segunda-feira, 19 de maio de 2014

A outra face

Depois de passar um ano inteiro de aeroporto em aeroporto, já não suportava mais as salas de espera, as longas filas de check-in, os despachos de bagagem, o péssimo inglês da tripulação, os assentos quase sem espaço e lutar para poder entrar com sua guitarra dentro da aeronave. Odiou voar de tal maneira que pediu a Deus - àquele mesmo em Quem a muito não acreditava e a Quem ainda não acredita - derrubasse o avião naquela manhã de Dezembro.

Chegou são e salvo, intacto. Perplexo por ainda se dar ao luxo de voar, conformado com o fato da aeronave não ter beijado o chão como quis quando esteve acima das nuvens. Arrastou-se pelo saguão puxando a mala com a rodinha quebrada que cismava em pender para um dos lados sempre que forçava um pouco mais para trazê-la pra perto do corpo. Lembrou de nunca mais viajar no último dia do ano, poucas experiências são mais desgastantes.


Metrópole cinza, estrada cheia de curvas e mais quilômetros pela frente do que facadas em suas costas. Nem se importou. No final, se sentiu em casa só de estar no chão. Terra firme é sempre um porto seguro. Tudo isso para chegar "em casa" e ouvir de quem o matou que não era tão culpada assim.

Sem querer, ele sabia que o cinismo não tem cura. Quis se levantar da calçada e ir embora, mas estava preso a ela por uma força muito maior do que a própria gravidade.

Fevereiro chegou. Ele percebeu ao se debruçar na sacada de madrugada e sentir suas tripas dando um nó como uma bizarra clarividência gastro-intestinal. Só depois de estar no chão frio e molhado, derrotado e sem forças para se levantar, percebeu que todos aqueles pesadelos eram, de fato, premonições. Mensagens do futuro encriptadas, enviadas em bilhetinhos escritos em guardanapos baratos na mesa de um bar que ele não leu. Ou não quis ler. Ou simplesmente não foi capaz de enxergar.

Não importa. Agora estava morto. Apunhalado dezessete vezes pelas costas pela única pessoa a quem permitira permanecer eu seu ponto cego. Ele, que nunca se permitiu ser visto chorando em público, que escondia metade dos sorrisos com os punhos e nunca se deitava sem cobrir os pés, morto pelo mais fraco de todos aqueles que chegaram perto o bastante pra desferir qualquer golpe.

Sentiu dor, sentiu pena de si mesmo, sentiu raiva. Mas nunca quis vingança. Muito embora soubesse que o preço da traição é ser atormentado pela própria consciência até o fim dos seus dias em vida. E justamente isso bastou. Soube ali que já não estava mais triste como antes, só precisava esperar aquele ano acabar que tudo ficaria bem. Repetiu isso para si mesmo como um mantra.

Ergueu-se de tal forma que não foi, de fato, ele que saiu do chão. Foi o solo que foi forçado para baixo a ponto de tirar a própria Terra de seu eixo e tornar-se mero cenário de todo o seu plano.

Respirar.
Recomeçar.
Agir.

Quinhentos e dois dias depois de desejar cair de trinta e dois mil pés de altura e acabar tragicamente esfacelado nos destroços de uma aeronave numa clareira qualquer na serra, completou vinte e dois anos querendo viver cada dia que ainda lhe resta viver. E embora tenha ressuscitado inexplicavelmente na metade de Dezembro, o fantasma de quem um dia foi voltou para atormentar o assassino e desmascarar sua falsa felicidade, sua falsa sensação de ter a consciência limpa. Aquela mentira tão grave que até o mentiroso acaba por acreditar. Até que um fantasma volte para expor toda a sujeira empurrada para debaixo do tapete.

Para ele, não importava muito, até alguém ler para ele o depoimento do assassino que dizia que sua morte foi acidental. Não sentiu raiva, apenas decepção. Acreditou na remissão dos pecados, no arrependimento que leva ao perdão. No aprendizado através da experimentação da consequência de cada erro. Apenas lamentou-se ao constatar o fato de que Judas nunca vai deixar de ser um traidor, ele só precisa de um novo Cristo para vender. E uma nova corda para se enforcar.

Estoico permaneceu até o fim de seus dias. E venceu, sim, embora nunca tenha competido. Venceu a si mesmo, a seus próprios medos. Superou a única pessoa que importava superar desde o princípio.

E no final, qual é o ponto da questão?

Dar a outra face não é aceitar o tapa. Mas sim, evidenciar a fraqueza do agressor. Bata mais. No final, só terá uma mão dolorida e um choro pesado preso na garganta para engolir. É tudo o que você tem agora, Corday.


"I spent the winter writing songs about getting better. And if i'm being honest, i'm getting there."

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