segunda-feira, 15 de junho de 2015

A Sétima Torre - Boa vizinhança

Antes de tudo, certifique-se de ler o anterior
PARTE 1 - A Sétima Torre - No Princípio

Eu não consigo recordar qual é exatamente a primeira memória que eu tenho do meu pai, mas quando me esforço ao máximo para lembrar-me dele no mais profundo recanto das imagens de minha infância vejo ele no escritório fazendo contas com uma calculadora, fumando e ouvindo João Gilberto ou Erasmo Carlos. Mas o detalhes mais característico dessa lembrança é o cheiro da fumaça dos cigarros que se amontoavam no cinzeiro. Meu pai fumava quase dois maços de Continental por dia e quando a marca parou de circular, ele acabou trocando sob muitos protestos pelo Marlboro que ele dizia ser uma marca de mulher. Talvez por isso ele passou a fumar ainda mais.

Essa primeira memória que tenho de meu pai está diretamente associada a última que tenho: ele já muito velho, magro com seus poucos cabelos já grisalhos totalmente irreconhecível deitado numa cama quase morto. Ele lutou por quatro anos bravamente contra o câncer, mas nunca conseguiu parar de fumar.  E nem isso me fez deixar de herdar o hábito e o vício dele.

Eu também fumava quase um maço de Marlboro por dia e, embora tenha tentado parar por mais vezes que eu posso contar, eu continuava mesmo depois de duas cirurgias e não sei quantas sessões de quimioterapia quando os médicos praticamente disseram que deveríamos desistir e o mandaram de volta pra casa e montamos uma UTI na velha fazenda. Nesses dias, ele não parecia nada com o homem bem humorado e brincalhão que sempre foi. Ele agora estava cada dia mais ranzinza, rabugento e reclamava com tudo o tempo todo. Enquanto pode, andava para cima e para baixo arrastando um cilindro de oxigênio num carrinho cujas rodinhas rangiam de maneira insuportável. Você poderia saber onde meu pai estava mesmo a quilômetros de distância graças ao barulho das rodinhas e aquela tosse que parecia que só iria acabar quando ele vomitasse os próprios pulmões, mas mesmo assim ele encontrava maneiras de se esconder pela casa e roubar um cigarro meu aqui e ali. É triste dizer, mas foi um alívio quando ele já não podia mais andar.

Pouco tempo depois, ele faleceu. Há muito já não parecia mais com qualquer coisa que consideremos viva, mas o destino quis que ele morresse oficialmente na noite de 20 de Abril de 2003, meu aniversário de 30 anos. Talvez um irônico castigo do destino devido ao fato de eu não ter parado de fumar mesmo vendo meu pai naquele estado, talvez sentenciando meu próprio filho ao mesmo destino de ver seu pai definhando numa cama e até mesmo repetir os mesmos erros e ter o mesmo sentido.

Em vida, ele um grande pai, um bom marido, mas a sua relação mais íntima era com o dinheiro. Tudo o que ele tocava tornava-se ouro. Ele tinha a capacidade fantástica de multiplicar qualquer investimento, tinha uma visão fora do normal, mas talvez o seu conservadorismo o tenha impedido de chegar mais longe. Meu pai era um homem à moda antiga, nunca gostou de computadores ou telefones celulares. Até mesmo a máquina de escrever sofria com seu olhar de desprezo e desconfiança. Quando morreu, meu pai nos deixou uma empresa, vários imóveis e investimentos variados e, até então em minha vida, dinheiro nunca foi uma preocupação.

Embora o mais intenso sonho de meu pai fosse me ver um dia herdando todo o seu legado e tomando controle dos negócios da família, eu sempre tive planos diferentes com os quais ele nunca concordou. Me formei em Jornalismo e sempre quis ser um escritor, mas ele sempre achou isso pura perda de tempo. Minha irmã tomou o próprio caminho, mas ele não se importou muito. Logo cedo, ela saiu de casa, tornou-se independente e bem sucedida, já eu nunca saí da sombra de meu pai totalmente. Trabalhava com ele administrando os negócios mentindo para mim mesmo que era algo temporário enquanto traçava planos que nunca cumpri. Por essas diferenças, eu e meu pai nos odiamos bastante antes dele adoecer. E quando isso aconteceu, pela primeira vez, senti-me realmente motivado a assumir o comando do legado que meu pai construiu.

Uma pena que eu falhei miseravelmente.

Assim que ele morreu, eu me vi totalmente perdido e não sabia como administrar o patrimônio, como investir, contratar, organizar ou liderar. Em dois anos, a empresa estava quase quebrada e já tínhamos esgotado quase todas as reservas de capital que ele havia deixado. Desesperado, busquei ajuda de um velho sócio dele, seu braço direito em todas as suas decisões em vida. Os detalhes são menos importantes, o que é vital nessa história é que saibam que acabei confiando demais nesse homem e ele acabou me passando para trás. Sorrateiramente, tomou pra si boa parte do patrimônio que meu pai deixou, o controle da empresa, quase todos os fundos de investimentos restantes, imóveis e automóveis e durante anos travamos uma ferrenha disputa judicial pelo controle de todos esses bens. E é meio triste dizer isso, mas felizmente ele faleceu há alguns anos e sua esposa - uma pessoa muito mais racional e serena - soube tratar do assunto de maneira mais justa e chegamos a um acordo proveitoso para ambas as partes. Mas voltemos aos tempos de vacas magras.

No ano de 2007, eu havia posto tudo a perder, não havia mais nada, estava quebrado e com o orgulho extremamente ferido. Quando sofri o golpe, não me restou quase nada e me vi obrigado a vender a própria casa onde eu morava e me mudar para o último imóvel de meu pai que não estava ocupado por inquilinos ou tomado pelo sócio: o apartamento 1602 da Torre 7 do Condomínio Residencial Bandeirante numa cidade do interior do Estado.

Em Julho daquele ano me mudei com minha esposa e filho para o apartamento onde tia Ofélia morou até morrer. O apartamento que meu pai sempre quis vender, mas nunca conseguiu. A região tinha se desvalorizado, o condomínio estava quase todo desocupado, a imobiliária responsável estava prestes a declarar falência e um novo shopping tinha interesse na região. O objetivo do projeto inicial era ser um escape para a classe média, mas alguém planejou algo errado e a região não prosperou, pelo contrário: todo o entorno do bairro foi tomado por favelas o que desvalorizou brutalmente o investimento.

Quando eu finalmente me mudei, não pensei muito na minha primeira experiência naquele lugar mais de vinte e cinco anos antes. Parecia apenas uma turva lembrança de criança distorcida pela minha imaginação fértil e perdida entre tantas outras memórias mais relevantes. Mas a partir do momento em que abri a porta pela primeira vez, tudo aquilo que eu passei quando tinha oito anos de idade voltou de maneira avassaladora. No primeiro momento em que o piso de madeira rangeu sob meus pés, eu lembrei do garoto do sexto andar, da água escura e daquela coisa que eu vi ou acredito ter visto. Mas nada disso importava, eu era um homem feito, um pai de família, um adulto que não deveria se amedrontar por traumas de criança e coisas que eu nem tenho certeza se realmente aconteceram.

Mas o fato é que eu morei naquele apartamento por apenas cinco meses por motivos dos quais eu nunca falei até então. Motivos que fizeram com que eu questionasse minha sanidade.

Naquele tempo, eu estava dedicado a escrever meu primeiro romance e vivia uma momento de muita fertilidade criativa. Ideias pipocavam o tempo todo na minha cabeça e eu passava a maior parte do tempo em casa na frente do computador escrevendo e captando informações. Eu escrevia, editava, excluía, recomeçava. Para um pouco, tomava um ar, bebia um café, assistia TV, fumava cigarro, saía para dar uma volta. Todo o processo natural pelo qual todo escritor passa. Foi numa dessas saídas que eu comecei a notar: minhas coisas nunca estavam no lugar onde eu as deixava.

Eu deixava as minhas chaves na prateleira do quarto e elas apareciam penduradas no chaveiro da sala. Eu trazia uma caneca com café e leite para o escritório e a colocava em cima da mesa, mas quando percebia ela estava numa mesa diferente daquela na qual a deixei. A princípio, achei coisa pouca. Ninguém em casa percebeu algo estranho e eu era o que menos saía. Meu filho tinha sete anos passava o dia entre escola e aulas de natação e judô. Minha esposa na época era professora de dança e quando não estava trabalhando provavelmente estava com meu filho em algum lugar. Mas foi numa manhã de sábado que algo realmente me atormentou.

Eu queria sair para tomar um ar, sentar no jardim que havia do lado do edifício, ver um pouco do sol e decantar minhas ideias, mas não conseguia encontrar minhas chaves. Eu já tinha desistido quando deitei de novo na cama e ouvi o familiar barulho do metal, típico de molhos de chaves. Elas estavam dentro da fronha do meu travesseiro e eu não fazia ideia de como foram parar ali. Eu me lembro de deixá-las por cima de qualquer lugar, mas não havia como aquelas chaves terem ido parar ali. Obviamente eu fiquei assustado e impressionado, mas em momento nenhum associei ao fato de o escritório ficar repentinamente frio durante as madrugadas em que eu estava escrevendo ou como todo o encanamento parecia contorcer-se e gerar um estupendo barulho por toda a casa principalmente à noite. Nem me lembro de contar quantas vezes eu tive que tirar os fones de ouvido por ter pensado que ouvi alguém chamar meu nome.

Também nunca associei isso à insuportável crise de tosse de um dos vizinhos que poderia ser ouvida mesmo com a TV ligada.

Me lembro muito bem do dia em que eu percebi que havia algo muito errado acontecendo naquele lugar. Haviam apenas três semanas desde que nos mudamos e eu estava passando por uma crise criativa depois de ter escrito quatro capítulos quase que sem interrupções. Minha esposa havia insistido muito para que eu fosse com ela para São Paulo no final de semana e depois de muito discutirmos, ela resolveu ir sem mim. Ela levou o garoto e eu fiquei sozinho naquele apartamento onde um dia Tia Ofélia andou arrastando seus chinelos para lá e para cá. Eu não podia ir, estava tendo um grande surto criativo e precisava escrever tudo o que eu conseguisse no menor tempo possível. E quando eu falo de surtos, são eventos realmente anormais como acordar no meio da madrugada e sair da cama para escrever ou começar a fazer anotações em qualquer pedaço de papel antes de perder uma ideia. Todos os nossos boletos de contas, revistas, jornais, catálogos, agendas e livros eram rabiscados de cima a baixo, vítimas de meus ataques compulsivos de criatividade. Mas assim que eles passaram pela porta e foram embora, toda a criatividade se foi.

A noite foi caindo, o céu lá fora escurecendo e eu fiquei não sei por quanto tempo na frente do computador sem acrescentar uma nova linha ao que estava escrito. Eu estava claramente bloqueado quando o cenário tornou-se mais dramático no momento em que eu percebi que só tinha mais um cigarro no meu maço de Marlboro. Ainda não eram nove da noite quando tomei coragem de ir buscar novos maços. Havia uma loja de conveniência num posto de combustíveis bem perto do condomínio, mas mesmo assim apanhei as chaves do carro - que agora estavam no lugar certo - pelo simples e preguiçoso hábito metropolitano de ir de carro a todo lugar e tendo fé absoluta de que se um dia fizerem automóveis que caibam no banheiro, sairei da cama para dar uma cagada atrás do volante.

Vesti um casaco pois era Julho e fazia muito frio e eu não lembrava onde tinha deixado meu isqueiro. Como eu estava com pressa e sem um pingo de paciência, passei na cozinha e peguei uma caixa de fósforos longos. Saí do apartamento e no corredor enquanto girava a chave duas vezes para trancar a porta da sala, ouvia aquela tosse áspera e seca do vizinho que parecia ainda mais alta e insuportável do lado de fora. Guardei as chaves, chamei o elevador e não pensei muito nisso.

Havia uma fila bem comprida e uma atendente com quase nenhuma vontade na loja, então levei certo tempo. Aproveitei para comprar refrigerante e um monte de porcarias para comer durante a madrugada enquanto tentava recuperar meu ritmo de trabalho. Não levei mais de meia hora entre o momento em que saí de casa e o momento em que entrei de novo no elevador, dessa vez indo para cima ao invés de para baixo.

Quando a porta se abriu no décimo sexto andar, o silêncio absoluto pairava no ar e a luz branca da lâmpada florescente do corredor parecia fosca e opaca. Eu enfiei minha chave no buraco da fechadura e destranquei a porta quando ouvi de novo a tosse forte e seca, mas dessa vez ela vinha acompanhada de um rangido metálico, o tipo de som produzido pelo atrito entre duas superfícies metálicas oxidadas.

Eu olhei para a esquerda antes de abrir a porta e vi alguém vindo pelo corredor.

Era um velho magro e pálido vestindo uma camisa de botões. Cabelos grisalhos e a pele manchada. Ele tossia como se não houvesse amanhã e arrastava junto com ele num carrinho de metal um cilindro de oxigênio. A tosse afobada pela máscara de inalação, o barulho ensurdecedor da rodinha do carrinho se movendo pelo corredor. Ele chegava perto enquanto eu o fitava e ele me olhava de volta fixamente como se estivesse vendo um fantasma. Ele se aproximou, abriu a porta do 1601, entrou e desapareceu quando ela se fechou.

Entrei em casa, fechei a porta atrás de mim, encostei as costas nela e praticamente desabei no chão. Caí sentado largando as sacolas de compras no chão com a respiração ofegante como se tivesse corrido seis maratonas. Consegui abrir um dos novos maços e enfiei um cigarro na boca, mas minhas mãos tremiam tanto que quando eu abri a caixa de fósforos para acender, acabei derrubando todos pelo chão.

Meu pai havia morrido há quatro anos, mas eu tinha acabado de vê-lo entrando no apartamento 1601.


Eu fiquei um bom tempo sentado no chão dizendo para mim mesmo o que aquilo não era possível. Talvez eu tivesse dormido muito pouco ou realmente era uma pessoa muito parecida com ele. Mas não podia ser, não tão parecida. Eu não sabia se minha razão se perdia ou se eu a encontrava minutos depois quando resolvi levantar do chão, cuspir o cigarro e sair do apartamento.

Eu cheguei ao corredor aos tropeços e apertei insistentemente a campainha do mil seiscentos e um. Apertei a campainha, bati na porta, gritei. Eu esmurrei a porta, tentei abri-la em vão. Ninguém me atendia, mas eu podia sentir alguém do outro lado me observando através do olho mágico, me pregando uma peça cruel e desesperada. É como se eu pudesse sentir outra pessoa respirando através das fibras da madeira daquela porta. Algo tão vivo quanto eu, mas nem um pouco humano como nós. E eu ainda ouvia aquela tosse seca e que parecia não acabar nunca.

Voltei para dentro de casa, tranquei a porta e interfonei no 1601. Eu podia ouvi-lo tocar de dentro da minha casa, mas ninguém atendeu. Depois telefonei na portaria quase em prantos. Pedi que ligassem para o dezesseis-zero-um que eu queria falar com qualquer pessoa que estivesse lá para me atender. Inventei uma história confusa e meio estúpida sobre o barulho e até citei a tosse que eu ouvia, mas a resposta em tom irônico do porteiro não foi bem uma surpresa:

"Cê tá de brincadeira? Você é o único morador do andar inteiro."





sábado, 13 de junho de 2015

Ao meu velho eu

Olá Vitor,

Eu sou você daqui exatamente dez anos. Hoje é dia 13 de Junho de 2015 e o mundo não acabou até agora. Estou com vinte e três anos, você com treze. Quase nada do que você imagina para sua vida nos próximos dez anos vai acontecer da maneira que você pensa, mas não se preocupe, aqui vão alguns conselhos que vão facilitar muito a sua caminhada.

Para acreditar que eu sou você mesmo, ontem foi aniversário do Doda (que aí ainda não é Doda, apenas Lucas) e você perdeu dez reais que caíram do bolso da sua calça, mas encontrou o dinheiro de novo na porta de casa - uma sorte que não vai se repetir muitas vezes na sua vida. Há quase três meses atrás você não aguentou segurar e mijou nas calças voltando pra casa porque teve vergonha de fazer na frente dele e acabou passando um vexame maior ainda. Ele nunca contou pra ninguém, mesmo dez anos depois.

Não desista das aulas de violão, uma hora você vai começar a se dar bem com isso. Aliás, baixo não é a sua praia, você vai ser um guitarrista. Não desista disso, mas não crie grandes expectativas. Seu ouvido é ruim, você não vai ser o próximo Hendrix, mas vai ser um ótimo hobby na sua vida nos próximos dez anos. Você também não é e nunca vai ser um bom cantor, desculpe avisar, mas é bom que desista já dessa ideia. Criar essas expectativas altas só vai te frustrar e você vai se odiar bastante por isso.

Desista dos desenhos também, você não tem talento. Mas isso não é um problema.

Mantenha todos os rascunhos daquelas histórias malucas que você inventa na sua cabeça, eles vão ser úteis no futuro. Leia muito e exercite a sua escrita o máximo que puder. É a única coisa em que você vai chegar perto de ser bom. Seguindo esse conselho você vai ser melhor do que eu sou hoje.

Comece a ler "As Crônicas de Gelo e Fogo" nos próximos anos. Em 2011, os livros vão virar uma série de televisão e você vai se arrepender por ter começado a assistir antes de ler os livros e vai se odiar por isso.

Meu álbum favorito é "Ruiner" de uma banda chamada A Wilhelm Scream. Ele ainda não foi lançado no seu tempo, mas ouça o predecessor dele que chama-se "Mute Print". Também é muito bom. Também tem o disco auto-intitulado do Alexisonfire. Você não vai gostar muito quando ouvir a primeira vez, mas vai se tornar um dos seus discos favoritos.

Ainda nesse ano de 2005 o São Paulo vai vencer a Libertadores da América. Acredite ou não, hoje você gosta muito, muito de futebol e é são paulino doente. Aproveite muito esse título e também o Mundial de Clubes que o São Paulo vai ganhar. Você não verá outro até aqui.

Ano que vem, a Itália vai ganhar a Copa do Mundo. E em 2010, a Espanha vai vencer seu primeiro título. A Copa do Mundo de 2014 vai ser no Brasil e a Alemanha vai ser campeã, assista aos jogos que puder no estádio, mas não vá ao Mineirão na semifinal.

Leia O Apanhador no Campo de Centeio. Você tem treze anos e talvez ainda não entenda exatamente - e o livro é bem chato - mas ele vai te guiar muito bem nos próximos quatro ou cinco anos. Aliás, leia tudo o que conseguir: livros, Histórias em quadrinhos, revistas e jornais.

E assista um filme de Cameron Crowe chamado "Vanilla Sky". Se não entendê-lo, pesquise na internet sobre o significado do filme.

Aliás, use a internet com sabedoria e não perca tempo demais no mundo virtual. Tem coisas acontecendo lá fora. Mas é uma ferramenta que vai te ensinar muitas coisas e através dela você vai conhecer muita gente legal. Até uma namorada ou outra.

E por falar nisso, não se sinta intimidado com as garotas. Sim, você não é nada atraente e é bastante chato, mas a maioria delas é tão insegura quanto você e algumas vão enxergar algo que eu até hoje não entendo. Leve isso com naturalidade ou vai acabar se frustrando e se odiando por isso.

Fique atento a 2007. Vai ser o pior ano da sua vida, mas vai te ensinar muitas coisas. O mundo lá fora é feio, sujo e vai destruir todos os seus sonhos. Esteja preparado para quando isso acontecer e encare tudo como um vencedor.

Não confie no homem que mora na sua casa, ele vai te virar as costas no momento mais difícil da sua vida. E quando se apaixonar por uma garota no primeiro colegial, conte pra ela. Você provavelmente vai levar um fora, supere. Se não o fizer, vai levar a dúvida por anos e anos e vai se odiar por isso.

Se ela por um milagre corresponder, simplesmente desencane. Ela não é pro teu bico.

E deixe de achar que você precisa obrigatoriamente ter uma namorada. Aprenda a ficar com garotas casualmente. É algo que eu não consegui aprender, mas tenho fé que você pode corrigir essa deficiência se parar de ser imbecil.

Aprenda a dirigir. Você tem 23 anos e ainda não sabe. Isso te incomoda e incomoda as pessoas a tua volta mesmo que elas não digam. Aprenda a cozinhar também, você vai achar legal.

Aproveite a amizade do Leo. Ele é muito mais seu amigo do que você dele. Vocês dois não tem mais muito tempo. Visite-o no hospital quando acontecer. Você pode se chocar com que vai ver, mas vai deixar de ser um bunda mole e se odiar menos por isso.

Nunca comece a fumar. Você não vai conseguir parar, vai arrebentar sua saúde, seu bolso e você vai cheirar a cigarro o tempo todo o que vai te incomodar e incomodar outras pessoas e você vai se odiar por isso.

Pare de sobrecarregar as pessoas com seus problemas e frustrações. Esse é um defeito que eu tenho até hoje e adoraria corrigir, mas tornou-se um hábito difícil de quebrar. De preferência, não seja tão transparente, não deixe que vejam o que você realmente sente e quais são seus medos e aflições. Simplesmente não fale sobre isso.

De maneira geral, fale menos sobre tudo. Você fala demais e isso cansa as pessoas.

Não perca tempo sentindo pena de si mesmo e aprenda o mais rápido possível que sua vida segue em frente com ou sem você. Eu perdi cinco anos da minha vida por isso, não cometa o mesmo erro.

Não acredite quando as pessoas disserem que dinheiro não traz felicidade e/ou que não é primariamente importante e tal. Você vai passar a vida inteira correndo atrás dele. A não ser que siga esse conselho: em 2010, ano que você completar 18 anos, aposte nos números 02 – 10 – 34 – 37 – 43 – 50 na MegaSena da virada. Você vai ganhar o prêmio junto com outras quatro pessoas e vai faturar trinta e oito milhões. Use esse dinheiro para ajudar sua família e construir seu futuro, mas principalmente, use-o para viajar e conhecer o mundo.

Nunca sob circunstância alguma coloque qualquer pessoa num pedestal. Todo mundo tem seu valor, mas você tem que reconhecer o seu o quanto antes.

Ano que vem, uma garota que você nem conhece vai te dar um tapa na cara porque você não quis ficar com a amiga dela - que você também não conhece. Acerte um soco na cara dela com toda sua vontade. Não se preocupe, a gente resolve depois.

E também no ano que vem você vai gostar de uma garota da sua turma. Desista, é problema.

Você nunca vai ter uma barba. Pode parecer algo idiota agora, mas você vai sentir muita inveja de quem tem.

Seu pênis não é pequeno, ele tem o tamanho normal. Você é que tem complexo de inferioridade e se odeia.

Se você seguir o conselho da Mega Sena, não vai passar por isso, mas caso seja estúpido o bastante para não fazê-lo saiba que as pessoas vão te cobrar muito que você faça uma faculdade. Não se convença. Não há nada de mágico nas instituições de ensino. Não é tão importante assim e você não vai se divertir lá.

Quando sua mãe for morar em São Paulo, vá com ela. Não perca tempo nessa cidade, não há nada pra você aqui.

Saiba que o maior crime cometido pela humanidade é a nossa casual falta de empatia e indiferença frente ao desespero de outras pessoas. Ninguém nunca vai se apiedar por você, ninguém se importa com o seu sofrimento e sua angústia e quando você fala sobre isso e espera que elas te auxiliem não está apenas soando patético como está sendo de fato.

Todavia,  jamais replique esse erro.

Eu cheguei até aqui acreditando na humanidade a espero que você também o faça. Seja o melhor que puder para todo mundo a sua volta. Não seja vingativo ou rancoroso e tente resolver de maneira direta qualquer problema que tenha com qualquer pessoa. Mas busque sempre se colocar no lugar delas e entender o que faz com que elas pensem como pensam e sejam como são.

E pare de pensar em suicídio. Você não vai fazer.

Por fim, tente se odiar menos. Você vai conviver consigo mesmo para sempre e a identidade que você vai construir pelos próximos cinco anos é o que vai definir quem você é pelo resto da vida.

Acredito que se seguir esse conselho, você vai chegar aos 23 mais feliz com o que é e com aquilo que vivenciou em sua jornada. E assim não precisará escrever outra carta como essa.

Boa sorte;
Vitor Pavani.

Ribeirão Preto, 13 de Junho de 2015.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A Sétima Torre - No Princípio

Até hoje, eu nunca quis contar essa história. 

Talvez por não sentir necessidade para tal, por não sentir vontade ou ânimo para explicar tudo o que se passou naquele tempo, mas, principalmente, por medo eu tenho fingido há anos que aquilo não aconteceu. Acreditei que se eu não falasse sobre isso e tentasse não lembrar minha mente apagaria aos poucos as memórias construídas durante os cinco meses mais terríveis de minha vida. De certa forma, tal estratégia funcionou. Me lembro com mais clareza da primeira vez que entrei pela porta do apartamento 1602 da Torre 7 do que da última na qual deixei o imóvel de uma vez por todas. 

Nomearam o projeto de "Condomínio Residencial Bandeirante" em homenagem aos homens que desbravaram o interior do país. Aqueles mesmos que há um século ou talvez dois enfiaram-se mata adentro procurando terras cultiváveis e recursos minerais. Onde, sobre aquela mesma terra, mataram dezenas de nativos brasileiros, tanto em uma alegada legítima defesa quanto por pura crueldade ou seguindo aos desmandos de aristocratas e latifundiários, heróis ou vilões de um passado distante antes de derrubarem quase toda a mata e urbanizarem toda a faixa do litoral ao noroeste do Estado. Com o tempo, a mata deu espaço ao café, à cana e as ferrovias por onde passaram incontáveis locomotivas e histórias. E depois às cidades que se espalharam às margens do caminho que o café fazia para chegar ao litoral. Cidades que hoje cresceram, se expandiram e abandonaram velhos costumes e zombam de antigas crendices e superstições. Cidades que hoje não acreditam em histórias de fantasmas ou coisa pior.

O projeto contava com sete imponentes edifícios de vinte andares cada um se erguendo sobre o antigo leito de uma pedreira na Zona Sul da cidade. Com direito a área de lazer, quadra poliesportiva, uma praça, duas piscinas (pelo menos, era o que havia no tempo em que lá morei), a morada era sonho da classe média suburbana que anseia fugir da caos civilizado e da presença da plebe, dos subalternos, dos arruaceiros e toda aquela gente que se parece muito conosco a olho nu, mas que fazemos questão de diferenciar e segregar vestindo-nos da máscara de intelectuais leitores de tabloides e das marcas que são caras simplesmente por serem.

No ano de 1978, o condomínio foi entregue e, como me recordo bem, estive lá pela primeira vez no ano de 1981. Era Maio, começo de Outono, mas já fazia frio. Eu tinha apenas oito anos de idade e visitávamos uma tia que morava no mesmo lugar onde, um dia, eu viria a morar. 

Lembro-me bem que eu observava maravilhado pela entrada do condomínio as três torres que se erguiam de cada lado da rua que traçava uma leve subida em direção a um balão de retorno onde, no final da via repleta de lombadas ficava a Torre 7. Ela era idêntica às outras seis, mas parecia mais imponente e, mesmo tendo o mesmo número de andares, era mais alta por estar no ponto mais elevado do terreno. Maravilhado, de novo fiquei, ao entrar no elevador onde minha mãe fazia cara feia para me impedir de apertar os botões de todos os andares. Lembro da espera com a estranha sensação de estar subindo sem sair do lugar, da luz quente que se esparramava do teto, da conversa dos meus pais e da luzinha acesa no botão de número 16. Quando chegamos, a porta barulhenta se abriu e saímos pelo corredor onde se encontrava a porta do apartamento. Um-Meia-Zero-Dois, em algarismos metálicos sobre uma porta de madeira escura. O número seis era levemente tombado para a esquerda e aquilo me incomodava de maneira surpreendente. Tocamos a campainha. Do lado esquerdo do apartamento 1602, havia o apartamento 1601. Os outros apartamentos se espalhavam pelo corredor que dava a volta os elevadores e nas escadas de incêndio formando um octágono assimétrico onde contavam-se, além dos números 1601 e 1602, os números que iam do 1603 ao 1608.

Tia Ofélia era uma dessas senhorinhas de sorriso fácil. Tinha a pele tão pálida que chegava a esverdear-se e seu pouco cabelo formava ondas grisalhas que cobriam sua cabeça e que, na minha cabeça de garoto de oito anos, parecia uma nuvem pairando sobre a cabeça dela. Com oito anos de idade, era tudo que eu sabia sobre a gentil senhora que abrira a porta do apartamento 162 e nos recebeu com entusiasmo. Tia Ofélia era, na verdade, tia de meu pai, irmã de minha já falecida avó e, pelo jeito, já não tinha mais ninguém. Pais, irmãos, marido e até um filho já tinham partido e deixado Dona Ofélia para trás, sozinha. Meu pai era o parente mais próximo que ela tinha e já há um bom tempo não se falavam e, naquela tarde, ele resolveu enfiar a família no carro, sair de São Paulo e fazer uma visita.

Meu pai, minha mãe e tia Ofélia logo se dispuseram a por a conversa em dia enquanto eu admirava todo o apartamento  que parecia escuro mesmo que a luz entrasse com abundância pelas grandes janelas e vitrais. Um cheiro típico de casa de vó pairava no ar e toda a mobília parecia estar já na família há anos, talvez até fundida ao assoalho de madeira em tom que ficava entre o bege, o marrom e o amarelo e que ajudava a produzir uma curiosa reverberação do som dentro daquele apartamento. Quando voltei lá, mais de vinte e cinco anos depois, também achei curioso como as paredes grossas e o assoalho de madeira do grande apartamento de quatro quartos causavam um eco bem característico.

E também senti a mesma estranha sensação de estar sendo observado por alguém ou alguma coisa. Ou qualquer coisa que tenha olhos para olhar ou um nariz para farejar talvez.

Não levou muito tempo até que eu ficasse entediado e eu não tinha a mesma capacidade da minha irmã que, mesmo mais nova, se comportava sempre como uma boa menina. Me deixar entediado com oito anos de idade num apartamento de uma velha viúva que mais parecia um relicário ou uma loja de antiguidades não era sensato.

- Mãe, posso descer para brincar no parquinho? - minha mãe me olhou com a cara que sempre olhava quando eu interrompia uma conversa de adultos. Aquele olhar que dizia muita coisa sem uma única palavra.

- Peça a seu pai.

- Posso pai? Por favor, diz que sim?

Meu pai olhou relutante tragando um cigarro. Primeiro para mim, depois para minha mãe e eu já sabia que a resposta não seria positiva. Foi quando falou tia Ofélia, Santa Ofélia intercessora dos meninos entediados.

- Deixa ele ir Cícero. Deixa o menino se divertir. - o sorriso aconchegante dela voltou a se abrir.

- Pode ir Pedro. Mas leve sua irmã. - disse meu pai contrariado - e vê se toma conta dela.

- Eu não quero ir. - as palavras doces de minha irmã me enxeram de entusiasmo. Não ter que cuidar dela era tudo o que eu queria mesmo sabendo que, quase sempre, era ela que cuidava de mim, mesmo mais nova e até hoje as coisas são assim.

- Ok Pedro, vai. Mas se comporte e nada de ficar brincando no elevador. - completou minha mãe como que se quisesse que eu me mandasse de uma vez por todas.

Saí pela porta do apartamento 1602 eufórico e pronto para descer. Apertei o botão do elevador e esperei até que parece em meu andar. Enquanto esperava, pesquei no bolso um dos brinquedos que sempre carregava comigo. Era uma réplica de um Fórmula 1 que eu ganhei de meu pai. Quando garoto, eu sonhava em ser piloto e colecionava essas réplicas em miniatura dos carros da F1. Eu gostava muito do modelo da Ferrari de Villeneuve, da Brabham do Piquet e da Ferrari de Prost. O que eu carregava aquele dia era a Williams de Alan Jones que era o atual campeão na época. A réplica remetia muito bem ao original todo branco com detalhes em verde e azul e um monte de marcas de patrocinadores estampadas de cima a baixo e até no capacete do meu Jones em miniatura.

Quando o elevador chegou e a porta se abriu, entrei e apertei o T e senti aquela sensação engraçada do elevador descendo, o tipo de coisa que a gente acha o máximo quando ainda é criança, mas torna-se corriqueiro quando nos tornamos adultos. Fui correndo para o parque brincar e logo me frustrei ao perceber que não haviam outras crianças. Na verdade, desde que chegamos, não tinha visto nenhum morador - exceto pela tia Ofélia e pelo porteiro do condomínio. Coisas sutis que hoje, olhando para trás, me despertam estranheza, mas que, naquele tempo, eu pouco notava.

Brinquei sozinho por algum tempo no parquinho, fingi que as linhas desenhadas no cimento do pátio eram a pista por onde acelerava meu carrinho de brinquedo recriando o barulho do motor e fantasiando as fantásticas ultrapassagens nas curvas e retas que os padrões das pedras do pátio faziam.

- Deixa eu ver seu carrinho?

Me assustei sem saber direito de onde vinha a voz. Quando percebi, um garoto não muito mais novo que eu estava de pé a pouquíssimos metros de mim. Com cara de pidão, bermuda azul e os tênis desamarrados, ele parecia solitário e desolado, mas escondia a expectativa de um sorriso ainda perdendo dentes de leite aparecer em seu rosto e se enturmar com seus olhos castanhos arregalados.

- Pode.

Estendi a mão com o carrinho para o garoto desconhecido que se aproximou de maneira acanhada, meio sem jeito, desengonçado. Se ajoelhou do meu lado e pegou o carrinho ainda tímido.

- Como ce chama?

- Henrique. - Ele não brincava com o carrinho, mas o examinava atentamente passando de uma mão para outra, virando para um lado e para o outro como se aquele brinquedo fosse a coisa mais fantástica que ele já havia visto em toda a sua vida.

- Meu nome é Pedro. Você mora aqui Henrique?

- Moro. - ele era bem calado, mais do que uma criança de seis ou sete anos deve ser. Henrique já era estranho por si só, mas as coisas ainda ficariam mais densas naquela tarde.

Ficamos por algum tempo no parquinho. Eu tentando começar uma conversa com um garoto catarrento que nada falava e continuava apalpando e olhando meu carrinho como se não fosse algo real. As respostas monossilábicas dele me deixavam cada vez mais frustrado, então em certo momento, desisti da conversa. Fiquei lá, em silêncio, sentado no chão. Olhava para ele, para as árvores que cresciam ao redor do parquinho e tomavam o céu quase nos impedindo de ver o pouco sol que aparecia entre as nuvens naquela tarde de Maio.

E então ele me devolveu um carrinho. E finalmente disse algo.

- Legal. Quer jogar um jogo? - ainda com aquele ar de que poderia soltar um sorriso que nunca vinha e que, a essa altura, parecia meio debochado.

- Que jogo?

- É um jogo de tabuleiro. É muito legal, cê vai gostar.

- É... quero, pode ser.

- Tá bom. Só que minha mãe não me deixa trazer ele aqui pra baixo, você vai ter que subir lá em casa.

Hesitei bastante, mas como não havia muito o que fazer, resolvi ir. Nem me toquei com o tempo ou as horas, nem me importei em pedir permissão aos meus pais, apenas segui o garoto de volta para a entrada da torre 7. Simplesmente senti que devia, aceitei o movimento automático das minhas pernas que traçavam um passo atrás do outro ao lado de Henrique, o garoto dos olhos arregalados.

Demos a volta no corredor do térreo passando pelos elevadores da entrada e pelas escadas de incêndio para chegar ao outro lado do fosso onde haviam outros dois elevadores.

Entramos e Henrique apertou o número seis.

Nesse momento, eu pressentia algo errado. Talvez a luz mais fraca desse outro elevador que quase não fazia barulho, talvez o aspecto desinteressado do meu novo colega ou o fato de que eu estava indo ao apartamento de um garoto que eu acabara de conhecer sem avisar meus pais. Mesmo sabendo disso, eu simplesmente não conseguia não seguir o plano de Henrique, é algo que não consigo explicar, um fenômeno que me negava a negação enquanto estive na Torre 7 do Residencial Bandeirante, algo sobre o qual voltarei a falar no futuro.

O elevador parou, a porta se abriu e demos de cara com duas portas. Os apartamentos 605 e 606 apareciam em nossa frente. Tudo se parecia muito com o décimo sexto andar: as portas de madeira escura e os números de metal pregados acima do olho mágico. Henrique girou a maçaneta e abriu a porta do apartamento meia-zero-meia.

A luz que entrava pela janela da sala se derramou pelo corredor quando ele me convidou para dentro e eu pedi licença para entrar. Quando ele fechou a porta atrás de mim que eu entendi que algo estava errado. Entre a cozinha e a sala me localizei e rapidamente compreendi todo aquele espaço do apartamento que era praticamente idêntico ao de tia Ofélia: paredes brancas e grossas, grandes janelas e vitrais e o assoalho de madeira perolada cujo verniz refletia a luz do dia. No apartamento de Henrique, o eco era ainda maior, mais intenso.

Isso porque não havia mobília alguma.

Nada. Sofá, mesa, estante, armário... nada. O que eu podia ver do apartamento estava completamente vazio exceto por eu e meu novo - e agora ainda mais estranho amigo. A poeira se acumulava pelo chão e meus passos deixavam pegadas pelo assoalho e as paredes encardidas tinham marcas velhas de sujeira na altura da cintura. Ladrilhos de rodapé soltavam-se das paredes e uma cortina amarelada e velha se pendurava pela janela da sala até quase o chão onde uma porção de acinzentados jornais se acumulavam. O cheiro que parava no ar era de poeira, madeira molhada e coisas velhas. Aquele cheiro que sentimos quando abrimos um cômodo há muito esquecido ou quando entramos em algum lugar abandonado. E se há uma palavra que descreva o cenário da moradia de meu novo amigo era essa: abandonada.

- Pera aí. Eu vou lá buscar. - ele correu e adentrou em algum dos quartos correndo sem dar tempo para que eu perguntasse alguma coisa. Eu estava mais confuso do que jamais estive em toda minha vida. Henrique morava sozinho? A família dele era tão pobre que não podia comprar móveis para a sua casa? Achei que fosse por isso que ele ficou tão encantado quando viu meu carrinho.

- Bença mãe. - ouvi ele dizer lá do fundo.

Henrique voltou a passos corridos e atrapalhados trazendo uma caixa de madeira nas mãos. Ele sentou-se no chão e me olhou como se ordenasse que eu me sentasse, e assim o fiz. Quando aberta, a caixa se tornava um tabuleiro e dentro dela haviam várias peças que pareciam soldadinhos de metal, porém tortos e desfigurados. O tabuleiro era cheio de desenhos estranhos e, conforme ele espalhava as peças sobre ele, me explicava cheio de afobação as regras do jogo que parecia uma mistura de xadrez com qualquer coisa. Porém eu não conseguia prestar atenção no que ele dizia, ainda estava meio sem jeito e confuso com a situação.

- ... e então você pode marcar três ou cinco pontos. Só que antes você tem que avisar, entendeu?

- Desculpa Henrique, acho que eu tenho que ir embora. Minha mãe deve estar procurando.

- Mas a gente nem jogou... - ele respondeu em tom de decepção.

- Na próxima a gente joga.

- Tá bom.

Ele recolheu as peças e guardou-as na caixa-tabuleiro visivelmente desapontado enquanto eu me dirigia a porta da saída. Eu fazia força para não mostrar o quanto eu queria sair dali. DEUS como eu queria ter corrido e batido a porta e nunca mais voltado. E foi quase isso que eu fiz, saí a passos largos enquanto ele ia até o quarto guardar seu jogo estúpido. Quando finalmente cheguei à porta, por algum motivo, tateei entre os bolsos da blusa e da calça em busca de qualquer coisa.

O carrinho. Não estava comigo.

Conferi de novo os bolsos e procurei pelo chão da sala, ele não estava em lugar algum que eu pudesse ver. Henrique tinha pego-o, só podia ser. Pensei em deixar estar, ele era tão pobre que morava numa casa sem mobília e toda suja. Tudo o que ele tinha era um jogo besta de tabuleiro. Minha mãe sempre me dizia que eu deveria ser grato por ter isso e aquilo outro. Vivíamos bem, meu pai tinha se dado razoavelmente bem na vida e comandava meia dúzia de negócios e era dono de mais um punhado de pequenas propriedades. Um carrinho de brinquedo jamais faria falta para mim, mas para aquele menino, poderia ser algo realmente especial. Mas por pirraça e/ou curiosidade, resolvi não sair pela porta e ir embora.

Dei meia volta e fui em direção ao corredor que levava aos quartos. Parei antes dos aposentos e chamei o nome de Henrique sem sucesso algumas vezes. Aos poucos foi andando na direção do quarto onde ele tinha entrado para buscar o seu jogo de tabuleiro maluco. Os meus passos lentos faziam o assoalho estalar sob meus pés e o cheiro que vinha do fundo agora já não era o mesmo que sentia na sala. Tomou o ar um cheiro de podridão que queimava o nariz e a boca e a essa altura era até mesmo difícil de respirar. A porta entreaberta do quarto deixou a dúvida se era um convite ou um aviso para que não entrasse. Empurrei a porta e ela se abriu lentamente com seu rangido fazendo eco por todo apartamento meia-zero-meia.

Nada, estava vazio.

Abri os armários em busca de Henrique ou de meu carrinho de brinquedo, mas ele não estava lá. Chequei os outros cômodos, atravessei o assoalho de madeira que estalava conforme eu andava. Não havia nada e nem ninguém no banheiro ou nos outros quartos. Tudo estava vazio, silencioso e com aquele horrível cheiro de podridão. Tudo parecia uma piada de mau gosto, uma peça que pregaram em mim e eu caí certinho. Nada fazia sentido naquilo, resolvi ir embora de mãos abanando mesmo. Depois voltaria com meus pais e exigiria meu carrinho de volta, era o mais sensato a fazer. Saí do último quarto puto da vida e cheguei no corredor e me virei para a sala para ir embora quando finalmente notei que alguém me olhava.

Aquilo estava de pé, no meio da sala. E me farejava.

Um animal - ou seja lá o que era aquilo - me fitava com profundos olhos amarelos que me enchiam de pavor. Boquiaberto, eu não sabia o que fazer, o que pensar, no que acreditar. A criatura se assemelhava a um cachorro de pernas finas e orelhas grandes, ou um chacal, ou uma hiena. Exceto pelo fato de que era do tamanho de um cavalo e se mexia de uma maneira que não parecia possível. Era como se não respeitasse os limites anatômicos das articulações de qualquer animal que eu já tenha conhecido. Uma sombra negra e esguia que mostrava presas amareladas que cresciam umas sobre as outras e uma língua que se pendurava de sua boca e mostrava-se excessivamente grande. Mesmo de longe, eu podia sentir a respiração daquela coisa como se estivesse sobre mim e foi quando eu notei que aquele cheiro de podridão emanava daquele bicho. Lentamente seu longo pescoço deu quase uma volta inteira e pude fitar seus olhos quase que de ponta-cabeça. De sua boca escorria um líquido que era qualquer coisa escura e viscosa.

Foi então que eu soube que tinha que correr.

Me enfiei no primeiro quarto que eu pude e fechei a porta com todas as minhas forças. Rezei para que aquela coisa não pudesse entrar, que não pudesse me alcançar ali dentro. Aquilo se atirou contra a porta e, por um momento, pensei que fosse derrubá-la. Eu só conseguia pensar que deveria ter saído daquele lugar quando tive a chance ou que, melhor, nunca deveria ter entrado ali para começo de conversa.

O monstro do outro lado da porta parecia ter força o bastante para derrubá-la quando bem entendesse, mas parecia gostar da sádica brincadeira de me levar aos limites do meu medo como se quisesse ber até onde eu poderia chegar. Não havia para onde ir, não tinha como fugir. A não ser que eu tentasse sair pela janela, mas isso era praticamente impossível. Estávamos no sexto andar, não tinha jeito. Eu morreria ali sem nenhuma chance de reação. Eu chorava como qualquer criança teria chorado no meu lugar. Chorava como muitos adultos o teriam feito.

Então as batidas cessaram.

Eu respirava ofegante sentado no chão de costas para a porta como se assim eu fosse capaz de segurar qualquer coisa que tentasse passar por ali. Nessa posição fiquei por vários minutos sem ouvir nada que não fosse meu próprio choro e meus próprios soluços. Eu secava minhas lágrimas e repetia mentalmente a mim mesmo "Seja homem!", "Seja homem!". De que maneira diante de tal coisa grotesca e sem qualquer sentido?  E mesmo depois de dez ou quinze minutos, não encontrei coragem para abrir a porta e olhar o que acontecia lá fora.

Quando eu finalmente começava a me acalmar, um novo problema apareceu: água. Em todo lugar.

Eu não sabia de onde tinha vindo toda aquela água e nem há quanto tempo estava ali, mas o fato é que o quarto estava inundado de uma água escura, fria e nojenta que parecia aumentar a cada segundo. O quarto já estava inundado quando eu entrei? Eu não conseguia me lembrar, não conseguia por a cabeça em ordem. Quando me levantei, a água já estava na altura das minhas canelas e em um pouco mais de tempo, meus joelhos e depois minha cintura estavam cobertos. Apesar da água me assustar, não era pior do que aquilo que estava do lado de fora da porta.

Olhei para cima e vi o teto se rachando e se abrindo lentamente enquanto mais água gelada era despejada sobre minha cabeça e inundava ainda mais o quarto. Eu já estava entrando em pânico quando o teto cedeu e uma quantidade gigantesca de água caiu sobre mim e quase me esmagou.

Eu estava submerso. Submerso numa imensidão escura.

Eu começava a sentir falta de ar, mas não encontrava a porta e nem as paredes. Nem a janela, ou o chão. Já não sabia mais se estava no quarto, se estava em algum lugar, qualquer lugar. Mas eu sabia que estava me afogando e suspeitava que, talvez, a diferença entre estar morto e quase morto pode ser muito, muito pequena e circunstancial.

Me faltava ar, então nadei para cima como se tentasse buscar a superfície e encontra o tão sonhado ar, mas não havia nada que não fosse frio e escuridão. Quando eu já havia desistido de procurar algo, senti a água gélida invadindo meus pulmões e vi.

Um enorme par de olhos amarelos me fitando.

Acordei assustado e sem ar. A porta barulhenta do elevador mais barulhenta do que nunca. O porteiro abrira ela com um pé de cabra e me olhou com cara de susto. Meu pai estava do lado dele. Olhei em volta: a luz quente do elevador se esparramando sobre mim e todos os botões dos andares com luzes acesas, mas o indicador de andar mostrava que eu estava no Térreo. Fiquei sem entender o que estava acontecendo, mas chorei de felicidade por estar ali.

Meus pais disseram que provavelmente eu resolvi brincar de apertar todos os botões do elevador e, por isso, ele acabou tendo uma pane, travando e eu fiquei preso lá dentro. Tive um ataque de pânico e desmaiei.

Contei a eles tudo pelo que havia passado sem eu mesmo saber se era tudo verdade ou não. Eles foram céticos, mas depois ficaram em dúvida. De fato, ninguém morava no apartamento 606 e não havia indício algum de que eu tenha estado ali em algum momento. Logo, meus pais me convenceram, para meu próprio bem, de que tudo aquilo tinha sido um pesadelo, uma alucinação, um sonho ruim. Pelo meu próprio bem, tomei o caminho que eles traçaram para mim e acreditei neles. Afinal, era a explicação lógica e acreditei nela por mais de vinte e cinco anos.

A princípio, essa história mexeu comigo por um certo tempo. Tive pesadelos com aquela coisa que vi no apartamento meia-zero-meia por algumas semanas. Acordei algumas vezes no meio da noite tendo certeza de que estava morrendo afogado. E no princípio, precisei acreditar numa fé investida em mim pois não havia meios de lidar com a realidade do jeito que ela foi, do jeito que me lembro. Eu era uma criança com uma imaginação fértil e que andava assistindo muitos filmes de terror. O incidente na torre 7 do Residencial Bandeirante tornou-se uma memória quase irrelevante da minha infância que eu nunca mais quis visitar.

Mas, em certo momento, eu precisei.

Até porque meus pais não conseguiram explicar o que aconteceu com minha réplica da Williams de Alan Jones. Nem como ou porquê minhas roupas estavam completamente encharcadas quando me tiraram daquele elevador. E de todas as experiências que tenho a relatar sobre o período em que passei na Torre Sete do Residencial Bandeirante, essa foi, talvez, a mais fácil de explicar.

Pois não importa o que tenha sido aquilo que me encurralou no apartamento meia-zero-meia, não me deixaria escapar mais uma vez.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Os Olhos do Gato

Eu só queria poder exorcizar meus demônios através da tosse que tenho tido esses dias. Já poderia estar dormindo tão melhor e mais confortavelmente.

O improvável aconteceu: as coisas deram certo. Minha vida (em termos) progrediu, andou para frente como há tempos não o fazia. Se há três meses atrás eu celebrava um natal sem ter muitos motivos para fazê-lo, hoje tudo parece ter saído melhor do que o esperado. Tendo conhecimento de causa a respeito da disciplina "minha vida", tenho uma compreensível suspeita acerca de tudo que dá certo demais.

Bem como o gato de rua que nunca chega perto para comer na sua mão ou receber seu afago. Não importa se suas intenções são as melhores, ele vai demorar muito tempo até ter confiança de encurtar a distância até que sua mão possa tocá-lo, seja com afeto, seja com raiva. Ele apenas de observa de longe, com o corpo arqueado e os olhos estralados, curiosos, famintos de novidade, mas pronto para fugir ágil como a natureza o fez ser caso qualquer coisa lhe pareça estranha

Talvez seja por isso que eu insisto em voltar lá.

De certo, o gato se lembra de algum outro humano que praticou alguma perversidade com ele. Talvez uma traquinagem de garoto ou uma maldade maior praticado por adultos que tendem a ser mais fortes, cruéis e conscientes de sua maldade. O passado do gato é um navio atrás de um horizonte nebuloso: não podemos vê-lo nem dizer que está realmente lá, mas torçamos para que esteja vindo encontrar o cais.

O meu passado é o cais para o qual meu navio tende a voltar.

Próximos ou distantes, meus destinos nunca se contam em milhas ou léguas, mas sempre em minutos, horas, dias, meses ou anos sempre negativos. Sempre zarpo rumo a pontos no tempo passado quando participo das minhas próprias histórias como mero espectador, e nunca como participante. Nada posso fazer para mudar o que acontece na trama, mas assisto o filme de novo e de novo.

E tenho voltado muitas vezes até a casa da minha mãe. E sempre sinto que lá é um lugar frio mesmo durante o verão, mesmo com a cama e a comida quente, mesmo com os abraços cheios de carinho dela. Oras pois, a sensação de frio é mera associação ao um estado emocional que cultivo em relação a determinado ambiente. Não que o ambiente na casa dela seja ruim, muito pelo contrário. Mas eu atribuí a São Paulo e a casa da minha mãe essa característica e agora não consigo mais desvencilhar uma coisa da outra. Mas não é por isso que tenho voltado lá, pelo frio. O frio é consequência e não causa, ele esteve lá mesmo no mais quente final de primavera - ou mais frio final de outono dependendo de qual hemisfério a gente enxerga.

Acredito que volto lá para me lembrar, como o faz o gato. Para me alertar sobre lições que o passado já me ensinou uma ou mais vezes, para tentar me entender melhor e buscar uma tomada de decisão mais correta. Aceitar ou não a comida e o afago correndo o risco de sofrer algum tipo de crueldade nas mãos de um humano. Aos olhos do gato, o prêmio não vale a pena o risco. Os meus talvez já não enxerguem da mesma forma. Talvez sejam mal treinados perto dos dele ou menos maliciosos.

Talvez.

Mas nós já temos nosso próprio pacto: nunca mais seremos tão frágeis. E nos pegar não será mais tão fácil.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Silhueta

Então eu resolvi que isso não era mais o que eu queria ser. Abandonei a velha forma de mim, rompi meus elos com um antigo eu, com uma antiga postura que agora parece distante. Pra pisar firme, consciente, confiante, sem medo algum do chão ceder. Escondendo o medo debaixo do semblante de quem não tem nada mais a perder.

Eu atravessei um Dezembro de cinzas, de perda, finais e reconstrução. Para entrar em um novo ano de dúvidas, desejos e silêncio. Acima de tudo, ele, o silêncio. O mais leal dos aliados, o mais justo dos amigos.

O único que me sobrou.

Pois percebi que a cada vez que eu abro a boca e o coração ao mesmo tempo, afasto de perto tudo e todos. Ninguém quer ouvir isso, ninguém quer saber disso. Ninguém quer ter que lidar. Então sempre estrangulo a voz ou a ânsia de dizer. Abro o coração sem usar palavras, uso as palavras sem jamais abrir o coração. E assim navego esses dias onde inimigos íntimos se escondem nas sombras das paredes. E se arrastam trêmulos por entre meus cobertores e sussurram minha queda ao pé dos ouvidos.

Não sei bem quem cala minha fúria, se são os fantasmas do meu antigo eu ou essa nova faceta que comprei pra mim, esse sorriso fácil que me veste tão bem e agrada a todos menos a mim. Com certeza, é o medo de expor toda a feiura que reside dentro das velhas gavetas que não ouso abrir. Pois eu sei que partirá, de novo se vir. Eu sei que nem eu mesmo quero mais vê-las.

Como andar se ter medo de cair sabendo que terei que levantar sozinho, independentemente de quem esteja do meu lado? Seus passos vão continuar, um após o outro, ficando cada vez mais largos, sua silhueta cada vez mais fina conforme eu tento levantar e te alcançar até que você desapareceria frente a imensidão de cinza.

Pois bem sei que me calo e pinto esse sorriso bobo, fajuto, sem graça pra você não perceber. Pois ser forte já foi mais fácil em outros tempos, mas nunca fui tão bom nisso quanto agora que enfrento de frente a verdade que não quis aceitar:

Você será o primeiro a partir quando nada mais me sobrar. E assistirei a sua silhueta diminuindo, apagando, desaparecendo.

E no fim, você já desistiu de mim.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Cinzeiros, Cães, Gatos e Silêncio

Você só percebe quantas pessoas a sua volta fumam quando decide parar.

Não importa aonde vá, sempre haverá alguém acendendo um isqueiro, cobrindo a chama com a mão e tragando o cigarro até que a ponta queimando se ilumine fazendo a fumaça subir pelo ar. É engraçado como tudo isso soa diferente quando a gente tenta largar o vício. O gosto de tudo muda, você volta a sentir cheiros que antes não sentia, a respirar de uma maneira diferente. É legal acordar de manhã e não estar com o nariz lotado de secreção, não estar com dor de garganta, tosse ou um gosto forte de alcatrão na boca. É horrível como o tédio cresce vertiginosamente quando estou sem um cigarro.

De fato, to longe de querer ser saudável ou de tentar me cuidar de verdade. Só preciso de um vício novo, uma coisa nova para me matar aos poucos. Um maço de Marlboro anda beirando os sete reais e, do jeito que as coisas estão, tornou-se um vício que eu não posso mais custear. Na saúde, não vi nenhum reflexo, no meu bolso, é imediato. Mas, mesmo assim, daria tudo por um cigarro agora, para esquecer que hoje tem o jogo de uma vida, para esquecer a faculdade que eu não consegui entrar por mero detalhe (bola na trave caprichosa do destino). Para esquecer toda a raiva que eu guardo aqui dentro cerrada a sorrisos e piadas que fazem com que ninguém acredite que eu possa odiar tanto qualquer coisa.

Eu só queria acender um cigarro para esquecer um discurso sobre cães e gatos. Eu só queria tragar a fumaça pra dentro do pulmão junto com todas aquelas coisas que eu tinha para dizer. Sufocar tudo de uma vez imerso no silêncio da noite interrompido apenas pelo estalo do tabaco em chamas.

E me sufocar devagar, esquecer tudo isso para me lembrar: o silêncio é o melhor discurso que eu posso fazer. É o único que todo mundo vai querer ouvir.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Guadalupe

Ela agarrou a minha pilha de documentos como se fossem um pedaço de lixo, abriu um sorriso cínico e me pediu pra esperar na sala como quem queria voltar e não me encontrar mais lá. Até porque, não havia motivo nenhum para lá estar. Deixou a sala ao som da marcha do "Clec-Clec"do salto no piso.

Eu já não conseguia mais esconder minha frustração. Enquanto ela não voltava, minha ansiedade atacava com aqueles velhos tiques de coçar o nariz, ficar balançando a perna e mordendo os lábios e dobrando a língua dentro da boca. E nem sei porque, passei a pensar na Virgem de Guadalupe.

Nossa Senhora de Guadalupe, a Santa Padroeira do México. Eu não sou religioso, muito menos devoto da Virgem de Guadalupe ou qualquer outro santo, deus ou divindade. Sou, de fato, uma das pessoas mais céticas que eu conheço. Eu olhava pra fora vendo alunos indo e vindo, falando alto em grupos tendo conversas ao pé do ouvido ou agarrados em seus smartphones como se fossem a última coisa importante da Terra. Como que um deboche cruel o tempo todo, ou não. Eu tenho mania de perseguição com isso, sempre acho que toda a vida está tramando contra mim, mas eu tenho meus motivos.

Eu tinha uns dezessete anos de idade quando vi a notícia de que uma pessoa teria avistado a imagem da Virgem de Guadalupe no Sol. Dezenas de devotos já se reuniam em vigília, olhando o céu, com as mãos sobre as sobrancelhas tentando ver a imagem da Santa. Centenas alegam realmente terem visto, um milagre, um sinal dos tempos. No final do dia, dezenas haviam queimado as retinas e ficado cegos tentando enxergar a imagem da Santa. Se a viram, foi a última coisa que seus olhos tiveram contato nessa vida.

Foi então que fui sugado de volta para a sala. Ela voltava com o sapato tocando a mesma sinfonia fúnebre do "Clec-Clec" do sapato. Só pra me dizer que realmente eu estava lá sem motivo algum, que eu nunca entraria ali de novo da maneira que gostaria.

Atravessei o pátio mordido de raiva entre alunos e funcionários me sentindo um corpo estranho repelido pelo sistema imunológico de um organismo do qual eu nunca deveria fazer parte. Do qual eu nunca quis ser parte. Será que nunca quis mesmo?

Há cinco anos eu tento me convencer - como tento convencer todo mundo que me conhece - que uma série de infortúnios não só são minha responsabilidade, mas como também são uma escolha. Eu nunca fiz questão de atender uma série de requisitos que todo mundo sempre me pediu, nunca quis atender as expectativas que todos a minha volta tem de um rapaz de vinte e dois anos. Eu ainda não sei dirigir e não entro numa sala de aula há cinco anos. E "estou bem" assim, não vim aqui hoje para chorar e reclamar sobre como minha vida é trágica.

E por isso mesmo eu não entendi meu choro contido, preso na garganta no caminho de volta pra casa. Eu nunca quis isso, nunca me importei. Ou pelo menos me fiz acreditar que não, me tornei aparentemente "bom demais" para fazer parte de qualquer coisa que eu não conseguisse fazer parte, a velha retórica do "eu nem queria mesmo". E de certa forma, é uma mentira que se tornou verdade, eu tinha expectativa zero quanto a um monte de coisas, simplesmente não me via fazendo parte disso, não me via encaixando-me a esse quadro. Ainda não me vejo. E isso não me incomodava tanto assim. Mas foi quando eu cheguei perto e vi a oportunidade me escapar por entre os dedos como areia que aquilo realmente me bateu com força.

Sim, eu me importo. Sim, eu queria. Mesmo que por um mísero momento, eu acreditei. Como o fiel que procura a imagem da virgem cravada no Sol sem perceber que ele vai lhe cegar.

E então veio o maior de todos os deboches: a vida fazer todos acreditarem que eu tinha conseguido algo enquanto eu permanecia cético. E arrancar isso de mim quando eu passei a acreditar, como que me dizendo que eu jamais conseguiria. Como uma mulher vingativa que te seduz e te faz cair em seus encantos e se apaixonar apenas para te machucar no final, de propósito, por vingança ou sadismo, não sei.

Invejo os alunos do pátio como invejo os devotos de Guadalupe. Porque eles acreditam ser aquilo que vendem e acreditam ver aquilo que dizem. E não importa o quanto os garotos do pátio pareçam-se comigo, eles continuarão vivendo na fábula de serem melhores do que eu por estarem dentro e eu fora. E eu continuarei acreditando nisso. E mesmo que os devotos tenham ficado cegos, eles acreditaram até o final, olharam até que pudessem ver, enxergar, alcançar a graça. E perderam a visão tentando encontrá-la

E eu queria ter essa fé de esperar ver o milagre enquanto olhasse para frente sem nunca me questionar, sem nunca sofrer das overdoses de uma auto-consciência que enxerga borrões de cinza no espelho do banheiro.

E se eu ficasse cego, lidaria bem com isso. É o preço de acreditar em qualquer coisa.