quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Desconforto opcional

Ela me perguntou quais eram os meus planos. Eu ri e não soube responder. Não, eu não sigo planos, eu não estabeleço metas, eu não penso grande. É uma das coisas que eu não consigo fazer. Estou vivo a nos dessa maneira. O respirador que me mantém plugado nessa rede de erros chamada vida é o jogo do meu time no próximo Domingo, o exame no fim do trimestre, algo que eu combinei com alguém na semana que vem, o disco que sai no próximo mês. Eu não acho que isso seja mediocridade. Acho que é a maior de todas idiossincrasias: se ater a momentos breves. Foda-se a minha carreira, eu quero aprender a cantar aquela música do Frank Sinatra e ver o São Paulo campeão da Libertadores mais uma vez.

E eu acho já isso tremendamente ambicioso uma vez que eu sou o que sou: o que restou de cada convicção lascada a cada novo tropeço. O eterno estrangeiro preso dentro de um esqueleto que não é seu. Sem nada em comum com nada nem com ninguém esperando a tragédia/milagre que vai salvá-lo dele mesmo. Como se aquele salto que não prevê uma parada por uma rede de segurança fosse fazer de mim uma pessoa diferente quando minhas tripas se espalhassem pela calçada.

Eu odeio tantas coisas que para escrever uma lista eu precisaria derrubar a porra da floresta Amazônica.

Foi então que ela disse: "talvez ser assim seja uma opção sua".

A minha primeira reação foi de raiva. Eu quis virar a mesa sobre ela e socá-la até o osso do seu nariz sair pelo céu da boca e seus dentes balançarem como malabaristas em trapézios a cada movimento da cabeça. Mas não fiz isso, só tentei encontrar num canto da minha cabeça algum argumento simples que pudesse desmontar tamanho absurdo. Opção? Por quê caralhos alguém escolheria ser assim? É um passo bem curto entre o anseio pela resposta e o desespero mediante sua ausência. Você sabe que um cão arma um gatilho que é puxado e aciona um percursor. O percursor acerta a agulha que explode a espoleta. O propelente inflama, os gases dentro do estojo se expandem, o projétil é empurrado pelo cano. As raias se enchem de ar, fogo e pólvora queimada. O projétil deixa a arma para acertar algum alvo, mas você não vê nada disso.

O que você vê? Um filho da puta puxa um gatilho, um outro filho da puta cai morto no chão. Num momento, você está somente procurando uma resposta, no outro, decepcionado por não encontrar. É então que a tristeza se torna mágoa, ressentimento. A ira congelada esperando as condições certas de temperatura e pressão para te obrigar a fazer uma nova merda na sua vida. Dizer coisas das quais vai se arrepender e fazer coisas das quais vai se envergonhar. Levamos milhões de anos para descobrir a porcaria da roda, não me surpreende que alguns de nós ainda não aprendemos a lidar com as coisas que sentimos.

Entretanto, depois de um tempo remoendo-se com a possibilidade dela estar certa como um moleque chato que não quer brincar com seu carrinho de plástico vagabundo, mas também não quer emprestar para ninguém na creche. Minha insegurança é só minha. Não gosto dela, mas não vou dividir essa merda com ninguém. Os momentos que a gente se toca das coisas são os mais engraçados; quando você descobre que o seu terapeuta conhece uma amiga sua que sabe coisas que você só disse pra ele. Quando você descobre que a promessa de não contar sobre certas coisas só valia para um dos lados. Quando você percebe que metade dos imbecis na sua sala te olham com cara de nojo e você nem sabe porque. Quando você percebe que os 30 já estão mais perto do que os 20 e você não fez absolutamente merda nenhuma com a sua vida até agora. Quando os amigos que sobraram percebem que não, você não vai estar no próximo ano novo.

Eu sou o que sou por opção. Puta merda, como é difícil admitir isso. Pior que isso, só tentar entender porque eu tomei essa escolha e se ela foi consciente. Eu me sinto constantemente desconfortável. Do momento que eu acordo ao que eu vou dormir. Isso quando eu consigo dormir, tem dias em que não dá. E mesmo quando tenho a felicidade de cair no sono, acordo de pesadelos dos quais não me lembro. Eu só choro nos meus sonhos, não consigo fazer isso quando estou acordado mesmo quando eu quero muito. Absolutamente esvaziado de qualquer significado, eu não sinto que faço parte de qualquer coisa. É como se eu vivesse a vida por cima de camadas de filtros de celofane que me impedem de ver a verdadeira cor das coisas. Eu não tenho muito em comum com ninguém, me enganei em todas as vezes que acreditei que tinha.

E já não sei mais se o que ela disse é uma mentira. E não sei qual das duas possibilidades me desaponta mais.

Se eu desse replay apenas nos dias bons nos últimos dez anos, eu terminaria de assistir tudo antes do final desse ano. O último já foi há quase seis meses. E eu sinto falta de cada um deles. Eu sinto falta de pessoas com quem eu não falo já tem anos. Gente que caga e anda pra mim e eu não consigo entender porque me importo tanto.

Eu sou uma versão atualizada do meu pai. Eu acho que nunca amei nada na minha vida. O que é diferente de não amar ninguém. Não amar ninguém seria um problema mais fácil de superar.

ENFIM, por quê caralhos eu tomaria por livre iniciativa de maneira absolutamente espontânea a estúpida decisão de ser como eu sou?

Acho que é porque a fraqueza é confortável. E além disso, a adequação está diretamente ligada à castração de muita coisa. Qual a valor da felicidade se você precisa se mutilar para obtê-la? Se ela é um produto enlatado disponível numa limitada quantidade de cores e sabores, um punhado de comprimidos azuis que fazem as reações químicas certas acontecerem dentro da sua cabeça. Pastilhas de conformismo, drops de alegria. Você instala o aplicativo correto e aí sim pode sorrir. Descartabilidade em nome do ego.

Valeu, eu passo. É mais negócio perder o sono. E poder se odiar ainda é uma dádiva.

Se eu fosse outra pessoa completamente diferente, eu ainda estaria doente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário