terça-feira, 27 de maio de 2014

Bilhetes nos bolsos do meu paletó.

Ouvi um homem gargalhar alguns andares abaixo. Ele ria freneticamente como se tivesse ouvido uma piada boa demais para ser verdade ou se tivesse visto algo extremamente engraçado. Ainda poderia ter pego alguém numa pegadinha ou brincadeira idiota. Mas não. Em algum momento, eu tive certeza que o homem ria de mim. O seu riso desesperado me manteve acordado por mais uma meia hora embora não tenha durado tanto assim. Ele parou de rir depois que começou a tossir. Continuou sua malévola gargalhada que ao mesmo tempo que parecia perversa era pura como a de uma criança, porém intercalada pela tosse tabágica que ecoava pelo pátio do prédio subindo até a minha janela. O riso mais desesperado que eu já ouvi em toda minha vida.

Eu me virei na cama e não consegui dormir. Estou com vinte e dois anos e mal sei passar minhas próprias camisas ou tampouco administrar meu próprio dinheiro. Quando eu tinha quinze, pensava que já seria um adulto à essa altura. Pensava que teria o mundo em minhas mãos. Mas ainda me sinto como o mesmo garoto com preguiça de estudar para as provas da semana que vem. E eu nunca estudei. Porque sabia que, no final, sempre teria notas boas o suficiente para me formar. Sinto falta do quão simples a vida era naquela época.

Não quero ser uma dessas pessoas que só conseguem ver o lado ruim das coisas. Mas todo mundo que eu conheço tem um plano. Algumas pessoas que estudaram comigo já tem filhos, já são casados. Já tem diplomas, casas e carros. E alguém que os espera chegar em casa à noite. E eu nunca ao menos aprendi a dirigir. Me disseram que nunca é tarde. Me disseram.

Eu deveria estar feliz. Tenho um emprego legal, um lugar pra morar, comida no meu prato, os melhores amigos do planeta e uma linda garota que me ama apesar disso tudo. Mas ainda venho aqui há mais de quatro anos dizer tudo aquilo que ninguém quer ouvir. E ainda lembro o aniversário de todas as coisas ruins.

São escolhas. Eu escolhi (escolhi?) não crescer. Vejo todos os meus amigos como adultos. Nenhum deles me parece mais um garoto procurando confusão por aí. Mas quando me olho no espelho ainda vejo o mesmo moleque medroso que não gosta de cortar o cabelo e nem de usar cintos. Por isso vivia com agulhas fazendo pences em suas calças e sempre se escondendo pelos cantos.

Entrei nos vinte com os mesmos problemas que tinha aos treze. Minha crise de meia idade só vai acontecer aos setenta e cinco. Será que até lá terei filhos que me odeiam, um casamento falido, um diploma amarelado na parede do escritório e um monte de dívidas como todo mundo? Todos precisamos disso, pelo menos foi o que me ensinaram.

E você precisa ter uma cabeça muito fodida pra se preocupar se vai morrer sozinho quando ainda tem vinte e poucos anos. Mas me disseram que nunca é tarde.

Eu não quero envelhecer. Não quero ter sessenta e três e estar regando meu jardim. Não quero encontrar bilhetes nos bolsos dos meus paletós me lembrando de tudo aquilo que eu não fiz. Não quero ter trinta e três e fazer malabarismo financeiro para pagar as prestações do meu carro. Nem ir à terapia de casal aos quarenta e um pra tentar salvar meu matrimônio. Nem quero ir à minha própria formatura aos vinte e sete pra fingir que é o momento mais importante da minha vida e que dali pra frente tudo vai ser fácil. Não quero um monte de gente que eu nem conheci direito no meu funeral. Não quero perder o parto do meu primeiro filho porque tive que ficar até mais tarde no escritório por uns trocados a mais.

Eu quero acordar de madrugada e caminhar até o centro da cidade e andar pelo meio das avenidas que durante o dia estão tomadas por carros e motos e ônibus e gente com pressa de viver a vida. Quero ouvir o silêncio daquilo que de dia pulsa como se tivesse vida própria e concluir que concreto é apenas concreto, asfalto é apenas asfalto e que minha sombra debaixo das luzes da cidade nunca vai ser maior do que eu mesmo.

Eu quero passar o resto da minha vida colecionando coisas engraçadas que eu acho na rua. Receber boas notícias de amigos que moram longe e, ébrio, rir de tudo o que me amedrontava anos atrás. Quero ter medo de fantasmas e usar minha camisa por fora da calça como se fosse uma mensagem que diz que eu ainda odeio cintos e não dou a mínima.

Eu quero encontrar meu lugar. E não estou falando geograficamente. Quero chegar em casa e me sentir em casa. Quero cantar sozinho pela rua e não me importar se as pessoas acham que eu perdi a cabeça. Isso pode ser verdade. E ter algum motivo pra deixar minha mãe orgulhosa que não seja um casal de netos e um diploma que eu comprei com minha juventude, meu suor, minha saliva e lágrimas, mas nunca quis ter no final das contas. Me disseram que nunca é tarde.

Não quero mais me sentir sozinho mesmo quando cercado de gente. Porque ninguém vê as coisas como eu vejo. Então todos acham que é exagero ou que eu estou inventando desculpas pra não fazer o que "eu devo fazer". Quero entender porque deus me entregou o fardo de enxergar tudo com tanto cinismo sem se preocupar em deixar alguém para dividir comigo o peso disso. Pois eu não aguento mais.

Estou cansado de enxergar estereótipos. Cansado das mesmas pessoas com os mesmos pontos de vista pré-concebidos. Estou cansado de ter medo de coisas que parecem simples pra todo mundo, menos pra mim.

Filas de banco, consultórios médicos, provas, escolas, universidades, restaurantes caros, escritórios, o assento do motorista, terno e gravata, carreiras bem-sucedidas, festas, casamentos, velórios, dançar e consertar coisas.

Eu preciso de um novo desastre. Imploro por ele todos os dias.

Isso me faz pensar que todos se conformaram com o fato de o mundo ser um lugar repulsivo. Será que só eu enxergo isso? Será que é por isso que eu me sinto como se estivesse sendo deixado pra trás há sete anos? "Fazer o que, as coisas são assim." Sempre que ouço isso, sinto vontade de me atirar do décimo segundo andar.

Estou cansado de ideologias e simplistas dicotomias que usam para enxergar o mundo. Eu sinto falta de pessoas que pensem por conta própria ao invés de reproduzirem várias e várias vezes o mesmo conjunto dogmático de ideias.

Eu sinto falta da minha mãe. E quando meus amigos eram um bando de moleques sem um puto no bolso sonhando em formar uma banda. Sinto falta de conseguir chorar quando sentia vontade.

Quero alguém que entenda e não me diga nada.
Quero alguém que entenda.
Eu preciso.

Quero rir sem ter medo de mostrar meus dentes.
Quero rir sem ter medo de estar sozinho.
Quero rir sem me importar se devo.

Então me desculpe.

Me desculpe por não rir nas horas certas.

Me desculpe por rir.
Me desculpe.

Eu juro que vou limpar meu quarto.
Eu juro que vou começar tudo de novo.

Me disseram que nunca é tarde. Que também riram de Julio Verne.
Mas meu problema não é tempo. E eu não escrevi Viagem ao Centro da Terra.
Me disseram que nunca é tarde. Mas o problema é que nunca é cedo.
Na dúvida, vou manter os bolsos do meu paletó vazios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário