sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Me Desculpem

Primeiramente, deixo claro, mais uma vez, que nunca fui rei de lugar nenhum. Nem tampouco tenho um vasto currículo, um diploma de uma entidade respeitada. Não escrevi livros e nem sou um formador de opinião. Não me encaixo em qualquer um dos critérios ridículos que possam endossar a importância do que eu penso, do que eu faço e do que eu digo.

Então desculpe, eu não sou um deus. Nunca serei. Não tenho perfil e nem competência para tal e acredito que jamais terei. Eu sou um nada, apenas um descartável peão num tabuleiro de xadrez, ás vezes nem isso.

Não sou senhor da verdade e nunca acreditei ser. Desculpem-me se eu posso passar essa impressão.

Eu tenho um método muito eficiente para saber o quão boas as coisas estão. Basta ver o intervalo entre o presente e minha última postagem nesse espaço. Quanto mais longo, melhor minha vida está. Quanto mais curto, pior as coisas estão. Simples e eficiente.

Isso é porque eu escrevo aqui sempre que alguma coisa aqui dentro está errada. E se eu estou escrevendo, é porque eu estou sendo derrotado.

Dentro dessa pequena cabeça mora um monstro que quer devorar todas as minhas ambições, me isolar e me impedir de viver a vida plenamente. Vira e mexe ele aparece. Semana sim, semana não, ele faz eu me arrepender de ter nascido e travamos batalhas épicas nos confins da minha mente. E eu perco quase todas elas.

Então me desculpem por ser fraco.

Muitas vezes, por essa fraqueza, eu me torno duro, rude, inadequado. É quase inevitável. Se a boca diz aquilo do que o coração está cheio, não dá pra se esperar coisa boa de quem vive com raiva, medo e tristeza.

Me desculpem por isso também.

E por fim, eu me ponho a escrever no meio da madrugada. É como uma fuga. Como cuspir ao vento as palavras que imploram pra sair de minha boca, mas ninguém mais quer ouvir. E eu encontro, nelas, um estranho senso de beleza, de significância. Há uma melodia tocando por trás disso tudo que eu sou obrigado a ouvir. Então me sinto na obrigação de tentar reproduzi-la de maneira fiel.

Então, me desculpem por ser dramático.

E na minha tentativa fracassada de organizar o caos que é existir - tarefa que todo mundo parece conseguir executar com maestria - eu acabo me perdendo. Não consigo estabelecer metas nem ser responsável com meus compromissos. Muito menos progredir em qualquer sentido.

E me vendo o tempo todo sem razões para continuar, eu ainda me esforço em esperar que as coisas simplesmente mudem e melhorem, mesmo sem conseguir levantar um dedo para fazê-lo.

E ainda estou aqui. Há sete anos sem conseguir sair do buraco onde me enfiei. Cansado de gritar, bebendo água da chuva, comendo insetos e esperando o dia que alguém me jogue uma corda, mas sem ter certeza de que terei coragem para sair e ver o lado de fora mais uma vez.

Isso é tudo que eu sou, é tudo o que me sobrou.

Me desculpem por ser.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Desejos

Hoje me ofereceram uma flor, e com ela, um desejo. Qualquer um, qualquer coisa. Bastava desejar jogar fora flor depois de pedir o que eu quisesse.

A princípio, não soube o que pedir. Sou um homem sem fé, sem ambição e sem propósito. Não tem quase nada que pudesse preencher o vazio do meu eu. Não há nada que eu possa desejar que vá me tornar, de fato, pleno.

Eu estava sonolento, pensei por horas que, se realmente funcionasse, eu simplesmente não saberia qual seria a melhor escolha. Nem sabia quais escolhas eu tinha. Meu próprio conceito de felicidade inexiste diante da luz da realidade. Se o contentamento fosse um deus, eu seria o mais cético homem a pisar na terra.

Foi quando eu enxerguei o óbvio. Algo que, muitas vezes, as cortinasde fumaça da minha mente não me permitem ver.

Queria jogar a flor em água corrente. Imaginei um rio de águas claras. Me contentei com a turva lama que descia junto ao meio fio.

Desejei a morte do demônio que habita em minha corrente sanguínea. Desejei o fim dos pesadelos e o retorno das boas noites de sono. Desejei que os muros que construí em volta de meu castelo desabassem. Desejei saber descartar como já fui descartado. Desejei não mais ver o mundo através de um filtro cinza dos que usam nos filmes de drama e reduzem a saturação de toda cor. Desejei que o amarelo fosse vibrante, que o vermelho fosse vivo, que o azul fosse acolhedor.

Desejei não um caminho fácil, mas apenas saber a direção. Não desejei qualidades, mas que calassem meus defeitos. E que se calassem todos, por um instante.

Desejei que sentissem a minha dor por uma hora. Assim, imaginariam como é difícil conviver com ela por anos. E queria que sentissem a minha raiva por um minuto e me dissessem até onde ela não os poderia levar.

Desejei não mais sentir nojo do que vejo no espelho e não mais me ver nas letras de todas aquelas músicas tristes.

Fiz o único pedido que faria minha vida ter sentido de novo.

Desejei ser outra pessoa. E nunca mais ouvir minha própria voz dentro da minha cabeça.

Desejei cantar afinado no coro da vida sem nunca perceber que há uma música tocando. E não mais apreciar a melodia em cada fútil detalhe sem nunca alcançar as notas certas.

Desejei ser normal.  Não no sentido ordinário do termo. Mas simplesmente conseguir fazer o que todos fazem.

Apenas quis sorrir sem forçar. Apenas quis rir nas horas certas. Apenas quis enxergar o romance além da tragédia. Só quis acordar amanhã e sentir vontade de levantar da cama.

Desejei que linhas amarelas não significassem nada pra mim.

Desejei que pudesse ver a beleza da simplicidade.

Desejei o descanso dessa batalha diária contra todos esses monstros que moram na minha cabeça.

Desejei um motivo para continuar.

Desejei ser você.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

O Salto

Não é bem novidade o que eu venho vos contar, mas gostaria de pontuar e esclarecer.

Estranhamente, eu sinto uma gigantesca fascinação pela morte. Não sou do tipo de frequentar cemitérios, acreditar em outros mundos ou apelar pra religião. Vejo beleza na coisa em sua mais pura e singela essência: o fim da vida biológica.

Provavelmente, se fossemos imortais, a vida seria uma experiêncua torturante ou no mínimo tediosa. No mesmo passo, se soubessemos quando, seria caótica ao extremo.

A certeza da morte e a dúvida sobre quando vamos encontra-la é um dos pontos mais interessantes e filosoficamente bonitos da existência.

E ao mesmo tempo, considero vital para o entendimento do valor da vida a noção do suicídio. Sim, flerto com ele há anos, mas nunca quis marcar um encontro. Como estamos a mercê do destino, o suicídio é o maior sinal de rebeldia. Escolher o momento exato do fim de sua vida é digno dos deuses.

Mas não, não é algo que passe pela minha cabeça no sentido literal da coisa. O mundo ainda vai carregar meu peso por muitos anos, ao contrário do que pensam, não vou me jogar do parapeito do edifício e aterrissar com maestria 31 metros depois.

Eu ainda tenho muitas pessoas para incomodar. Eu não posso ir agora.

Mas, como disse, tenho apreço pelo significado da coisa. Como eu já escrevi outrora, no espaço de tempo entre nosso nascimento e nossa morte vivemos várias vidas, e às vezes, nenhuma. Mas dificilmente vivemos uma vida só.

Nós nascemos a cada ciclo que se inicia. E morremos a cada ciclo que se encerra.

Dessa forma, como sabemos, todos vamos morrer algumas vezes antes do fim de nossas vidas biológicas. Mais precisamente, todas ás vezes que olharmos para trás e percebermos que as pessoas que éramos já não existem mais.

O suicídio que me fascina é a abreviação de um ciclo. Deixar de existir como a pessoa que sou antes que isso aconteça de maneira natural. E abandonar essa vida que já se mostra improdutiva e redundante.

Esse é o salto que eu penso em realizar todos os dias. Porque, parte de mim acredita que será melhor assim. Pra mim e para todos os outros.

Então espero o momento certo para meu salto.  Para desistir de tentar descobrir onde estão todos os meus amigos. Para deixar de ser um nada por não saber quem sou.

E um dia, quem sabe, encontrar um lugar pra me sentir em casa.

Talvez eu já esteja no lugar certo. O problema é ser a pessoa errada.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Pra sempre cinza

Tudo que eu tocar há de se desfazer. Vai ver é uma maldição de família. Uma doença hereditária, um quadro clínico onde o enfermo destrói tudo o que toca, endurece pessoas que ama, acaba com projetos que participa, arruina com os planos traçados, amaldiçoa o solo onde pisa e suga todo e qualquer fio de esperança que possa restar no coração de qualquer um que tenha tido a infelicidade de conhecê-lo.

Como um toque de midas ás avessas, ao invés de ouro, minha recompensa são as cinzas daquilo que eu toco. Fragmentos da memória em fotografias amareladas pelo tempo queimando na fogueira da solidão.

E que solidão. Uma névoa espessa que cega e impede que todos me vejam. Que todos sejam vistos. Eu sou invisível a maior parte do tempo. E essa nuvem que paira sob a terra e alcança muito alem do horizonte e os longínquos campos de centeio onde faço a minha vigia só pode ser enxergada por mim.

Há uma parede de fumaça me separando do resto do mundo e tudo o que eu mais queria era conseguir ver a luz do sol. Nem que seja apenas uma cortina de luz cortando um pedaço dessa névoa. Apenas para que eu possa ver o quão melhor eu posso ser. Mas, por enquanto, é tudo cinza. Pra sempre cinza.

E hoje só consigo enxergar o quanto  minhas ações , meus medos e minha impotência tem tragado os que se aproximam de mim para dentro dessa névoa maldita. Todos estavam bem antes disso. Nunca os vi chorar, nunca tiveram motivos. Vejo todos voces desapontados e isso tem me matado a cada dia.

E a cada dia reafirmo a quase certeza de que o melhor é desistir. E a cada dia reafirmo a quase covardia que mora dentro de mim. O quase egoísmo que me impede de fazer o que é melhor para todos, o que é melhor para mim.

A única coisa que eu sempre quis foi ser bom o bastante. E se eu estiver errado? Haveria um deus pra me agarrar depois do salto? Um herói pra impedir a queda? Ou só poderiam coletar os meus pedaços pelo chão?

Que diferença eu faria, afinal?

Cansei de ser a vítima. Tudo o que eu menos preciso é de mais gente pra sentir pena de mim e me dizer o que fazer. Ás vezes é necessário sair esmurrando o vento pra achar algo que deva ser socado.

Se a vida há de ser dura, deve ser ainda mais áspero. E se sente-se a cada dia mais sozinho, queira estar ainda mais solitário. E se te oferecem um mundo sempre cinza pra viver, só resta pintá-lo de vermelho. Nem que seja a tinta o seu próprio sangue. A água, suas próprias lágrimas e o seu suor.

Prive deles o direito de tirar qualquer coisa que você queira, qualquer um que voce ame. Basta nunca querer nada e nunca amar ninguém.

E um dia ver essa parede cair e entender: nunca quis ser como vocês, apenas quis a opção de escolher: ter ou não ter. Eis a questão.

Ter é ser.  Ser é crer. Crer é querer e comprar. Basta acreditar num deus maior. Elaborado e produzido, programado e corrompido de plástico com números e letras gravados com um poder ilimitado de te dar tudo que precise pra preencher o vazio de ser.

Viva esse mundo cinza que ensina e determina o que você deve ser. E a recompensa pretendida, o placebo de uma vida pra te entorpecer.

Nunca mais cinza.

Basta saltar.

domingo, 13 de julho de 2014

Cidades de Potemkin

Ainda não passavam das oito da manhã quando eu tomava um expresso curto no balcão de um cafe tradicional no centro da cidade. Desses repletos de esnobes, viadinhos elegantes e pseudo intelectuais. Sentado, assistia atônito à tempestade de elétrons da televisão que invadia meu sistema nervoso através dos meus olhos. O noticiário da manhã contabilizava os mortos nos conflitos da região da Crimeia onde separatistas querem anexar a região à Rússia e abandonar o resto da Ucrânia. As opiniões se dividem. Eu nunca fiz questão de ter uma.

- É um lugar interessante, tem uma história muito boa sobre a Crimeia. - O velho disse ao se sentar, estava bastante atrasado, eu quase havia desistido de esperar. Ele colocou o chapéu sobre o balcão, soltou um sorriso amarelado e seus olhos ainda fuzilavam a atendente através das lentes do óculos enquanto ele pedia um café através de gestos e prosseguia:

- Quer escutar?

- E eu tenho opção? - Ele notou minha irritação. Compreensível: um atraso não era algo aceitável vindo de um homem que se dizia senhor do tempo, capaz de navegar entre o presente, o passado e o futuro como quem entra num elevador.

- Bem, foi no século XVIII. Gregory Potemkin era governador da região da Crimeia quando a imperatriz Catarina II resolveu visitar a região com alguns aristocratas. Porém a Crimeia há pouco havia sido conquistada numa guerra contra os Otomanos e o lugar estava deveras fodido.

O café chegou, ele sentiu o aroma de olhos fechados, sorriu de novo, tomou um gole e continuou:

- Gregory então teve uma ideia mirabolante para impressionar os visitantes: construiu um vilarejo de mentira na beira de um rio por onde a comitiva haveria de passar. Era apenas uma frente de casas falsas com alguns de seus homens figurando como moradores. Durante à noite. Desmontavam o vilarejo de mentira e o carregavam para outro ponto às margens do rio, mais à frente do percurso da comitiva real. Assim, com meia dúzia de homens e algumas casas falsas de madeira, Potemkin fez com que os monarcas acreditassem que haviam várias cidades e vilas às margens do rio, dando uma falsa impressão de progresso. Genial não?

- Sim. Mas pensei que essa história fosse apenas um mito, uma lenda.

- De fato, pode ser. Mas o importante não é a veracidade, mas sim a mensagem que ela tenta nos passar. Todos os dias lidamos com coisas parecidas. As cidadelas de Potemkin foram um reflexo curioso do comportamento humano. Olhe em volta, vemos isso todos os dias: fachadas que existem apenas para impressionar. Não só na cidade tentando realocar os sem teto ou pintando prédios abandonados para que não fiquem tão feios na paisagem. Não só nos comerciais da TV nem nas malditas redes sociais, está à sua volta agora. Veja todas as pessoas nesse Café. TODAS elas, nesse momento, estão te passando uma imagem da maneira que elas desejam que você as veja. Todos nós mostramos apenas uma faceta limitada daquilo que somos de fato. Mostramos só o que nos interessa que as pessoas conheçam.

- Ora, pensando dessa maneira...

- E sabe por quê as pessoas fazem isso amigo? Porque, lá no fundo, elas são infelizes e estão constantemente insatisfeitas. Elas podem sorrir, contar piadas, fazer uma plástica, falar de suas viagens, se gabar de quantas mulheres comeram, se orgulhar dos seus diplomas, de suas famílias e suas posses. Mas no fundo, todos são atormentados pelo maldito vazio que é a existência. Veja todas essas pessoas meu amigo. Nenhuma delas é mais cheia do que um dos vilarejos de Potemkin. A vida que nós mostramos é a nossa fachada, nossa mentira convincente. Mas no final, não tem cidade alguma.

- Tudo bem senhor, mas onde quer chegar com tudo isso? Eu não estou entendendo.

- Então comece a entender. Eu não me atrasei, cheguei na hora mais interessante para te contar essa história. As nossas vidas são fodidas e vazias. Tomadas pelo desespero do despropósito. Mas isso tem um motivo: nós, como seres humanos, temos essa vontade filha da puta de ter controle sobre tudo o tempo todo, mas o que eu aprendi nessa vida foi que não controlamos quase nada do que acontece com a gente. E merda acontece, coisas dão errado. E não há nada que possamos fazer para mudar, o passado é passado. Só podemos lamentar e fingir que nada daquilo importa.

- E importa?


- É claro que importa! Se Gregory Potemkin soubesse da visita e tivesse mais tempo, planejamento e recursos, não precisaria de vilarejos falsos para impressionar a Imperatriz. Construiria cidades de verdade. E não uma rasa mentira como quase tudo nessa vida. E todos nós somos "cidadãos de Potemkin" reproduzindo tudo aquilo que queremos que acreditem que somos e não sendo absolutamente nada disso.



- Então tudo isso é sobre planejamento? Sobre tomar decisões certas?

- Não meu caro, é sobre errar. Errar e poder voltar e começar de novo, tomar o controle do tempo e, consequentemente, do próprio destino. As casas de mentira e os moradores figurantes você já tem, então vamos voltar e construir uma cidade de verdade.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Cento e Oitenta e Dois Dias de Verão

Eu poderia escrever duas mil páginas para falar sobre isso. Poderia publicar uma antologia sobre todos esses dias. Sobre esses últimos seis meses. Sobre como foi complicado no começo, sobre como tem sido leve desde então.

E colocar no papel com palavras em tinta nesse caos que é o meu vocabulário como uma tempestade de orações atiradas ao mar, carregadas pelo vento. Só pra contar como foi difícil não te querer desde o princípio dos princípios.

E sobre a luta para não trair os próprios princípios naquele começo.

Ou sobre como eu tagarelava e andava de um lado pro outro bebendo cerveja e fumando um cigarro atrás do outro tentando explicar o que eu pensava sem conseguir me sentar de tão exaltado. Sobre como eu me sentia devorado pelos seus olhos desde então, seduzido pelas suas palavras numa noite de Janeiro.

E se é sexta feira, é melhor desligar a televisão se a companhia é a melhor programação.

Seja o toque, seja o cheiro ou a luz dourada que atravessava a janela do quarto enquanto eu acordava com você olhando fundo nos meus olhos, como se pudesse me despir e me desorganizar de dentro pra fora. E caminhar numa manhã quente de verão por alguns quilômetros e não conseguir parar de sorrir e olhar pra trás voltando pra casa.

Quando me vi substituindo longas caminhadas cabisbaixo, sozinho, debaixo do sereno sentindo o cheiro de sangue e alcatrão pela troca de sorrisos e olhares tomando sorvete numa noite quente. Troquei meu muro das lamentações por uma sagrada oração de três palavras que jurei nunca mais ousar dizer em voz alta.

Sobre como você vai ter alguém que vai te amar como você merece um dia. Mas hoje à noite eu sou tudo o que você tem. E sei que minha voz não é grande coisa, mas também sei que vai ficar pra me ver cantar de olhos fechados na ponta dos pés.

Poderia escrever sobre levar macacos para ver outros macacos no zoológico. Sobre as noites acordados discutindo política e religião como se pudéssemos salvar o mundo. Ou sobre como minhas mãos voltaram a tremer quando eu penso num futuro que nunca vai chegar. Sobre como tem dias que é difícil amar você.

Sobre como não é mais difícil dizer essa palavra de quatro letras.

Poderia escrever tantas coisas, tantas histórias. Seria tudo em vão. Jamais conseguiria captar com perfeição o tamanho do significado que tudo isso tem pra mim. Jamais conseguiria um daguerreótipo capaz de registrar a presença do amor. E mesmo assim, sei que ele existe. É a fé que eu pensei ter perdido.

Não há muito o que escrever para descrever esses cento e oitenta e dois dias de verão que começaram naquele Janeiro - onde era verão de fato. Existem coisas que são indescritíveis. Mas espero que não se importe já que eu tentei colocar isso em palavras.

E sei que vai reconhecer cada referência e cada pedacinho nosso nesse emaranhado de palavras que eu insisti em criar. Então chega perto, venha aqui. Quero te contar um segredo.

Mas acho que você já sabe não?

Eu te amo.

Só um pouquinho.

sábado, 28 de junho de 2014

A Dança dos Lobos

Eu segurei a porta do elevador e uma senhora do sexto andar teve tempo de entrar. Com um sorriso no rosto, a velha me agradeceu antes de apertar o botão que apontava o sexto andar. Sorri de volta enquanto clicava o quarto. Dei boa noite antes de descer no meu andar.

Pesquei minhas chaves no bolso e enfiei a correta na fechadura da porta da sala. Observei que o segundo algarismo de metal do número 42 pregado na porta do apartamento estava levemente torto para a direita. Sei que o número quarenta e dois carrega um significado importante para algumas pessoas. Eu nunca acreditei em numerologia ou esoterismo. Nem mesmo em espíritos, deuses ou demônios - muito embora isso soe estranho vindo de alguém que vê fantasmas todos os dias.

Entrei na sala, tranquei a porta atrás de mim, me livrei da minha mochila e apertei o botão do interruptor para acender a luz da sala em vão. A lâmpada não acendeu e permaneci na escuridão, mas a luz que entrava pela janela era o bastante pra ver a silhueta dele sentado no canto olhando pra mim. Olhos sedentos e um sorriso mais desesperado do que perverso.

Respirei fundo. Mais uma noite.

Fui até o banheiro e o ouvi me seguir. Podia senti-lo respirando há menos de dois metros de mim, mas não me virei pra trás. Me tranquei no banheiro, mijei como um rei, como se não houvesse nada no mundo importante o bastante pra me interromper. Ele bateu na porta e eu ignorei. Dei descarga, lavei as mãos e o rosto. Quando saí, ele não estava na porta. Quando entrei no meu quarto, lá estava ele de novo, no escuro. Mesmo que eu acendesse as luzes da casa e o fizesse desaparecer de vista, ainda saberia que ele está lá.

Prefiro tê-lo a vista. Tenho mais medo daquilo que eu não posso ver.

E mesmo que eu não pensasse assim, eu precisaria apagar as luzes quando fosse dormir e é quase sempre nessa hora que ele gosta de aparecer. Olhos sádicos sedentos, sorriso amarelo aflito. Não consigo enxergar nada ou ouvi-lo soluçar, mas sempre tenho certeza de que ele está sempre chorando. É só um palpite.

Amor e ódio são sentimentos fundamentais na vida das pessoas.

As que não tem alguém para amar tendem a se apaixonar por si mesmas vivendo a mentira da auto-suficiência,da auto-confiança e da auto-bajulação. Masturbação emocional. Não deixa de ser pecado se você romantizar uma punheta. Ou estou errado?

Já quem não tem alguém pra odiar, tende a criar inimigos à sua imagem e semelhança nos confins de sua mente. E de alguma forma eles encontram saídas do labirinto do subconsciente e se materializam como fantasmas se escondendo em sombras te olhando dormir. Ou como seu próprio reflexo no espelho.

Da mesma forma que Narciso morreu afogado fascinado pelo seu próprio reflexo no lago, não é nada impossível ser morto pelo ricochete do tiro que eu disparar contra meu reflexo no espelho.

Existem dois problemas em ver fantasmas. O primeiro é querer contar para alguém. E mesmo aquela pessoa que eu mais confio não acredita no que eu digo.  Todos acreditam que é uma invenção da minha mente. O que não deixa de ser verdade, embora ele não deixe de ser real por isso. Já me disseram que eu só estou querendo chamar atenção, mas eu preferia nem ser notado por ninguém do que ouvir alguém respirando em cima de mim freneticamente enquanto eu finjo dormir. De qualquer forma, no final, estou sozinho pra enfrentá-lo.

O segundo é uma espécie de guerra fria entre eu e ele - ou seria melhor dizer aquilo? Ele rosna, mostra os dentes, eu faço o mesmo. Se eu me movimento pra um lado, ele acompanha com sincronia e vice-versa. Nunca nós damos as costas de fato. É um jogo de intimidação. Toda a hostilidade está ali, num ar tão tenso que parece construir paredes entre nós. Infelizmente eu sei que elas não podem impedir ele de chegar até mim.

E eu sei que se eu baixar a guarda, a qualquer momento, ele pode cortar minha garganta com uma lâmina fria e mais enferrujada que as minhas juntas. E espero que ele continue acreditando que eu sou capaz de fazer a mesma coisa.

Ambos nos odiamos e temos um desejo obsessivo em matar o outro, mas nenhum toma o primeiro passo, ninguém saca suas armas. A Dança dos Lobos consiste de fazer com o que seu adversário acredite que ele tem mais medo de você do que você dele até que se afastem alcançando uma distância segura e se preparar para o próximo embate. É torturante.

Eu nunca durmo de verdade, sempre tenho uma lanterna e uma faca por perto da cama. O que também significa que eu nunca estou realmente acordado. Nunca dou as costas a espelhos e nunca relaxo meus músculos até ter certeza de que estou completamente sozinho no cômodo.

Eu sempre mantenho as portas trancadas e alguma fonte de luz por perto por precaução. E quando ele senta perto da minha cama, me preparo para ficar acordado até ele ir embora. O que muitas vezes só acontece quando o sol nasce.

Mas eu estou perdendo. Não vai levar muito até que eu esqueça uma porta aberta ou meu pé descoberto. E não vou suportar ficar acordado por muito mais tempo. Eu também não tenho ninguém pra ficar de vigília por mim ou me acordar quando for a hora.

Ele me observa com aquele sorriso que remete as coisas mais fodidas que alguém pode pensar ou fazer enquanto eu sento aqui e escrevo isso. Pra me lembrar que isso só vai acabar quando um de nós morrer. Que não há como escapar da própria sombra. Pra me lembrar que não se pode matar o que já está morto. E principalmente, me lembrar da verdade mais aterrorizante:

Uma hora, eu vou cair no sono.