quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

As Crônicas dos Piores Dias de Minha Vida #1

Isso foi há quase três anos atrás quando toda a merda do planeta parecia ter atingido o ventilador da minha sala de estar. Eu estava sentado nesse karaokê em algum lugar da Santa Cecília assistindo o Doda fazer a melhor performance possível de Last Kiss com seu affair da época, a coreana das poesias do tumblr, aquela de quem eu não gostava. Eu estava sentado vendo eles cantando, ou melhor, vendo ele cantando e ela tímida do lado dele do pequeno palco ensopados pelas luzes azuis de neon que me levavam a mais absoluta náusea. Estava sentado ao lado de sei lá quantas amigas dela com quem eu não consegui (ou não quis) trocar uma só palavra a noite toda. Eu estava ocupado demais sufocado com toda meu remorso e ira. Aquele que me acompanha até hoje.

Eu queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali, no meio da horda que sorria, aplaudia e cantava junto. Isso foi antes dos smartphones se popularizarem, foi antes de todo mundo ter a possibilidade de ser sugado pela internet no meio de situações sociais. Pelo menos eu ainda não tinha um, não podia ignorar o mundo ao meu redor e simplesmente ir chorar minhas mágoas no Twitter - eu nem tinha um Twitter ainda. Tudo o que eu tinha era um maço de cigarros e talvez esse tenha sido o único dia da vida em que esse vício valeu o preço que cobra. Meu álibi perfeito para sair de perto de todo mundo e ir fumar no mezanino, meu cúmplice no crime de não desejar participar de situações sociais por medo do constrangimento. É impressionante como eu me sinto nu em qualquer lugar com mais de cinco pessoas que eu não conheço.

Subi os três lances de escadas tentando fugir do som da música do outro ambiente assim que possível. Um ritual que eu repeti bastante naquela noite, fumei pelo menos uns quinze cigarros. Respirei o ar frio e senti a garoa fina me molhar o rosto pensando que eu nem deveria ter saído de casa naquele dia. Eu fui por causa dele, por sua insistência e teimosia. Doda foi quem me levou para São Paulo naquele mês de Março. Pagou pela minhas passagens, bancou quase todos os gastos da viagem, ele queria mesmo a minha companhia. Algo que ele fez mais por mim do que por ele na verdade. Ele queria me tirar da bolha, me levar pra ver o mundo lá fora, tentar me fazer sair do buraco de onde eu tinha me enfiado. É isso que amigos fazem e ele era - e ainda é - o melhor deles. Independentemente do esforço dele - ao qual sou grato até a data presente - a verdade é que eu me senti extremamente sozinho e isolado durante toda aquela viagem. E é sobre isso que escrevo.

Encostei-me no parapeito, puxei um cigarro de dentro do maço, acendi, traguei e exalei uma fumaça branca e densa que parecia dançar pelo ar enquanto eu olhava o movimento na rua lá embaixo. Na época, eu ainda fumava Dunhill Carlton Blend de filtros brancos com a embalagem mais bonita possível, isso foi antes de eu trocá-los pelo Marlboro Red - que é substancialmente mais forte -  influenciado por outra amizade. E por ser uma marca mais fraca, eu fumava mais, então já era a enésima vez que eu subia naquele mezanino que funcionava como fumódromo em menos de duas horas.

Eu observava os táxis que chegavam na porta dos bares e boates com moças de vestidos bonitos ou saias justas tentando fingir que não estavam com frio. Os rapazes de camisetas polo listradas falando alto na porta de uma casa de eventos, carros e ônibus disputando espaço pela e estreita e, ainda sim, movimentada rua. Desejei ser como todos os que estavam lá embaixo, desejei ser qualquer um menos eu mesmo naquela noite. Eu ainda não tinha me acostumado, mas seria uma sensação bastante recorrente. Foi nessa época que eu descobri que a mais cruel de todas as prisões é não se sentir confortável debaixo da própria pele - algo que eu me lembro de dizer há um tempo atrás.

Aquele foi o fundo do poço. Eu não tinha nada, ninguém. Eu não tinha dinheiro, vontade, estudo, trabalho, perspectiva de futuro. Se eu tivesse morrido naquele dia, teria sido um alívio. Tudo o que tinha me levado até ali, tudo aquilo sobre o que eu já escrevi tantas e tantas vezes, todos os fantasmas que me assombram até hoje e me levam ao limite do suportável levando-me a crer se eu já o atravessei ou não.

E aquele foi um dos momentos que eu escolhi como controle.

Aquele momento em que Doda cantava Last Kiss ao lado da coreana no Karaokê aos aplausos dos clientes bêbados enquanto eu fumava um cigarro atrás do outro como pretexto para não estar lá como todo o resto. Um de vários momentos em que simplesmente ser tornou-se algo insuportável ao ponto de eu não querer mais a dádiva-maldição que é estar vivo. Mas eu não desisti. Eu mereço tudo aquilo que já aconteceu e tudo mais que ainda vai acontecer. Os altos e baixos, as vitórias e derrotas. Até o momento em que eu perca totalmente a minha sanidade.

Até lá, eu decoro as paredes da lembrança com todos esses momentos-controle que eu pintei em telas imaginárias para que eu possa recordar com riqueza de detalhes nas madrugadas de insônia, nas fugas ao banheiro durante ataques de pânico na faculdade, nos dias em que me sinto tão sozinho e isolado ao ponto em que me convenço de que sou a única pessoa viva a caminhar sobre a face da Terra. Para não me esquecer que eu já estive pior, que se passei por aquilo e vou passar pelo resto. E quando eu me sinto tentado a rasgar minha própria pele para escapar dessa prisão e ser qualquer coisa menos isso que sou dentro desse caixão de carne e osso e finalmente me sentir vivo, eu penso que passei vivo pelo final do último ano e pelo começo do ano anterior, então nada mais pode me impedir de continuar.

Tenho chegado ao meu limite, tenho evitado as pessoas que amo, ando "esquecendo" meu celular desligado para não ter que falar com ninguém, estou dormindo no sofá porque só Deus sabe o quão difícil é sair da minha cama nesses dias. Mas talvez Ele nem exista afinal de contas. O que nunca foi importante pra mim de fato. Ainda tenho meus quadros na parede para contemplar, mas elas já estão quase lotadas e nos últimos dias eu tenho precisado de mais espaço. Muito mais espaço.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dois Mil e Quinze

De novo. Todas as músicas que me fizeram passar por mais um ano. Que me fizeram amadurecer e crescer de novo e de novo.

Janeiro

"I was falling for a girl who would ask me to come over
Just for a day, when her parents were away,
Now all I can do is lay in my room,
Fall asleep, dream of you,
Then wake up and do nothing about it"
Fevereiro
"You miss me when I'm gone
But when I'm around it's like I'm hidden behind the paint on the walls
The loneliness will keep me warm tonight
It'll keep me warm seeing as you won't"
Março
"I know my wounds will heal with timeBut still I wear all my scars with pride"

Abril

"I'm starting to believe that there's a god and he hates me.
I'm starting to believe that my mom lied about grace and divinity"

Maio

"Self medicate cause I'm sick (I've got nothing in common)
Of cutting ties much to thick (With anything anymore)
Please make this painless and quick
Please make this painless and quick"

Junho

"Is our skin to keep the world out or our bodies in?
This doesn't look like home, this doesn't look like home.
Is our skin to keep the world out or our bodies in?
I'll tear apart the town then sleep, and sleep alone."
Julho

"So rest in peace for the living dead
And where you sleep is where I plan to make my bed
I've got a song that belongs on your right arm
I need to know what you feel
And if you mean no harm"
Agosto

"I've lost count of all the times I've made it home alive...
And wished I hadn't"
Setembro

"I'm not sure what's worse
The waiting or the waiting room
and "You're next sir" becomes a cruel taunt to you
Recycled air, the smell of sleep and disinfectant
Your God is a two door elevator"
Outubro

"Cause you were heat lightning.
Yeah you were a storm that never rolled in.
You were the northern lights in a southern town, a caustic fleeting thing.
I’ll bury your memories in the garden;
I’ll watch them grow with the flowers in the spring.
I’ll keep you with me"

Novembro

"I lie for only you
And I lie well...
Hallelu..."

Dezembro
"We cast our hearts in plaster
We imagined our bodies were fashioned from stone
But they chipped at the brick and mortar
We found out that we're only layers of skin hiding bone
And our bones are like chains, old and rusted in the rain
They're going to snap when the weight shifts"

sábado, 28 de novembro de 2015

Os meus ratos no porão.

Acho engraçado como nós não nos desapegamos facilmente de velhos hábitos. Já há muitos anos não sou mais um católico praticante. Há um bom tempo sequer tenho fé ou religião. Há alguns meses descobri que não me importo mais. Mesmo assim, ainda faço o sinal da cruz quase sempre quando passo por uma igreja.

Eu já não me sinto mais tão mal durante as aulas na faculdade, mas ainda tenho que me sentar de costas para a parede para não surtar com a possibilidade de ter alguém me observando de um lugar onde eu não possa vê-lo(a). Eu já não me sinto tão desajustado em relação a tudo e fora de lugar o tempo todo, mas se eu estiver sóbrio ainda tenho ataques de ansiedade em lugares lotados, em shoppings, em shows, em bares, em festas. E até em casa sozinho no meio da madrugada.

Não consigo deixar de pensar na história de pessoas que tem membros amputados, mas juram que ainda podem senti-los. Eu sou um homem sem pernas mexendo os dedos do pé.

Ainda temo pelos ratos no porão mesmo sabendo que não há mais nenhum deles lá. na verdade, não há porão algum.

Talvez seja o medo de mim mesmo que me torne constantemente execrável. Talvez eu esteja doente esse tempo todo e por isso tudo que eu penso, falo, escrevo e faço me soa cada vez mais patético e vergonhoso. Mas ainda estou aqui.

Eu já me sinto em casa em muitos lugares, mas não chego abrindo a geladeira e pondo os pés sobre a mesa. Questão de hábito ou vício, maneirismos ou filosofias. Eu ainda odeio a pessoa que eu vejo no reflexo do espelho do banheiro pois ela tenta ser algo que não é para evitar a realidade de sua insignificância. Até eu preciso estar ébrio pra me suportar, não posso julgar quem faz o mesmo.

Tenho divagado demais, me adiado demais, me criticado demais. No final, talvez seja porque eu goste, talvez seja parte da minha identidade sentar de costas para a parede. Talvez eu apenas goste de igrejas. Talvez a inaptidão seja parte de um conjunto de hábitos, e não uma característica. Até porque, ainda acho espaço para a arrogância e prepotência num mar de auto-consciência, auto-destruição.

Estou derrubando meus muros, meus dilemas morais, meus paradoxos éticos. Cansei dos velhos tecnicismos, da burocracia dos meus códigos de conduta. Mas ainda sinto cometendo algo de errado numa madrugada de Domingo quando todo meu corpo me diz estar cometendo um crime que minha mente não consegue enxergar.

Ainda faço o sinal da cruz quando passo por uma igreja. Ainda me deixo acreditar estar mais triste do que realmente estou. Ainda preso a pessoas que não amo mais. Ainda perseguindo fantasmas que sei que não existem. Ainda me vejo vítima de suicídios que eu sei que não vou cometer.

Sou escravo de meus próprios dogmas. E nada mais

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sirenes

Me disseram que quando os alemães se renderam a sirene da Companhia Antárctica tocou por horas seguidas e essa cidade inteira - o mundo inteiro na verdade - celebrou ensandecidamente. Como uma final de Copa do Mundo ou uma festa de seis anos novos seguidos com a única diferença: ninguém enalteceu o autor dos gols ou fez promessas que não cumpriria depois de muito bêbado. Contaram os corpos de sessenta milhões de pessoas e o incalculável estrago material de quase seis anos de guerra. Houve quem nunca mais voltasse pra casa. Houve quem perdeu a família inteira.

Eu faço parte de uma geração que fracassou em praticamente todos os sentidos, jamais conseguirei entender como as pessoas passaram por aquilo. Hoje nós não chegamos à idade adulta sem meia dúzia de anti-depressivos, sem uma ou outra tentativa de suicídio, sem sermos diagnosticados com distúrbios que nem sabíamos existir até certo tempo atrás. Somos o feto abortado pela TV por assinatura porque o sabonete anti-bacteriano não quis assumir a responsabilidade. Não conseguimos olhar o mundo à nossa volta e nos divertir porque estamos ocupados demais de cabeça baixa olhando nossos smartphones tentando convencer pessoas tão miseráveis quanto nós mesmos que vivemos a vida que sonhamos viver.

Eu seria modelo perfeito para ilustrar a decadência dessa juventude. O atrapalhado quase herói tragicômico do programa popular da televisão. O Dom Quixote que vive o drama de não lembrar a senha do Wifi ou de não ter tantos seguidores no Instagram quanto gostaria. A epopeia trágica do consumidor inconformado quando o atendente do McDonald's esqueceu de esclarecer no pedido que o Big Mac era realmente sem pickles. O drama do nerd punheteiro tarado na garota mais bonita do colégio, mas que não tem auto-estima o bastante para sequer conversar com ela e que usa seu próprio fracasso para construir um discurso misógino que nem ele compreende. A incrível geração de gênios que não fazem nada de genial, que pouco ou nada contribuem com o mundo em que vivem mesmo tendo nascido na época mais próspera, pacífica e livre da história. O frustrado e egocêntrico blogueiro que pensa ser escritor só porque digita um monte de lixo sobre ele mesmo e que finge não se importar por não ter sequer dez leitores.

 Foda-se isso, eu desisto. Eu não quero fazer parte disso. Eu não quero participar.

Isso não é bem uma carta de despedida, mas sim os termos da rendição. Porque eu cansei de tentar nadar contra a corrente, cansei de tentar ser mais do que isso, cansei de tentar impressionar. Não tenho mais recursos nem palavras. Nem coelhos para tirar da cartola, nem ases para sacar da manga do paletó. Não tenho mais paciência para lidar com a hipocrisia de vocês, não tenho mais equilíbrio para ouvir tantas mentiras agradáveis. Eu não posso mais me apegar a elas. Antes, era mais fácil ser forte, agora tudo parece longe e fora do meu alcance. Não adianta tentar reconstruir minha fortaleza, levantar meus muros, começar de novo. Hoje, minha defesa é uma cartela de Valium e meia dúzia de latas e cerveja. Um punhado de livros que amo sem ter lido, uma porrada de gente que carrego sem ter amado, um rancor maior que minha própria força de vontade, uma indiferença cada vez mais latente e a esperança do mundo ser um lugar melhor quando eu acordar daqui uns cinco dias.

Isso não é um adeus, é um até logo. Até o dia em que possamos nos ouvir e nos entender. Até o dia em que possamos ser melhores. Pois passei sei lá quantos anos achando que eu e minha vidinha éramos uma merda, mas percebi que não sou o único. Isso é uma doença social e quase todos nós estamos enfermos. Ébrios. Sujos. Estúpidos. Maldosos. Imperfeitos. Adoráveis. Humanos.

Ouço as sirenes soando, elas vieram me levar pra casa.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

So(m)bras de Outubro

É Outubro de novo. E eu estou escrevendo outra carta que você nunca vai ler esperando que seja a última, mas sabendo que não deve ser. Mas tudo bem. Essa será a mais vazia de todas elas pois já não sei mais o que dizer. Já me faltam palavras, já me faltam maneiras de descrever o que tem se passado desde que você saiu da minha vida.

Eu sempre achei que esse sentimento fosse passar, sempre achei que com o tempo eu fosse esquecer, deixar de pensar isso. No primeiro ano, choraria como se estivesse revivendo aquilo tudo de novo. No segundo, repetiria numa intensidade menor. No terceiro, relembraria sem lágrimas e sem dor, apenas saudade. Acreditava que no quarto já deixaria a data passar batida, que eu nem lembraria. Eu jamais imaginaria que no oitavo ano eu ainda me sentiria tão mal quanto me sinto agora, aqui, escrevendo essas palavras. E posso te dizer que curiosamente, não é tristeza o que eu sinto.

É complicado. É uma mistura de angústia, raiva e saudade. Você me faz muita falta, mas sobretudo, a pessoa que eu era me faz muita falta. Por mais que eu deteste quem eu fui, eu era mais feliz sendo aquela pessoa. Eu não pensava demais, eu tinha cicatrizes a menos e fôlego a mais. Eu sei que saberia quais palavras escolher se estivesse aqui hoje, sei que me impediria de entrar em diversas enrascadas, que me ajudaria a sair de algumas outras e que pelo menos estaria lá para dizer que me avisou na maioria delas.

Será que você sabe o quanto tua sombra tem moldado aquilo que me restou pra ser?

Eu ainda me pego pensando em você. Na verdade, o tempo todo você está comigo mesmo quando não é Outubro. Você está espalhado por todas as coisas que eu escrevo aqui ou nos rodapés de caderno, nos cupons fiscais amassados, nas folhas de guardanapo dos bares, no verso das provas da faculdade. Eu ainda te ouço nas músicas que eu escuto e te enxergo nos filmes que assisto e nos livros que leio.

Te imagino calçando os chinelos pra ir comigo comprar pão na padaria num sábado de manhã. Vejo você no quintal brincando com os cachorros ou no quarto jogando videogame. Te vejo correndo pela rua e abrindo o tampão do dedão do pé jogando futebol no asfalto escaldante. Queria lembrar de mim mesmo dessa maneira, mas só me enxergo quatro dias depois do funeral voltando pra casa sozinho debaixo de chuva e sol fazendo o máximo possível pra não chorar. Hoje eu já não consigo mais. Você acharia irônico sabendo o quão fresco e chorão eu já fui.

É isso que você tirou de mim no dia em que eu te vi naquele caixão. É por isso que tem dias que eu te odeio mais do que te amo. Sua perda me obrigou a ser alguém que eu nunca quis ser e de quem não me orgulho. E o pior de tudo é ter feito uma promessa que eu nunca conseguiria cumprir. Aquela de viver tudo aquilo que você não teve tempo. Eu só consigo pensar na ironia do destino pois eu tenho certeza de que você gostaria de estar aqui agora enquanto eu não gosto. A certeza de que você merecia a vida que hoje eu desdenho. Você não tinha o direito de tomar meu lugar naquele caixão bem como eu não tinha o direito de ficar com o teu aqui em vida.

Eu me odeio pelo fato de saber que você é quem deveria estar aqui vivendo a vida que eu muitas vezes não quero viver. Porque sei que não voltaria frustrado para casa por ter chegado inteiro quando desejou profundamente que um motorista bêbado te acertasse na calçada ou que um assaltante com o dedo nervoso no gatilho trombasse com você pela rua. Eu sei que você não pensava nesse tipo de coisa. Você era um rapaz normal, saudável, alegre.

E ultimamente, tenho pensado muito numa saída de emergência, mas só como uma ideia distante, só quando eu não suportar mais respirar a fumaça desse incêndio no teatro chamado vida. Mas a ideia de que eu jamais te encontraria se eu fizesse é atormentadora. Pois se existe um céu, eu sei que você está lá, mas não tenho certeza se é pra lá que eu vou quando minha hora chegar. Mas também não me vejo no inferno. Mesmo depois da vida, não pareço me encaixar em lugar algum.

Naquele Outubro, você foi embora e me tirou o direito de viver uma vida vazia, sem significado ou propósito. Você tirou de mim o direito de não ter ambição alguma, de não amar o fato de acordar respirando todos os dias. Você me deu esse sentimento de culpa por não ser o melhor que eu poderia ser, por não ter todas as coisas que poderia ter e de não alcançar a plenitude que eu sei que você alcançaria em meu lugar. Mas hoje, oito anos depois eu te exonero da posição de guia, da função de me orientar, da responsabilidade de ser o modelo do que eu quero seguir. Te tiro o fardo de ter que saber que eu fracassei porque você não estava mais lá. Nunca foi sua culpa. A culpa foi toda minha, o tempo todo. É hora de seguir em frente.

Eu vou te esquecer.

Eu te amo, mas eu preciso. É a única maneira da minha vida continuar. E ela vai continuar de um jeitou ou de outro.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Obrigado, estranha

Eu odeio acordar cedo.

Normal, acho que quase ninguém gosta. Fica aquela sensação de não estar de fato acordado, mas também não estar dormindo. É aquela uma hora, uma hora e meia que você levanta e fica no piloto automático. Eu tava assim hoje as nove e pouco da manhã quando saí de casa.

O de sempre: caminhada longa, fones de ouvido, mochila nas costas. Estou tendo uma semana boa, então diminuí com as músicas tristes e aumentei o passo. Foi quando passei por um ponto de ônibus e essa senhora me chamou atenção.

Tirei os fones para ouvir o que ela estava dizendo. Ela falava comigo como se estivesse continuando uma conversa que começou quando eu saí de casa. Conversava como se fôssemos amigos e eu não conseguia entender. Ela estava maltrapilha e cheirando a aguardente, foi então que eu entendi.

E não vou negar, a gente é escroto pra caralho. Muitos dias da minha vida eu simplesmente seguiria meu caminho e ignoraria o que a senhora tinha pra me dizer. É isso que a gente faz todo dia. Presenteamos com a nossa indiferença e todo e qualquer um que não tenha nada a nos acrescentar e puxamos sacos e corremos atrás de quem acreditamos ter mais do que a gente. Mas foi quando me despi dos preconceitos da aparência e prestei atenção no conteúdo da mensagem que ela passava que eu me surpreendi. E é por isso que escrevo esse texto hoje.

- Tenho 65 anos meu filho, vivi a vida toda pelos meus filhos, nunca tive tempo pra mim. Hoje to enfiada nessa merda, mas já estive muito melhor - apontou para o copo descartável com um líquido transparente abraçado por seus dedos negros e trêmulos. Sua mão estava ensanguentada e eu tentei entender porque, ela não parecia machucada.

- A gente não pode viver pelos "outro" não - ela continuou me fitando com olhos tenros como se eu fosse um filho ou um neto seu - faz da sua vida aquilo que tu "quer". Vá ser feliz e não deixa ninguém dizer que "cê" não pode. Nem família, nem "muié" e nem ninguém. Você estuda moço?

- Sim, estudo - respondi.

- E o que você estuda?

- História - eu já tinha parado, tirado os fones de ouvido. Eu estava intrigado por aquela figura que me abordou sem hesitação e trazia palavras que faziam tanto sentido pra mim. Logo hoje, logo agora.

- E é isso o que você quer pra sua vida?

Eu sorri sem graça e não soube responder. É isso que eu quero pra minha vida? Digo, eu gosto muito do curso, gosto do que estou fazendo hoje, mas nunca foi o que eu quis, nunca foi algo com o que eu sonhei.

- Eu não sei. - Respondi tentando não deixar o sorriso amarelo ir embora.

- Mas então "ouve" o que eu digo menino: vai atrás daquilo que você quer e deixa quem quiser falar, nada disso importa.

As palavras reverberaram na minha cabeça. Eu tinha que ir, mas não queria deixar aquela senhora falando sozinha, não queria ser rude e ter pressa o tempo todo como todo mundo faz. E, logo ali, comecei a tomar as decisões por mim mesmo: se eu não quisesse ter pressa, não teria. Pronto. Mas como uma figura sobrenatural que sabia exatamente o que dizer para ter minha atenção por alguns momentos, a senhora percebeu que eu tinha que ir. Estendeu a mão suja de sangue que apertei sem hesitar.

- Te serviu essa palavra rapaz? - perguntou ainda segurando minha mão.

- Muito. Eu precisava ouvir isso.

- Muito bem. Segue teu caminho e vai com Deus - beijou minha mão e a soltou como se deixasse ir, como se abrisse a gaiola de um pássaro preso há anos que já abandonara há muito seus sonhos de liberdade.

- E a senhora fique com Ele também. - respondi e retribuí a saudação mesmo sem acreditar em Deus algum. Ás vezes não é da fé que a gente precisa, mas é tentar tê-la que nos faz bem. - Tenha um bom dia.

Atravessei a rua e acenei de longe. Ela me acompanhou de sorriso no rosto. Pensei nela o caminho todo, pensei nela o dia inteiro de tal forma que agora tenho que dividir através dessas palavras o peso que senti com o simples gesto dessa senhora. Não foi com dó, piedade ou empatia que olhei nos olhos dela. A encarei como igual. Mais do que isso, encarei-a como alguém que havia vivido mais do que eu, que sabia mais do que eu, que tinha algo a acrescentar que talvez ninguém tenha.

Talvez fosse apenas a cachaça, talvez nem ela soubesse do que estava falando. Talvez tenha sido tudo um devaneio meu enquanto ainda no meio termo entre desperto e adormecido. Talvez eu esteja mesmo perdendo a sanidade. Mas isso realmente importa? Ela me fez lembrar do óbvio que muitas vezes a gente esquece. O oxigênio que respiramos todos os dias, mas que não lembramos existir a maior parte do tempo. Somos donos do nosso destino, de nossas vidas, de nosso próprio tempo. Parece óbvio, batido, clichê, mas hoje me soou como novidade.

Por adicionar sentido ao meu dia e à minha semana, obrigado estranha. E espero que encontre aquilo que estás a procurar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sobre filas de banco, nomes de puta e suicídio

Existem duas coisas que eu odeio com todas as forças nesse mundo mais do que quaisquer outras: a primeira é quando eletrônicos ou soluções práticas da tecnologia que servem para facilitar nossa vida não funcionam como devem e acabam atrapalhando mais. A segunda é tentar muito lembrar de alguma coisa e não conseguir. E nesse dia os dois estavam acontecendo ao mesmo tempo.

Lá estou eu parado na fila do banco tentando ao máximo lembrar quem era a moça irritantemente simpática que chegou com o marido e começou a conversar comigo como se fôssemos amigos há muitos anos e eu tentando fingir que sei do que ela tá falando. E pra começo de conversa eu só estava lá porque eu estava com um problema no Internet Banking. Fui até a agência, peguei uma merda de uma senha, sentei e esperei a minha vez quando chegou a convenção nacional de velhinhas que tem atendimento preferencial e vão me fazer esperar até o Natal. E a nossa amiga tagarela que sentou do meu lado e já chegou como se tivéssemos toda a intimidade do planeta e começou a conversar comigo sobre fulano e ciclano.

Ficou óbvio em determinado ponto da conversa que ela definitivamente estudou comigo no Ensino Médio. Foi entre ela me apresentar o marido e eu querer morrer por ter que tirar os fones de ouvido interrompendo uma linda canção sobre estar retardado de tanto cheirar cocaína. Pelo menos é o que eu acho que todas as músicas dos Stooges estão dizendo. E para piorar o cenário, eu estava um uma latente vontade de cagar que me fazia suar frio. E se você tivesse prisão de ventre, você saberia o quão sagrada é a vontade de cagar. Você tem que ir assim que ela aparece pois esses momentos são raros. Você se senta bem à vontade e espera até um cotovelo sair da sua bunda e até o último fio e cabelo do seu corpo se lamentar em arrependimento por não ter ingerido mais fibras.

Foi quando eu comecei a lembrar.

Eu estudei mesmo com aquela moça, não éramos amigos, mas fizemos um trabalho juntos uma vez. Talvez no segundo ano, não sei. Mas tanto faz. Já me sentia melhor por me lembrar quem era ela, mas ainda não lembrava o nome. Mas tinha certeza que era um nome de puta e travesti. Sim, existem nomes típicos de travestis e prostitutas.

E eu segui pensando os nomes para encontra o da dita cuja enquanto ela tagarelava:

-... então, no ano passado eu fiz uma viagem com (insira o nome de pessoas que ela acha que eu sei quem são, mas que eu não faço ideia de quem sejam) e foi muito bom, deu pra lembrar bem daquela época. A gente era foda pra caralho, você lembra de quando (não prestei atenção nessa parte)...

-
Lembro, claro! (Brenda, Caitlyn, Carolayne, Kelly...,)

-...
e depois da faculdade eu meio que fiquei sem saber o que fazer e tal foi quando eu conheci o (nome do trouxa do marido)...

-
Poxa, feliz por vocês? Já faz quanto tempo? (Natasha, Rebeca, Sabrina...)

-
Vão fazer dois anos agora em Novembro.

- Pra você ver como o tempo passa né? (Camile, Daniele, Emmanuele - e eu sei que você pensou no que eu pensei - Manu..) 

- Mas e o Pedrão, vocês ainda são amigos?

Mannuelly com dois N's, dois L's e Y. Eu me lembrei, mas foi quase irrelevante quando ela perguntou do Pedrão. Oficialmente, Pedro Luiz, mas todo mundo conhecia por Pedrão pra não confundir com o Pedro Victor que era o Pedrinho. Todo mundo conhecia o Pedrão, conheciam tanto que ninguém dizia meu nome, as pessoas falavam do "moleque franzino que tá sempre com o Pedrão". Acho que metade das pessoas que já estudaram comigo ou dividiram um trago só me conheciam por "parceiro do Pedrão". Mas não era por menos, todo mundo conhecia o Pedrão. Todo mundo mesmo.

Pedrão já frequentava o meio universitário antes de terminar o segundo ano. Era o filho da puta mais gente boa do planeta, não houvesse um só cara que não gostasse do Pedrão. Os que o faziam era por inveja pois Pedrão com 21 anos já tinha comido mais bocetas do que nós comeríamos a vida toda A mulherada era louca por ele. Pedrão era bonito, legal, inteligente, conhecia todo mundo e inventava um apelido pra quase todos que conseguia. Era difícil sair com ele sem encontrar alguém que o conhecesse. Ás vezes ele chegava a ser irritante por ser tão legal.

Ele tinha um sorriso perfeito, mas a risada dele era escandalosa e escancarada e quase sempre vinha acompanhada de um ronco quase suíno e constrangedor. Mas isso nunca o incomodou. Pedrão era despido de qualquer vaidade, de qualquer vergonha. Carregava um sorriso honesto, ingênuo o bastante pra enganar, quase bobo. De bobo ele não tinha nada, muito pelo contrário: embora benevolente, foi sempre cheio de malícia e segundas intenções.

Começamos a perder contato quando ele foi cursar medicina em outra cidade. Ele voltava nos fins de semana, mas a gente nunca tinha tempo, os ciclos mudaram, a vida caminho num sentido diferente para cada um de nós. É assim que as coisas são, nós éramos amigos até que, um dia, não éramos mais. Cada um tinha sua vida e, de vez em quando, a gente se falava isso sempre bastou. Nunca cobrei muito das pessoas e não gosto dessa cobrança também.

Mesmo assim, eu fui a primeira pessoa a chegar ao hospital. Pedrão tinha vinte e cinco anos quando deu um tiro na própria cabeça. Foi o cara que dividia quarto com ele que ouviu o tiro e socorreu Pedrão só de cueca caído no chão com a cara enfiada numa poça de sangue vermelho vivo. Ele tinha largado a faculdade há algumas semanas e fazia um tempo que ninguém o via.

Não entrava na minha cabeça essa história. Pedrão era o extremo posto do cara que eu imagino ser um suicida. Pedrão não era o moleque do fundo da sala que não tinha amigos. Pedrão não sofreu abuso sexual quando era criança. Pedrão não tinha um histórico de violência na família. Ele vinha de uma boa casa, de uma boa formação. Era um cara alegre e vibrante que estava sempre sorrindo e tinha amigos de sobra. Pedrão era o cara que não ficava um só final de semana em casa desde que tivesse saúde o bastante pra ir encher a cara. Ele não costumava ir pra cama sozinho por falta de opção e tinha uma caralhada de aspirações, vontades, sonhos. Não sei se você entende, mas ele não era do tipo que eu pensava que fosse desistir.

Porém a história dele não acabou ali. Pedrão errou o tiro que tiraria sua vida por alguns centímetros. A falha que salvou sua vida. É bem verdade que ele esteve em coma por um tempo e ele teve algumas sequelas. Mas Pedrão voltou a falar, a pensar, a respirar sozinho. Ele teve que reaprender a andar de novo. Largou a cadeira de rodas 17 meses depois do disparo que quase tirou sua vida. Conseguiu andar sem muletas depois de 21 meses mesmo que ainda mancasse. Pedrão sobreviveu ao que parecia impossível. Mas havia algo de errado.

Pedrão se tornou Pedro Luiz de novo, uma máquina humana que respirava, acordava, dormia, metabolizava energia e cagava, mas eu nunca mais tive certeza de que estava viva, mas estava óbvio que o Pedrão que eu conhecia morreu no chão daquele quarto de República. Seu sorriso rareou, não havia mais risada escandalosa com ronco, não havia mais aquela malícia no seu olhar. O que sobrou era uma versão reconfigurada e rasa dele. Um projeto de qualquer coisa que jamais será coisa alguma. Me senti culpado por pensar assim, mas sofri mais vendo aquele Pedrão sobreviver do que quando eu tive certeza de que ele não sairia da UTI.

Eu nunca consegui perguntar o porquê, o como, o quando. Eu nunca tive coragem e sempre que entrávamos no esse assunto, ele era evasivo, dizia não se lembrar de nada nos dias que antecederam o tiro. Eu não conseguia imaginar o que teria feito ele perder a fé daquela maneira, mas sabia que aquilo ceifou algo mais que valioso que sua vida. Aquele tiro levou embora sua vontade de viver, a vibração que ele tinha e acho que a morte não pode ser algo muito pior que isso. Eu nunca soube e nunca vou saber o que ele viu, ouviu, viveu, sentiu que lhe fez tomar um decisão tão drástica para com a própria vida, mas eu temo todos os dias desde então.

Pedrão era o melhor de nós, o mais forte. Se ele não estava seguro, quem estava?

- Putz! Faz muito tempo que eu não vejo ele. Olha, meu número! Deixe-me ir, foi bom te ver.

Levantei olhando o monitor que apontava a minha senha e nem dei tempo pra antiga colega se despedir. Sentei na frente do rapaz de gravata que sorria e perguntava no que podia me ajudar enquanto eu pensava que deveria tirar o esquecimento da minha lista de coisas que eu mais odeio. Ás vezes é melhor não lembrar.