terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Guadalupe

Ela agarrou a minha pilha de documentos como se fossem um pedaço de lixo, abriu um sorriso cínico e me pediu pra esperar na sala como quem queria voltar e não me encontrar mais lá. Até porque, não havia motivo nenhum para lá estar. Deixou a sala ao som da marcha do "Clec-Clec"do salto no piso.

Eu já não conseguia mais esconder minha frustração. Enquanto ela não voltava, minha ansiedade atacava com aqueles velhos tiques de coçar o nariz, ficar balançando a perna e mordendo os lábios e dobrando a língua dentro da boca. E nem sei porque, passei a pensar na Virgem de Guadalupe.

Nossa Senhora de Guadalupe, a Santa Padroeira do México. Eu não sou religioso, muito menos devoto da Virgem de Guadalupe ou qualquer outro santo, deus ou divindade. Sou, de fato, uma das pessoas mais céticas que eu conheço. Eu olhava pra fora vendo alunos indo e vindo, falando alto em grupos tendo conversas ao pé do ouvido ou agarrados em seus smartphones como se fossem a última coisa importante da Terra. Como que um deboche cruel o tempo todo, ou não. Eu tenho mania de perseguição com isso, sempre acho que toda a vida está tramando contra mim, mas eu tenho meus motivos.

Eu tinha uns dezessete anos de idade quando vi a notícia de que uma pessoa teria avistado a imagem da Virgem de Guadalupe no Sol. Dezenas de devotos já se reuniam em vigília, olhando o céu, com as mãos sobre as sobrancelhas tentando ver a imagem da Santa. Centenas alegam realmente terem visto, um milagre, um sinal dos tempos. No final do dia, dezenas haviam queimado as retinas e ficado cegos tentando enxergar a imagem da Santa. Se a viram, foi a última coisa que seus olhos tiveram contato nessa vida.

Foi então que fui sugado de volta para a sala. Ela voltava com o sapato tocando a mesma sinfonia fúnebre do "Clec-Clec" do sapato. Só pra me dizer que realmente eu estava lá sem motivo algum, que eu nunca entraria ali de novo da maneira que gostaria.

Atravessei o pátio mordido de raiva entre alunos e funcionários me sentindo um corpo estranho repelido pelo sistema imunológico de um organismo do qual eu nunca deveria fazer parte. Do qual eu nunca quis ser parte. Será que nunca quis mesmo?

Há cinco anos eu tento me convencer - como tento convencer todo mundo que me conhece - que uma série de infortúnios não só são minha responsabilidade, mas como também são uma escolha. Eu nunca fiz questão de atender uma série de requisitos que todo mundo sempre me pediu, nunca quis atender as expectativas que todos a minha volta tem de um rapaz de vinte e dois anos. Eu ainda não sei dirigir e não entro numa sala de aula há cinco anos. E "estou bem" assim, não vim aqui hoje para chorar e reclamar sobre como minha vida é trágica.

E por isso mesmo eu não entendi meu choro contido, preso na garganta no caminho de volta pra casa. Eu nunca quis isso, nunca me importei. Ou pelo menos me fiz acreditar que não, me tornei aparentemente "bom demais" para fazer parte de qualquer coisa que eu não conseguisse fazer parte, a velha retórica do "eu nem queria mesmo". E de certa forma, é uma mentira que se tornou verdade, eu tinha expectativa zero quanto a um monte de coisas, simplesmente não me via fazendo parte disso, não me via encaixando-me a esse quadro. Ainda não me vejo. E isso não me incomodava tanto assim. Mas foi quando eu cheguei perto e vi a oportunidade me escapar por entre os dedos como areia que aquilo realmente me bateu com força.

Sim, eu me importo. Sim, eu queria. Mesmo que por um mísero momento, eu acreditei. Como o fiel que procura a imagem da virgem cravada no Sol sem perceber que ele vai lhe cegar.

E então veio o maior de todos os deboches: a vida fazer todos acreditarem que eu tinha conseguido algo enquanto eu permanecia cético. E arrancar isso de mim quando eu passei a acreditar, como que me dizendo que eu jamais conseguiria. Como uma mulher vingativa que te seduz e te faz cair em seus encantos e se apaixonar apenas para te machucar no final, de propósito, por vingança ou sadismo, não sei.

Invejo os alunos do pátio como invejo os devotos de Guadalupe. Porque eles acreditam ser aquilo que vendem e acreditam ver aquilo que dizem. E não importa o quanto os garotos do pátio pareçam-se comigo, eles continuarão vivendo na fábula de serem melhores do que eu por estarem dentro e eu fora. E eu continuarei acreditando nisso. E mesmo que os devotos tenham ficado cegos, eles acreditaram até o final, olharam até que pudessem ver, enxergar, alcançar a graça. E perderam a visão tentando encontrá-la

E eu queria ter essa fé de esperar ver o milagre enquanto olhasse para frente sem nunca me questionar, sem nunca sofrer das overdoses de uma auto-consciência que enxerga borrões de cinza no espelho do banheiro.

E se eu ficasse cego, lidaria bem com isso. É o preço de acreditar em qualquer coisa.

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