domingo, 13 de julho de 2014

Cidades de Potemkin

Ainda não passavam das oito da manhã quando eu tomava um expresso curto no balcão de um cafe tradicional no centro da cidade. Desses repletos de esnobes, viadinhos elegantes e pseudo intelectuais. Sentado, assistia atônito à tempestade de elétrons da televisão que invadia meu sistema nervoso através dos meus olhos. O noticiário da manhã contabilizava os mortos nos conflitos da região da Crimeia onde separatistas querem anexar a região à Rússia e abandonar o resto da Ucrânia. As opiniões se dividem. Eu nunca fiz questão de ter uma.

- É um lugar interessante, tem uma história muito boa sobre a Crimeia. - O velho disse ao se sentar, estava bastante atrasado, eu quase havia desistido de esperar. Ele colocou o chapéu sobre o balcão, soltou um sorriso amarelado e seus olhos ainda fuzilavam a atendente através das lentes do óculos enquanto ele pedia um café através de gestos e prosseguia:

- Quer escutar?

- E eu tenho opção? - Ele notou minha irritação. Compreensível: um atraso não era algo aceitável vindo de um homem que se dizia senhor do tempo, capaz de navegar entre o presente, o passado e o futuro como quem entra num elevador.

- Bem, foi no século XVIII. Gregory Potemkin era governador da região da Crimeia quando a imperatriz Catarina II resolveu visitar a região com alguns aristocratas. Porém a Crimeia há pouco havia sido conquistada numa guerra contra os Otomanos e o lugar estava deveras fodido.

O café chegou, ele sentiu o aroma de olhos fechados, sorriu de novo, tomou um gole e continuou:

- Gregory então teve uma ideia mirabolante para impressionar os visitantes: construiu um vilarejo de mentira na beira de um rio por onde a comitiva haveria de passar. Era apenas uma frente de casas falsas com alguns de seus homens figurando como moradores. Durante à noite. Desmontavam o vilarejo de mentira e o carregavam para outro ponto às margens do rio, mais à frente do percurso da comitiva real. Assim, com meia dúzia de homens e algumas casas falsas de madeira, Potemkin fez com que os monarcas acreditassem que haviam várias cidades e vilas às margens do rio, dando uma falsa impressão de progresso. Genial não?

- Sim. Mas pensei que essa história fosse apenas um mito, uma lenda.

- De fato, pode ser. Mas o importante não é a veracidade, mas sim a mensagem que ela tenta nos passar. Todos os dias lidamos com coisas parecidas. As cidadelas de Potemkin foram um reflexo curioso do comportamento humano. Olhe em volta, vemos isso todos os dias: fachadas que existem apenas para impressionar. Não só na cidade tentando realocar os sem teto ou pintando prédios abandonados para que não fiquem tão feios na paisagem. Não só nos comerciais da TV nem nas malditas redes sociais, está à sua volta agora. Veja todas as pessoas nesse Café. TODAS elas, nesse momento, estão te passando uma imagem da maneira que elas desejam que você as veja. Todos nós mostramos apenas uma faceta limitada daquilo que somos de fato. Mostramos só o que nos interessa que as pessoas conheçam.

- Ora, pensando dessa maneira...

- E sabe por quê as pessoas fazem isso amigo? Porque, lá no fundo, elas são infelizes e estão constantemente insatisfeitas. Elas podem sorrir, contar piadas, fazer uma plástica, falar de suas viagens, se gabar de quantas mulheres comeram, se orgulhar dos seus diplomas, de suas famílias e suas posses. Mas no fundo, todos são atormentados pelo maldito vazio que é a existência. Veja todas essas pessoas meu amigo. Nenhuma delas é mais cheia do que um dos vilarejos de Potemkin. A vida que nós mostramos é a nossa fachada, nossa mentira convincente. Mas no final, não tem cidade alguma.

- Tudo bem senhor, mas onde quer chegar com tudo isso? Eu não estou entendendo.

- Então comece a entender. Eu não me atrasei, cheguei na hora mais interessante para te contar essa história. As nossas vidas são fodidas e vazias. Tomadas pelo desespero do despropósito. Mas isso tem um motivo: nós, como seres humanos, temos essa vontade filha da puta de ter controle sobre tudo o tempo todo, mas o que eu aprendi nessa vida foi que não controlamos quase nada do que acontece com a gente. E merda acontece, coisas dão errado. E não há nada que possamos fazer para mudar, o passado é passado. Só podemos lamentar e fingir que nada daquilo importa.

- E importa?


- É claro que importa! Se Gregory Potemkin soubesse da visita e tivesse mais tempo, planejamento e recursos, não precisaria de vilarejos falsos para impressionar a Imperatriz. Construiria cidades de verdade. E não uma rasa mentira como quase tudo nessa vida. E todos nós somos "cidadãos de Potemkin" reproduzindo tudo aquilo que queremos que acreditem que somos e não sendo absolutamente nada disso.



- Então tudo isso é sobre planejamento? Sobre tomar decisões certas?

- Não meu caro, é sobre errar. Errar e poder voltar e começar de novo, tomar o controle do tempo e, consequentemente, do próprio destino. As casas de mentira e os moradores figurantes você já tem, então vamos voltar e construir uma cidade de verdade.

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