anos, na bolsa, um cartão com endereço onde tinha hora marcada. O resultado dos exames e um bolo de dinheiro equivalente a mais de seis meses do seu salário. Ela saiu da estação procurando o melhor caminho para chegar ao endereço.

O "consultório" ficava há poucas quadras do Largo da Concórdia. Era Setembro e ela podia ver a luz do sol por trás dos prédios do Brás numa tarde quente que deixava claro que o inverno estava acabando. A cada dia o frio de Julho e Agosto parecia mais distante.

A cada passo ela só podia sentir a sensação de culpa e medo pensando na conversa que teve com a irmã e o cunhado no dia anterior quando ela mostrou os exames. Sua mãe não sabia, nem poderia saber. Contar estava fora de questão. Era uma questão de garantir sua integridade física. A irmã mais velha era a única a quem podia recorrer. E seu cunhado - um bixeiro da Penha - eram seus confidentes então.

O pai ainda não sabia, e provavelmente nem iria saber. O cunhado chegou no dia anterior com um bolo de dinheiro, um cartão com um endereço e uma hora marcada. E disse que era uma alternativa, mas que ela fizesse o que achasse melhor com o dinheiro e com o cartão. Ele só não queria que ela fosse vítima do próprio destino, o que quer que acontecesse então, seria sua escolha.

E lá estava ela, sentada num banco do Largo da Concórdia no meio da tarde tentando tomar uma decisão. Conferiu de novo o bolo de dinheiro. Incontáveis cédulas enroladas num elástico em um formato cilíndrico. Ela não se lembrava de ter visto tanto dinheiro assim na vida. Pensou em tantas coisas poderia comprar. Todos os seus sonhos fúteis de consumo adolescente ou até mesmo como aquela grana poderia financiar um bom estudo. Agora, o dinheiro serviria para ela continuar tendo a mesma vida de sempre: a de uma adolescente da periferia paulistana, perdida meio ao caos suburbano imersa na miragem que o calor causava no concreto da metrópole.

Seria um crime assim tão grave não querer que sua vida se virasse de cabeça para baixo? As coisas nunca foram fáceis, agora seriam ainda mais complicadas. Seria possível que lhe apontassem dedos com julgamentos cruéis e insensatos? Poderia ela se condenar por tentar tomar controle da sua própria vida, ao menos uma vez?

Uma lágrima correu pelo seu rosto e evaporou ao tocar o chão quente. Percebeu que já amava uma pessoa que ela ainda nem conhecia.

Sua mãe ficou confusa ao chegar em casa e encontrar um enxoval de bebê completo sobre a cama do quarto da filha. Além de um berço bonito de madeira desses de qualidade que não mais se produzem. A filha lhe entregou o resto do dinheiro que ainda somava uma grande quantia perto do que entrava naquela casa humilde vindo do trabalho árduo das mulheres que ali residiam.

Ao invés do sermão ou surra, o abraço e a compreensão de mãe - que conhecia bem o peso de ser responsável por uma vida e a coragem necessária para tomar qualquer uma das decisões que a filha teve que tomar naquela tarde de Setembro. Coragem que só mulheres podem ter. Responsabilidade que nós homens tantas vezes nos negamos a assumir.

E é essa a coragem de quem escolhe (ou é escolhida) para gerar uma vida. Sabendo que suas vidas nunca mais serão as mesmas, travam uma guerra num campo de batalha que soldado algum jamais teve de entrar.

E se estamos aqui agora, é porque alguma delas já travou essa batalha e decidiu por nós. Mas principalmente, por elas.

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