Então eu resolvi que isso não era mais o que eu queria ser. Abandonei a velha forma de mim, rompi meus elos com um antigo eu, com uma antiga postura que agora parece distante. Pra pisar firme, consciente, confiante, sem medo algum do chão ceder. Escondendo o medo debaixo do semblante de quem não tem nada mais a perder.
Eu atravessei um Dezembro de cinzas, de perda, finais e reconstrução. Para entrar em um novo ano de dúvidas, desejos e silêncio. Acima de tudo, ele, o silêncio. O mais leal dos aliados, o mais justo dos amigos.
O único que me sobrou.
Pois percebi que a cada vez que eu abro a boca e o coração ao mesmo tempo, afasto de perto tudo e todos. Ninguém quer ouvir isso, ninguém quer saber disso. Ninguém quer ter que lidar. Então sempre estrangulo a voz ou a ânsia de dizer. Abro o coração sem usar palavras, uso as palavras sem jamais abrir o coração. E assim navego esses dias onde inimigos íntimos se escondem nas sombras das paredes. E se arrastam trêmulos por entre meus cobertores e sussurram minha queda ao pé dos ouvidos.
Não sei bem quem cala minha fúria, se são os fantasmas do meu antigo eu ou essa nova faceta que comprei pra mim, esse sorriso fácil que me veste tão bem e agrada a todos menos a mim. Com certeza, é o medo de expor toda a feiura que reside dentro das velhas gavetas que não ouso abrir. Pois eu sei que partirá, de novo se vir. Eu sei que nem eu mesmo quero mais vê-las.
Como andar se ter medo de cair sabendo que terei que levantar sozinho, independentemente de quem esteja do meu lado? Seus passos vão continuar, um após o outro, ficando cada vez mais largos, sua silhueta cada vez mais fina conforme eu tento levantar e te alcançar até que você desapareceria frente a imensidão de cinza.
Pois bem sei que me calo e pinto esse sorriso bobo, fajuto, sem graça pra você não perceber. Pois ser forte já foi mais fácil em outros tempos, mas nunca fui tão bom nisso quanto agora que enfrento de frente a verdade que não quis aceitar:
Você será o primeiro a partir quando nada mais me sobrar. E assistirei a sua silhueta diminuindo, apagando, desaparecendo.
E no fim, você já desistiu de mim.
sábado, 21 de fevereiro de 2015
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
Cinzeiros, Cães, Gatos e Silêncio
Você só percebe quantas pessoas a sua volta fumam quando decide parar.
Não importa aonde vá, sempre haverá alguém acendendo um isqueiro, cobrindo a chama com a mão e tragando o cigarro até que a ponta queimando se ilumine fazendo a fumaça subir pelo ar. É engraçado como tudo isso soa diferente quando a gente tenta largar o vício. O gosto de tudo muda, você volta a sentir cheiros que antes não sentia, a respirar de uma maneira diferente. É legal acordar de manhã e não estar com o nariz lotado de secreção, não estar com dor de garganta, tosse ou um gosto forte de alcatrão na boca. É horrível como o tédio cresce vertiginosamente quando estou sem um cigarro.
De fato, to longe de querer ser saudável ou de tentar me cuidar de verdade. Só preciso de um vício novo, uma coisa nova para me matar aos poucos. Um maço de Marlboro anda beirando os sete reais e, do jeito que as coisas estão, tornou-se um vício que eu não posso mais custear. Na saúde, não vi nenhum reflexo, no meu bolso, é imediato. Mas, mesmo assim, daria tudo por um cigarro agora, para esquecer que hoje tem o jogo de uma vida, para esquecer a faculdade que eu não consegui entrar por mero detalhe (bola na trave caprichosa do destino). Para esquecer toda a raiva que eu guardo aqui dentro cerrada a sorrisos e piadas que fazem com que ninguém acredite que eu possa odiar tanto qualquer coisa.
Eu só queria acender um cigarro para esquecer um discurso sobre cães e gatos. Eu só queria tragar a fumaça pra dentro do pulmão junto com todas aquelas coisas que eu tinha para dizer. Sufocar tudo de uma vez imerso no silêncio da noite interrompido apenas pelo estalo do tabaco em chamas.
E me sufocar devagar, esquecer tudo isso para me lembrar: o silêncio é o melhor discurso que eu posso fazer. É o único que todo mundo vai querer ouvir.
Não importa aonde vá, sempre haverá alguém acendendo um isqueiro, cobrindo a chama com a mão e tragando o cigarro até que a ponta queimando se ilumine fazendo a fumaça subir pelo ar. É engraçado como tudo isso soa diferente quando a gente tenta largar o vício. O gosto de tudo muda, você volta a sentir cheiros que antes não sentia, a respirar de uma maneira diferente. É legal acordar de manhã e não estar com o nariz lotado de secreção, não estar com dor de garganta, tosse ou um gosto forte de alcatrão na boca. É horrível como o tédio cresce vertiginosamente quando estou sem um cigarro.
De fato, to longe de querer ser saudável ou de tentar me cuidar de verdade. Só preciso de um vício novo, uma coisa nova para me matar aos poucos. Um maço de Marlboro anda beirando os sete reais e, do jeito que as coisas estão, tornou-se um vício que eu não posso mais custear. Na saúde, não vi nenhum reflexo, no meu bolso, é imediato. Mas, mesmo assim, daria tudo por um cigarro agora, para esquecer que hoje tem o jogo de uma vida, para esquecer a faculdade que eu não consegui entrar por mero detalhe (bola na trave caprichosa do destino). Para esquecer toda a raiva que eu guardo aqui dentro cerrada a sorrisos e piadas que fazem com que ninguém acredite que eu possa odiar tanto qualquer coisa.
Eu só queria acender um cigarro para esquecer um discurso sobre cães e gatos. Eu só queria tragar a fumaça pra dentro do pulmão junto com todas aquelas coisas que eu tinha para dizer. Sufocar tudo de uma vez imerso no silêncio da noite interrompido apenas pelo estalo do tabaco em chamas.
E me sufocar devagar, esquecer tudo isso para me lembrar: o silêncio é o melhor discurso que eu posso fazer. É o único que todo mundo vai querer ouvir.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
Guadalupe
Ela agarrou a minha pilha de documentos como se fossem um pedaço de lixo, abriu um sorriso cínico e me pediu pra esperar na sala como quem queria voltar e não me encontrar mais lá. Até porque, não havia motivo nenhum para lá estar. Deixou a sala ao som da marcha do "Clec-Clec"do salto no piso.
Eu já não conseguia mais esconder minha frustração. Enquanto ela não voltava, minha ansiedade atacava com aqueles velhos tiques de coçar o nariz, ficar balançando a perna e mordendo os lábios e dobrando a língua dentro da boca. E nem sei porque, passei a pensar na Virgem de Guadalupe.
Nossa Senhora de Guadalupe, a Santa Padroeira do México. Eu não sou religioso, muito menos devoto da Virgem de Guadalupe ou qualquer outro santo, deus ou divindade. Sou, de fato, uma das pessoas mais céticas que eu conheço. Eu olhava pra fora vendo alunos indo e vindo, falando alto em grupos tendo conversas ao pé do ouvido ou agarrados em seus smartphones como se fossem a última coisa importante da Terra. Como que um deboche cruel o tempo todo, ou não. Eu tenho mania de perseguição com isso, sempre acho que toda a vida está tramando contra mim, mas eu tenho meus motivos.
Eu tinha uns dezessete anos de idade quando vi a notícia de que uma pessoa teria avistado a imagem da Virgem de Guadalupe no Sol. Dezenas de devotos já se reuniam em vigília, olhando o céu, com as mãos sobre as sobrancelhas tentando ver a imagem da Santa. Centenas alegam realmente terem visto, um milagre, um sinal dos tempos. No final do dia, dezenas haviam queimado as retinas e ficado cegos tentando enxergar a imagem da Santa. Se a viram, foi a última coisa que seus olhos tiveram contato nessa vida.
Foi então que fui sugado de volta para a sala. Ela voltava com o sapato tocando a mesma sinfonia fúnebre do "Clec-Clec" do sapato. Só pra me dizer que realmente eu estava lá sem motivo algum, que eu nunca entraria ali de novo da maneira que gostaria.
Atravessei o pátio mordido de raiva entre alunos e funcionários me sentindo um corpo estranho repelido pelo sistema imunológico de um organismo do qual eu nunca deveria fazer parte. Do qual eu nunca quis ser parte. Será que nunca quis mesmo?
Há cinco anos eu tento me convencer - como tento convencer todo mundo que me conhece - que uma série de infortúnios não só são minha responsabilidade, mas como também são uma escolha. Eu nunca fiz questão de atender uma série de requisitos que todo mundo sempre me pediu, nunca quis atender as expectativas que todos a minha volta tem de um rapaz de vinte e dois anos. Eu ainda não sei dirigir e não entro numa sala de aula há cinco anos. E "estou bem" assim, não vim aqui hoje para chorar e reclamar sobre como minha vida é trágica.
E por isso mesmo eu não entendi meu choro contido, preso na garganta no caminho de volta pra casa. Eu nunca quis isso, nunca me importei. Ou pelo menos me fiz acreditar que não, me tornei aparentemente "bom demais" para fazer parte de qualquer coisa que eu não conseguisse fazer parte, a velha retórica do "eu nem queria mesmo". E de certa forma, é uma mentira que se tornou verdade, eu tinha expectativa zero quanto a um monte de coisas, simplesmente não me via fazendo parte disso, não me via encaixando-me a esse quadro. Ainda não me vejo. E isso não me incomodava tanto assim. Mas foi quando eu cheguei perto e vi a oportunidade me escapar por entre os dedos como areia que aquilo realmente me bateu com força.
Sim, eu me importo. Sim, eu queria. Mesmo que por um mísero momento, eu acreditei. Como o fiel que procura a imagem da virgem cravada no Sol sem perceber que ele vai lhe cegar.
E então veio o maior de todos os deboches: a vida fazer todos acreditarem que eu tinha conseguido algo enquanto eu permanecia cético. E arrancar isso de mim quando eu passei a acreditar, como que me dizendo que eu jamais conseguiria. Como uma mulher vingativa que te seduz e te faz cair em seus encantos e se apaixonar apenas para te machucar no final, de propósito, por vingança ou sadismo, não sei.
Invejo os alunos do pátio como invejo os devotos de Guadalupe. Porque eles acreditam ser aquilo que vendem e acreditam ver aquilo que dizem. E não importa o quanto os garotos do pátio pareçam-se comigo, eles continuarão vivendo na fábula de serem melhores do que eu por estarem dentro e eu fora. E eu continuarei acreditando nisso. E mesmo que os devotos tenham ficado cegos, eles acreditaram até o final, olharam até que pudessem ver, enxergar, alcançar a graça. E perderam a visão tentando encontrá-la
E eu queria ter essa fé de esperar ver o milagre enquanto olhasse para frente sem nunca me questionar, sem nunca sofrer das overdoses de uma auto-consciência que enxerga borrões de cinza no espelho do banheiro.
E se eu ficasse cego, lidaria bem com isso. É o preço de acreditar em qualquer coisa.
Eu já não conseguia mais esconder minha frustração. Enquanto ela não voltava, minha ansiedade atacava com aqueles velhos tiques de coçar o nariz, ficar balançando a perna e mordendo os lábios e dobrando a língua dentro da boca. E nem sei porque, passei a pensar na Virgem de Guadalupe.
Nossa Senhora de Guadalupe, a Santa Padroeira do México. Eu não sou religioso, muito menos devoto da Virgem de Guadalupe ou qualquer outro santo, deus ou divindade. Sou, de fato, uma das pessoas mais céticas que eu conheço. Eu olhava pra fora vendo alunos indo e vindo, falando alto em grupos tendo conversas ao pé do ouvido ou agarrados em seus smartphones como se fossem a última coisa importante da Terra. Como que um deboche cruel o tempo todo, ou não. Eu tenho mania de perseguição com isso, sempre acho que toda a vida está tramando contra mim, mas eu tenho meus motivos.
Eu tinha uns dezessete anos de idade quando vi a notícia de que uma pessoa teria avistado a imagem da Virgem de Guadalupe no Sol. Dezenas de devotos já se reuniam em vigília, olhando o céu, com as mãos sobre as sobrancelhas tentando ver a imagem da Santa. Centenas alegam realmente terem visto, um milagre, um sinal dos tempos. No final do dia, dezenas haviam queimado as retinas e ficado cegos tentando enxergar a imagem da Santa. Se a viram, foi a última coisa que seus olhos tiveram contato nessa vida.
Foi então que fui sugado de volta para a sala. Ela voltava com o sapato tocando a mesma sinfonia fúnebre do "Clec-Clec" do sapato. Só pra me dizer que realmente eu estava lá sem motivo algum, que eu nunca entraria ali de novo da maneira que gostaria.
Atravessei o pátio mordido de raiva entre alunos e funcionários me sentindo um corpo estranho repelido pelo sistema imunológico de um organismo do qual eu nunca deveria fazer parte. Do qual eu nunca quis ser parte. Será que nunca quis mesmo?
Há cinco anos eu tento me convencer - como tento convencer todo mundo que me conhece - que uma série de infortúnios não só são minha responsabilidade, mas como também são uma escolha. Eu nunca fiz questão de atender uma série de requisitos que todo mundo sempre me pediu, nunca quis atender as expectativas que todos a minha volta tem de um rapaz de vinte e dois anos. Eu ainda não sei dirigir e não entro numa sala de aula há cinco anos. E "estou bem" assim, não vim aqui hoje para chorar e reclamar sobre como minha vida é trágica.
E por isso mesmo eu não entendi meu choro contido, preso na garganta no caminho de volta pra casa. Eu nunca quis isso, nunca me importei. Ou pelo menos me fiz acreditar que não, me tornei aparentemente "bom demais" para fazer parte de qualquer coisa que eu não conseguisse fazer parte, a velha retórica do "eu nem queria mesmo". E de certa forma, é uma mentira que se tornou verdade, eu tinha expectativa zero quanto a um monte de coisas, simplesmente não me via fazendo parte disso, não me via encaixando-me a esse quadro. Ainda não me vejo. E isso não me incomodava tanto assim. Mas foi quando eu cheguei perto e vi a oportunidade me escapar por entre os dedos como areia que aquilo realmente me bateu com força.
Sim, eu me importo. Sim, eu queria. Mesmo que por um mísero momento, eu acreditei. Como o fiel que procura a imagem da virgem cravada no Sol sem perceber que ele vai lhe cegar.
E então veio o maior de todos os deboches: a vida fazer todos acreditarem que eu tinha conseguido algo enquanto eu permanecia cético. E arrancar isso de mim quando eu passei a acreditar, como que me dizendo que eu jamais conseguiria. Como uma mulher vingativa que te seduz e te faz cair em seus encantos e se apaixonar apenas para te machucar no final, de propósito, por vingança ou sadismo, não sei.
Invejo os alunos do pátio como invejo os devotos de Guadalupe. Porque eles acreditam ser aquilo que vendem e acreditam ver aquilo que dizem. E não importa o quanto os garotos do pátio pareçam-se comigo, eles continuarão vivendo na fábula de serem melhores do que eu por estarem dentro e eu fora. E eu continuarei acreditando nisso. E mesmo que os devotos tenham ficado cegos, eles acreditaram até o final, olharam até que pudessem ver, enxergar, alcançar a graça. E perderam a visão tentando encontrá-la
E eu queria ter essa fé de esperar ver o milagre enquanto olhasse para frente sem nunca me questionar, sem nunca sofrer das overdoses de uma auto-consciência que enxerga borrões de cinza no espelho do banheiro.
E se eu ficasse cego, lidaria bem com isso. É o preço de acreditar em qualquer coisa.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
Reles papalvo
Eu nunca pedi por truques de mágica nem fogos de artifício. Ossos do ofício de quem não tem juízo ou tampouco siso e provoca o riso para se libertar. Como que um aviso por mero capricho vindo de um nicho de não arriscar. Não te peço abrigo nem mesmo o rabisco, um rascunho do início só pra me salvar.
Não quero respostas nem sua meia-volta ou fazer apostas de quem vai vencer. E me pouco gosta que me vire as costas ou se me encosta só por querer ter. Pra dizer que gosta, a mentira composta dentre tanta bosta só pra não perder.
Não quero viver, morrer, sonhar e me acabar sem nunca saber se tudo é verdade ou a felicidade não mora aqui e nunca morou. Se vai me dizer ou repreender e pensar amar sem se perguntar se é pra sempre ou mente enquanto acredita que acabou.
Não quero ser salvo, mas não sou um alvo esculpido no malvo para ser papalvo de quem bem entender.
Nunca fui. Nunca serei.
Não quero respostas nem sua meia-volta ou fazer apostas de quem vai vencer. E me pouco gosta que me vire as costas ou se me encosta só por querer ter. Pra dizer que gosta, a mentira composta dentre tanta bosta só pra não perder.
Não quero viver, morrer, sonhar e me acabar sem nunca saber se tudo é verdade ou a felicidade não mora aqui e nunca morou. Se vai me dizer ou repreender e pensar amar sem se perguntar se é pra sempre ou mente enquanto acredita que acabou.
Não quero ser salvo, mas não sou um alvo esculpido no malvo para ser papalvo de quem bem entender.
Nunca fui. Nunca serei.
sábado, 17 de janeiro de 2015
Éramos Três
Essa noite sonhei com você. Há muito tempo que não te encontrava em meus terrores noturnos, há muito já quase esquecia seu rosto. No sonho, éramos três, sombras do que já fomos. Os mesmos três escondidos da chuva sob a sombra da capela. Os mesmos três bêbados tarde da noite no fundo do quintal. Mas era diferente.
Foi numa estação de trem que eu te vi, entre centenas de faces anônimas, borrões de tinta numa tela ordinária. Mas o seu rosto me vem tão claro quanto a luz do dia. No sonho, nós dois éramos quase adultos - legalmente homens - como de fato somos em vida. Você era um garoto como quando na última vez que te vi, com lábios e olhos colados num repouso sublime. Como quando não fiquei para ver a primeira pá despejar terra vermelha sobre o tampo perolado do caixão.
Estávamos nos despedindo, você entrava num trem enquanto assistíamos você partir, como foi de fato. Nós, as duas hastes que nunca mais conseguiram manter esse tripé no mesmo lugar depois que te perdemos. Foi então que todas as luzes se apagaram e toda a estação ficou entregue à escuridão. Só enxergava o pouco que a luz do sol que entrava pelas laterais da plataforma me permitiam ver. E vi você, dentro da composição que estacionou por falta de energia, assustado como um garoto que era.
Corri até chegar à sua porta. Usei toda a força que tinha e que não tinha para tentar abri-la, sem sucesso. Como se soubesse que invadir o mausoléu furtivamente com o número de sua quadra e sua cova e cavar a noite toda para abrir o seu caixão não fosse te trazer de volta. Como uma mensagem que nada que eu pudesse fazer te traria de volta. Nem hoje, nem nunca. Nem mesmo num sonho, eu fui capaz de não te deixar ir. E nem fui capaz de te fazer ficar.
Mas na verdade, eu quis abrir a porta para entrar, e não pra te tirar de lá. Para ir embora, pra onde quer que aqueles trilhos nos levassem. No egoísmo de deixá-lo para trás sem nenhum de nós dois.
E por mais que eu tente, ainda não consigo entender o que meu sonho quis dizer. Não entendo o motivo do trem ter parado e me dado a oportunidade de tentar - em vão - abrir a porta e empreender viagem contigo.
E tudo isso me fez reviver o ano mais difícil da minha vida e repensar quase todas as decisões. E, como sempre, imaginar como seria se você ainda estivesse aqui, segurando esse tripé que éramos nós.
Mas você não está.
Nós éramos três. Hoje já nem sei mais.
Foi numa estação de trem que eu te vi, entre centenas de faces anônimas, borrões de tinta numa tela ordinária. Mas o seu rosto me vem tão claro quanto a luz do dia. No sonho, nós dois éramos quase adultos - legalmente homens - como de fato somos em vida. Você era um garoto como quando na última vez que te vi, com lábios e olhos colados num repouso sublime. Como quando não fiquei para ver a primeira pá despejar terra vermelha sobre o tampo perolado do caixão.
Estávamos nos despedindo, você entrava num trem enquanto assistíamos você partir, como foi de fato. Nós, as duas hastes que nunca mais conseguiram manter esse tripé no mesmo lugar depois que te perdemos. Foi então que todas as luzes se apagaram e toda a estação ficou entregue à escuridão. Só enxergava o pouco que a luz do sol que entrava pelas laterais da plataforma me permitiam ver. E vi você, dentro da composição que estacionou por falta de energia, assustado como um garoto que era.
Corri até chegar à sua porta. Usei toda a força que tinha e que não tinha para tentar abri-la, sem sucesso. Como se soubesse que invadir o mausoléu furtivamente com o número de sua quadra e sua cova e cavar a noite toda para abrir o seu caixão não fosse te trazer de volta. Como uma mensagem que nada que eu pudesse fazer te traria de volta. Nem hoje, nem nunca. Nem mesmo num sonho, eu fui capaz de não te deixar ir. E nem fui capaz de te fazer ficar.
Mas na verdade, eu quis abrir a porta para entrar, e não pra te tirar de lá. Para ir embora, pra onde quer que aqueles trilhos nos levassem. No egoísmo de deixá-lo para trás sem nenhum de nós dois.
E por mais que eu tente, ainda não consigo entender o que meu sonho quis dizer. Não entendo o motivo do trem ter parado e me dado a oportunidade de tentar - em vão - abrir a porta e empreender viagem contigo.
E tudo isso me fez reviver o ano mais difícil da minha vida e repensar quase todas as decisões. E, como sempre, imaginar como seria se você ainda estivesse aqui, segurando esse tripé que éramos nós.
Mas você não está.
Nós éramos três. Hoje já nem sei mais.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Faux Pas - Um Ensaio Sobre a Ansiedade
Quando eu respiro, o ar que preenche meus pulmões é tão denso que eu acredito estar me afogando. Sentindo-me meio vivo, meio morto, sempre à espera. À espera de qualquer coisa. Algo que eu sempre sei que vai acontecer embora nunca saiba o que é. Embora esse algo nunca aconteça.
A ansiedade como você conhece é bem diferente da qual eu me refiro. Não é aquele sentimento de expectativa ou medo antes de rever uma pessoa importante que há muito já não vê ou antes daquela entrevista de emprego super importante.
A ansiedade a qual me refiro é mais visceral e escura. Escura como nódulos - ou insetos, ou aviões, ou nuvens que formam figuras de insetos e aviões - que enxergo por debaixo das pálpebras todas as vezes em que fecho os olhos. É o sentimento de completo vazio e insignificância. A ansiedade a qual me refiro é o monstro que me segura na cama e me impede de levantar pela manhã todas as vezes. Porque ele me convenceu de que eu não vou conseguir completar coisa alguma.
Os sintomas do Transtorno de Ansiedade Generalizada incluem fadiga, irritabilidade, constante sensação de apreensão, dificuldade de concentração, palpitação, taquicardia e tensão muscular. Basicamente, a sensação que você tem num acidente de trânsito. Logo depois daquele momento onde você percebe que não dá mais tempo de frear e a batida é inevitável. Ou quando descobrem algo que não deveriam. Ou quando alguém te pega no flagra fazendo algo que não deveria. Eu chamo carinhosamente esse sentimento de "fodeu". Ter ansiedade é estar com a chave do "fodeu" ligada o tempo todo sem nem saber o porquê.
Felizmente, nunca fui diagnosticado e bem sei que ter os sintomas não quer dizer nada, mas eu também nunca procurei ajuda. E gosto de acreditar que uma coisa não tem a ver com a outra. Mas vivo com a constante sensação de ter cometido uma gafe e que todos estão prontos para rirem e debocharem de mim. Então eu tenho medo de dizer um monte de coisas, medo de ir a um monte de lugares, Medo do medo.
E exatamente pelo medo dessa "gafe invisível" eu deixo de fazer muitas coisas. Para evitar que essa sensação seja intensificada, para não dar mais motivos para ser alvo de deboche. É um estado de alerta e auto consciência constante. Sempre acho que meu cabelo está desarrumado. Sempre acho que tenho buracos nas roupas e nos sapatos. Fico paranoico quando qualquer pessoa olha pra mim por mais que alguns segundos.
É ter sono e não conseguir dormir porque - MEU DEUS, TEM TANTA COISA PASSANDO NA MINHA CABEÇA AGORA QUE PARECE QUE ELA VAI EXPLODIR! É não ter sono, mas não levantar da cama porque o mundo lá fora quer caçoar de mim. Não lhes darei esse prazer. Vou dormir mais dez minutinhos para eles saírem da minha janela.
Tem dias que dá pra levar numa boa, tem dias que se torna insuportável. Nos primeiros, eu levo numa boa, desencano. Ao invés de ligar o "fodeu" eu ligo o "foda-se", o irmão gêmeo antipático. E tudo é ótimo e bonito e sensacional. Porém, nos dias ruins em que eu não consigo ler um livro, em que eu demoro duas horas pra redigir um texto porco como esse, dias em que não consigo ver o sol mesmo que ele esteja lá fora, rachando o concreto num calor de trinta e seis graus, eu tento me esconder de mim mesmo.
Ser fitado por pares de olhos invisíveis, criticado por pares de lábios inexoráveis. Saber que é tudo coisa da minha cabeça não ajuda com a taquicardia e nem com as náuseas. Não ajuda com as dores de cabeça e o vômito. Saber que é tudo criação da minha cabeça não faz com que deixe de ser real. É o inimigo invisível que destrói minha auto estima e meu bom senso. É falhar pelo medo de falhar. É andar desajeitado por tentar calcular feito máquina os passos sobre o pavimento.
Nesses dias, eu respiro fundo e tento me convencer de que vai passar. Nesses dias eu me deito um pouco mais, me cubro um pouco mais, me deixo um pouco mais.
Só por mais dez minutinhos.
A ansiedade como você conhece é bem diferente da qual eu me refiro. Não é aquele sentimento de expectativa ou medo antes de rever uma pessoa importante que há muito já não vê ou antes daquela entrevista de emprego super importante.
A ansiedade a qual me refiro é mais visceral e escura. Escura como nódulos - ou insetos, ou aviões, ou nuvens que formam figuras de insetos e aviões - que enxergo por debaixo das pálpebras todas as vezes em que fecho os olhos. É o sentimento de completo vazio e insignificância. A ansiedade a qual me refiro é o monstro que me segura na cama e me impede de levantar pela manhã todas as vezes. Porque ele me convenceu de que eu não vou conseguir completar coisa alguma.
Os sintomas do Transtorno de Ansiedade Generalizada incluem fadiga, irritabilidade, constante sensação de apreensão, dificuldade de concentração, palpitação, taquicardia e tensão muscular. Basicamente, a sensação que você tem num acidente de trânsito. Logo depois daquele momento onde você percebe que não dá mais tempo de frear e a batida é inevitável. Ou quando descobrem algo que não deveriam. Ou quando alguém te pega no flagra fazendo algo que não deveria. Eu chamo carinhosamente esse sentimento de "fodeu". Ter ansiedade é estar com a chave do "fodeu" ligada o tempo todo sem nem saber o porquê.
Felizmente, nunca fui diagnosticado e bem sei que ter os sintomas não quer dizer nada, mas eu também nunca procurei ajuda. E gosto de acreditar que uma coisa não tem a ver com a outra. Mas vivo com a constante sensação de ter cometido uma gafe e que todos estão prontos para rirem e debocharem de mim. Então eu tenho medo de dizer um monte de coisas, medo de ir a um monte de lugares, Medo do medo.
E exatamente pelo medo dessa "gafe invisível" eu deixo de fazer muitas coisas. Para evitar que essa sensação seja intensificada, para não dar mais motivos para ser alvo de deboche. É um estado de alerta e auto consciência constante. Sempre acho que meu cabelo está desarrumado. Sempre acho que tenho buracos nas roupas e nos sapatos. Fico paranoico quando qualquer pessoa olha pra mim por mais que alguns segundos.
É ter sono e não conseguir dormir porque - MEU DEUS, TEM TANTA COISA PASSANDO NA MINHA CABEÇA AGORA QUE PARECE QUE ELA VAI EXPLODIR! É não ter sono, mas não levantar da cama porque o mundo lá fora quer caçoar de mim. Não lhes darei esse prazer. Vou dormir mais dez minutinhos para eles saírem da minha janela.
Tem dias que dá pra levar numa boa, tem dias que se torna insuportável. Nos primeiros, eu levo numa boa, desencano. Ao invés de ligar o "fodeu" eu ligo o "foda-se", o irmão gêmeo antipático. E tudo é ótimo e bonito e sensacional. Porém, nos dias ruins em que eu não consigo ler um livro, em que eu demoro duas horas pra redigir um texto porco como esse, dias em que não consigo ver o sol mesmo que ele esteja lá fora, rachando o concreto num calor de trinta e seis graus, eu tento me esconder de mim mesmo.
Ser fitado por pares de olhos invisíveis, criticado por pares de lábios inexoráveis. Saber que é tudo coisa da minha cabeça não ajuda com a taquicardia e nem com as náuseas. Não ajuda com as dores de cabeça e o vômito. Saber que é tudo criação da minha cabeça não faz com que deixe de ser real. É o inimigo invisível que destrói minha auto estima e meu bom senso. É falhar pelo medo de falhar. É andar desajeitado por tentar calcular feito máquina os passos sobre o pavimento.
Nesses dias, eu respiro fundo e tento me convencer de que vai passar. Nesses dias eu me deito um pouco mais, me cubro um pouco mais, me deixo um pouco mais.
Só por mais dez minutinhos.
domingo, 11 de janeiro de 2015
Horizontes de Carvão
O ano acabou e eu sobrevivi. Como disse que faria, como muitas vezes duvidei.
Acordei há pouco mais de um mês. Saí do fundo da minha cabine escura para tomar o convés depois de anos à deriva em mares turbulentos. Eu perdi meu equilíbrio com o balanço do navio e temo um dia trançar pernas feito um bêbado em fim de novo quando finalmente aportar em qualquer lugar.
Quando olhei ao meu redor, nada vi senão a água gélida e agitada e paredões de nuvens negras no horizonte como pilhas de carvão sem nenhum fósforo para acender. Tomei o leme e vesti uma cota de malha para encerrar minha cota de erros. Não porque temo meus inimigos, mas para afundar de uma só vez se uma hora eu cair no mar.
Embora em tempos turbulentos, não deixei de pensar que não pude ver o sol há um bom tempo, mesmo nos dias com céu aberto e águas calmas. Á deriva, me reneguei ao fundo da cabine fitando goteiras do convés agarrado a uma garrafa de rum barato. Escrevendo todos os meus arrependimentos em pergaminhos ensopados até que não houvesse mais tinta. Esperava ser encontrado, morto de sede, de fome. Ou ter coragem o bastante para um dia me atirar no mar e me entregar à imensidão cinza azulada. Esperava que alguém me salvasse de mim mesmo, à deriva, incapaz de ver o sol mesmo que ele estivesse do outro lado da portinhola.
Mas eu resolvi sair, subir ao convés e encontrar terra firme. Mais distante do que nunca, mais perdido do que nunca. Sem nada para comer, beber ou fumar. Talvez seja tarde demais, talvez eu não encontre terra firme ainda vivo. E talvez ninguém me encontre. Então resolvo assumir toda a culpa: eu me trouxe até aqui, tive meus motivos para querer me ver afundar. Me coloquei dentro de uma armadilha e somente eu posso me salvar.
E no primeiro passo, já vi o que enfrentaria: antes de sair do convés, um degrau de carvalho cedeu com a ação do tempo e se quebrou debaixo dos meus pés, mas me equilibrei para não cair. Quando finalmente desisti da ideia de morrer, alguém me oferece um perigo real: um degrau sorrateiro na minha subida.
No convés, fitei o mar e o céu cinza ao meu redor. Nunca naveguei águas tão escuras e tão frias, nunca estive tão perdido. Mas nunca senti tanta determinação em me encontrar. Rezei tanto por uma tempestade que ela de fato chegou. E justo no momento em que tive vontade de viver.
Um navio velho sem tripulação, nenhum mapa, água ou comida. Há centenas de léguas de lugar algum, mas eu ainda acredito. Ainda penso em desbravar as águas turbulentas e cinzas para Norte e Oeste. E ver até onde esses horizontes de carvão podem me levar. Eles são tudo o que eu tenho agora: a linha da curvatura da Terra, água, sal, chuva e nuvens escuras.
Me falta navegar para qualquer lugar. Casa, eu acredito. Onde quer que ela esteja.
Acordei há pouco mais de um mês. Saí do fundo da minha cabine escura para tomar o convés depois de anos à deriva em mares turbulentos. Eu perdi meu equilíbrio com o balanço do navio e temo um dia trançar pernas feito um bêbado em fim de novo quando finalmente aportar em qualquer lugar.
Quando olhei ao meu redor, nada vi senão a água gélida e agitada e paredões de nuvens negras no horizonte como pilhas de carvão sem nenhum fósforo para acender. Tomei o leme e vesti uma cota de malha para encerrar minha cota de erros. Não porque temo meus inimigos, mas para afundar de uma só vez se uma hora eu cair no mar.
Embora em tempos turbulentos, não deixei de pensar que não pude ver o sol há um bom tempo, mesmo nos dias com céu aberto e águas calmas. Á deriva, me reneguei ao fundo da cabine fitando goteiras do convés agarrado a uma garrafa de rum barato. Escrevendo todos os meus arrependimentos em pergaminhos ensopados até que não houvesse mais tinta. Esperava ser encontrado, morto de sede, de fome. Ou ter coragem o bastante para um dia me atirar no mar e me entregar à imensidão cinza azulada. Esperava que alguém me salvasse de mim mesmo, à deriva, incapaz de ver o sol mesmo que ele estivesse do outro lado da portinhola.
Mas eu resolvi sair, subir ao convés e encontrar terra firme. Mais distante do que nunca, mais perdido do que nunca. Sem nada para comer, beber ou fumar. Talvez seja tarde demais, talvez eu não encontre terra firme ainda vivo. E talvez ninguém me encontre. Então resolvo assumir toda a culpa: eu me trouxe até aqui, tive meus motivos para querer me ver afundar. Me coloquei dentro de uma armadilha e somente eu posso me salvar.
E no primeiro passo, já vi o que enfrentaria: antes de sair do convés, um degrau de carvalho cedeu com a ação do tempo e se quebrou debaixo dos meus pés, mas me equilibrei para não cair. Quando finalmente desisti da ideia de morrer, alguém me oferece um perigo real: um degrau sorrateiro na minha subida.
No convés, fitei o mar e o céu cinza ao meu redor. Nunca naveguei águas tão escuras e tão frias, nunca estive tão perdido. Mas nunca senti tanta determinação em me encontrar. Rezei tanto por uma tempestade que ela de fato chegou. E justo no momento em que tive vontade de viver.
Um navio velho sem tripulação, nenhum mapa, água ou comida. Há centenas de léguas de lugar algum, mas eu ainda acredito. Ainda penso em desbravar as águas turbulentas e cinzas para Norte e Oeste. E ver até onde esses horizontes de carvão podem me levar. Eles são tudo o que eu tenho agora: a linha da curvatura da Terra, água, sal, chuva e nuvens escuras.
Me falta navegar para qualquer lugar. Casa, eu acredito. Onde quer que ela esteja.
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