terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Aquela DR de rotina

"Você não confia em mim?"

Respirei fundo, tomei meu tempo e senti a tempestade vindo antes de dizer que não. Mas não fiz por mal: ofender com a sinceridade não é nenhum crime imperdoável. Ao menos não deveria ser.

Me peguei horas depois, já pela manhã, olhando o café preto no fundo da xícara no balcão daquela mesma padaria. O noticiário da manhã trazendo as novas sobre a alta da inflação. A estufa de salgados embaçada pelo calor. O vapor quente subindo da xícara de café. Minha cabeça apoiada sobre meu punho esquerdo fechado e meu cotovelo sobre o balcão. Na minha frente, meu pequeno caderno de anotações aberto numa página em branco e minha mão direita com a caneta à postos. Tudo em ordem: eu estava pronto para produzir.

E nada
.
Angustiado, tive um dos meus surtos. Senti como se dezenas de insetos andassem dentro da minha cabeça e roubassem cada uma das minhas ideias. Eu podia sentir os filhos da puta comendo cada pensamento meu. Ouvia eles conspirando, rindo baixinho, fazendo planos. Suas perninhas nojentas sobre as minhas memórias. Resolvi dar cabeçadas no balcão até ter uma concussão. No chão de piso frio da padaria, eu caí convulsionando. Sangue saindo pelos ouvidos e espuma saindo pela boca. Debatendo-me feito peixe fora d'água. Apaguei olhando a hipnótica lâmpada florescente no teto que piscava intermitentemente já anunciando que deveria ser trocada. E foi a última coisa que vi. O triste retrato da falta de inspiração, que seria justificada como causa da morte no meu Atestado de Óbito horas depois. Na mesa de Autópsia, tive tempo pra falar comigo mesmo.

Eles fizeram um corte em formato de "Y" no meu peito para avaliar minhas tripas. Também serraram o topo da minha cabeça para pesar meu cérebro. Socaram tudo de volta e me enfiaram numa gaveta gelada. Mas antes, ainda durante a sutura, consegui me ouvir uma vez na vida - ou melhor, na morte.

Decidi sair da merda da gaveta e passear pelo morgue. Por não ser um morto pervertido, tratei de me cobrir com um lençol antes de sair por aí. Eu andava e sentia meus joelhos estalando. Minhas tripas se mexiam como se estivessem soltas lá dentro. Era como estar prestes a dar a maior cagada da sua vida, porém ela nunca vinha. Eu não respirava, mas sabia que se pudesse, quase morreria com o cheiro de formol. Minha cabeça parecia estar escorregando, a sutura estava se desfazendo aos poucos. Mas não senti dor nenhuma, afinal, já estava morto.

Caminhei com meus pés descalços castigados pelo chão frio do necrotério. Ainda arrastava a etiqueta de identificação amarrada no meu polegar direito. Sentia como se minha cabeça pendesse pro lado e sabia que, caso virasse um pouco ela para a esquerda, o topo da minha cabeça deslizaria suavemente e cairia no chão junto com meus miolos. Então eu andava tentando equilibrar toda aquela merda despencando de mim.  Tente imaginar e vai entender porque os zumbis andam desse jeito.

Saí do necrotério e tomei as ruas. Andei por horas, até chegar em casa. Já era noite quando minha esposa abriu a porta ao ouvir a campainha e se assustou comigo.

- Oi - Eu disse e sorri sem graça.

- Oi - Ela respondeu como quem não acredita no que vê.

- É tão ruim assim? - apontei meu rosto.

- Eu posso me acostumar.

- Eu posso entrar, está meio frio aqui fora. E eu to meio pelado.

- Ah! Claro, venha pra dentro - Ela me puxou pelo braço.

Lá dentro, pela primeira vez, pude me olhar no espelho. "Eu posso me acostumar", ela disse. Eu parecia 20 anos mais velho e pálido. Hematomas pretos na minha testa, minha pele rígida parecia que ia arrebentar a qualquer beliscão. Então foi isso que eu me tornei?

Tomei um banho, tentei consertar os pontos. Minha orelha caiu no chuveiro, prendi ela de volta na cabeça com um grampeador. Me vesti e encontrei ela na cozinha. Eu ainda enxugava os cabelos com a toalha, uma coisa que ela odiava. Eu sempre tinha essa mania de sair enxugando os cabelos pela casa e minha esposa ficava puta porque meu cabelo cai demais e o chão estava sempre repleto de fios de cabelo castanhos. Dessa vez, ela não me deu esporro, apenas ficou sentada na mesa tomando seu café e olhando para mim como quem não acreditava.

Afinal, não é todo dia que seu marido morre. Não é todo dia que seu marido morre e volta pra casa.

- Amor, me desculpe. - foi a coisa mais inteligente que eu pude pensar enquanto me sentava na mesa.

- Te desculpar pelo que?

- Por toda essa minha paranoia, por toda essa loucura. Eu deveria ter confiado em você desde o princípio.

- Querido, não se preocupe - ela estendeu os braços e segurou minhas mãos em cima da mesa - são coisas normais dentro um relacionamento.

- É que pra mim é muito difícil sabe? Depois de tudo que eu já passei... - Eu sei, eu sei, não precisa voltar lá. Já fizemos isso o bastante.

- Eu... eu preciso de um cigarro. - estiquei o braço e peguei um maço em cima do balcão. Também apanhei um cinzeiro.

- Quer café? - Ela ofereceu, no que me pareceu, apenas para dizer alguma coisa.

- Não, eu tô bem.

- Não, você não tá bem. Você tá morto Pedro.

- E qual o problema? Ainda posso fazer quase tudo que fazia quando estava vivo - acendi o cigarro, traguei fundo. Boa parte da fumaça saiu entre os pontos do meu peito.

- Tem certeza?

- Agora vai querer cismar só porque eu estou morto? Me poupe! - Percebi que não conseguia subir o tom de voz, eu falava quase sussurrando o tempo todo.

- Você fala disso como se não fosse nada!

- E não é! Eu vou ficar bem, só preciso de uma boa noite de sono!

- NÃO PORRA! VOCÊ TÁ MORTO!

Silêncio para entender o quão surreal é essa cena, afinal, não é todo dia que seu marido morto volta pra casa para discutir a relação.

- Que diferença faz? Me diz.

- Faz toda a diferença. - Ela subitamente ficou mais triste, mais serena.

- Já que eu estou morto mesmo, vamos abrir o jogo: eu sei que você tem um caso com aquele teu amigo do Rio.

- Você tá louco Pedro? O Renato é como um irmão pra mim!

- Sei. Um irmão que quer te comer. Fora aquele teu primo, o Wesley.

- Até meu primo Pedro? Ele é meu PRIMO!

- E daí? Todo mundo sabe que Deus fez as primas pra não comermos as irmãs!

- Que absurdo! Então quer dizer que você andava comendo as suas primas também?

- Sim, mas não enquanto estive casado com você!

- Amor, vou te dizer mais uma vez - ela segurava minhas mãos de novo - eu NUNCA te traí. Nunca tive um caso com ninguém.

- Eu imagino mesmo Gabriela, eu imagino...

- Porra cara, você morre e continua desconfiado de mim? O que eu fiz pra merecer isso meu Deus? - Ela cobriu o rosto com as duas mãos.

- E mesmo depois de eu morrer você continua mentindo!

- Porra, eu não estou mentindo!

- Mas não tem problema. Eu bem me lembro dos meus votos. O padre disse "Até que a Morte os Separe" lembra? Bem, eu já morri, então posso recuperar meu tempo perdido.

- Tempo perdido? - Ela fez cara de nojo - Que merda você tá falando?

- Sim, tempo perdido. Afinal, quando eu casei contigo era praticamente virgem. Não comi quase ninguém nessa vida. Pra quê? Pra morrer me debatendo no chão de uma padaria sem ter ao menos uma história de putaria pra contar pros parceiros no necrotério.

- Que escroto! Você não perdeu tempo coisa alguma. A gente tava casado e esse tempo todo você queria estar na putaria? Quem perdeu tempo fui eu.

- Perdeu coisa alguma meu amor...

- Meu amor é o caralho, fala assim com as suas nega! - Essa já me acertou bem no meio do saco.

- Todo mundo sabe que na época da faculdade você frequentava tudo quanto é festa de putarria e todo mundo sabe o que rolava nessa merda. Fui eu que perdi meu tempo! Agora vou aproveitar e curtir a vida - ou melhor - a morte!

- VOCÊ TÁ MORTO PEDRO! ESSA MERDA NÃO SOBE MAIS! - Segundo golpe no saco: já senti que não tinha como evitar o nocaute.

- Porra, não precisava apelar.

- Além do mais, eu nunca frequentei porra de festinha nenhuma. Eu tive que dar um duro danado pra me formar, além de estudar eu trabalhava dois períodos você não lembra? - realmente, eu me lembrava, mas...

- Mas eu sempre achei que...

- Achou errado! Vê se me respeita Pedro! Eu não sou qualquer biscate dessas por aí não. - Dedo na cara: só pra finalizar.

Eu já estava derrotado à essa altura, não dava pra falar mais nada. De repente percebi que todo aquele ciúme era infundado, toda aquela minha paranoia era minha insegurança falando mais alto. Então veio a Epifania.

- Sabe o que é Gabi? É que eu meio que tenho inveja de você.

- Inveja? Pera aí que essa é nova...

- Pois é... sempre me senti inferiorizado. Quando eu te conheci, você era a mais gostosa da turma, todo mundo queria te comer. Eu era só mais um garoto qualquer.

- Ah meu amor, de novo não... - Ela me abraçou, esbarrou na minha orelha grampeada que caiu no chão - Já conversamos sobre isso. Eu te amo, você sabe disso. Pra mim você é o melhor homem do mundo.

- Mas é complicado. Ás vezes sinto que você é boa demais pra mim e, em algum momento, vai notar isso e me trocar por um cara melhor.

Ela segurou meu rosto com firmeza e ternura. Senti meu pescoço estalar.

- Eu te amo Pedro, pra mim, não tem um cara melhor do que você. Se eu quisesse aquele monte de babões da época da faculdade, estaria com eles e não com você. - A resposta final seguida por um longo beijo foi mais eficaz do que uma dissertação de 12 páginas sobre os "Que"s, "Quem"s, "Como"s e "Porque"s.

Eu não pude dizer nada, apenas sorri e tentei me sentir melhor. Consegui dormir, finalmente. Mas só depois de mostrar pra ela que, mesmo depois de morto, subia sim. Até mais do que antes. O problema foi minha perna que enrijeceu-se e me impediu de continuar. Além dos pontos se abrindo e minha cabeça pendendo pro lado.

Acordei disposto no outro dia, nem parecia que eu tinha morrido. Minha auto estima estava melhor e resolvi voltar à padaria para tomar café da manhã.

Pedi ao portuga café com leite e pão com manteiga. Comi e escrevi de maneira voraz. O Noticiário da manhã anunciava que um corpo havia sido roubado do necrotério enquanto as pessoas me olhavam incrédulas. Foi quando ele se sentou ao meu lado.

- Pedro? É você? - disse o figurão com naipe de galã do meu lado direito.

Me virei pra ver quem era e reconheci Renato, o "Irmão" da minha mulher.

- Oi cara, quanto tempo! - Forcei um sorriso pra não ser inconveniente.

- Sim cara, bastante tempo.

- O que você tá fazendo em São Paulo? Você não trabalha no Rio?

- Sim, sim, vim pro casamento de uma prima minha.

- Entendi...

- Você tá meio morto cara, o que houve?

- Falta de inspiração, sabe como é né?

- Hmm, sei, perdi um tio assim. Que Deus o tenha.

- É, eu sinto muito. - Sinto porra nenhuma!

- Ah, mas isso já tem muito tempo também, foi na época da faculdade quando eu conheci a Gabriela.

- É mesmo? E como foi que vocês se conheceram?

- Ah, foi numa puta festa que fizemos na República onde eu morava. Foi do caralho, a gente sim sabia curtir...

Engasguei com o café, tropecei pra trás e o "tampão" do meu crânio caiu. Meu cérebro já começando a apodrecer se espalhou pelo piso frio. Morri pela segunda vez no chão daquela padaria. Olhando aquela lâmpada florescente que piscava, piscava, piscava....

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