Eu me lembro do meu quarto, o último que tive e foi definitivamente meu para toda e qualquer possível interpretação. Ficava na última casa em que pude chamar literalmente de minha quando eu ainda tinha dezessete anos. No último momento em que pude chamar um lugar de lar sem qualquer sinal de hesitação. Foi meu santuário resumido a minha cama, meu computador, meu violão e meus poucos livros que eram tudo o que eu precisava para existir então. Onde eu passei quase todo o tempo que tive livre lendo, ouvindo música, assistindo pornografia e mantendo mínima interação com outras pessoas. Da mesma maneira que faço até hoje sendo que foi lá, inclusive, que tive a ideia e motivação de criar esse espaço onde eu posso destilar todas as minhas mais íntimas confissões. Aquele quarto foi minha cápsula do tempo que me levou até o futuro onde não mais poderia estar num único lugar embora, muitas vezes, eu quisesse. E isso tudo foi antes de eu dormir em sofás atraído pelo astro maior que era a televisão viajando através do tempo e do espaço sem jamais sair do lugar até o fim da existência.
Gabriel García Marquez em seu fantástico "Cem Anos de Solidão" diz que nenhum lugar pode ser chamado de seu até que se enterre um morto nele. O poeta americano Robert Frost diria que lar é onde, não importa quando ou como você chegue, será aceitado. Já Henry David Thoreau em seus diários comparava o homem dito civilizado com o nativo da terra sendo, o último, livre dentro de seu espaço, e o segundo prisioneiro de seu próprio lar. Acima de tudo, casas são prisões. Lugares que, de forma ou outra, nos restringem a liberdade através dos laços que nós mesmos criamos sem perceber seja através dos entes queridos enterrados ou pelos entes vivos que vão nos aceitar. E se esse lar é agradável ou não, não existe uma grande diferença, ele ainda funciona como uma prisão. Se cumpríssemos pena por um crime dentro da mais luxuosa mansão, ainda estaríamos presos, certo? Uma necessária prisão diante do medo de tudo o que há lá fora, da dureza do pavimento, do frio da chuva, da nossa insignificância em meio as luzes brilhantes e indiferentes das cidades com seus imponentes prédios e a frieza de todas as vidas que se cruzam com a sua todos os dias sem nunca de fato fazer uma diferença.
Talvez, por não ter um lar no sentido mais puro da palavra sem a sombra das ambiguidades que ela pode carregar, eu aprendi a enxergar o meu lugar em constante movimento. Pois talvez lar não seja um lugar, mas sim um momento, um sentimento, um recorte de nossa experiência em vida. Sua casa vazia, sem ninguém, nenhuma mobília, nada exceto aquilo que faz parte da construção, ainda é seu lar? Um amontoado oco de pedra, madeira e metal não é um lar assim como um cadáver não é uma pessoa. O residente é a alma do lar. Você sem a sua casa ainda é você. Sua casa sem você é só... uma casa. Talvez seja esse papel de protagonismo paradoxal à nossa insignificância no mundo que nos cerca que torne o conceito de lar tão confortante. Então eu comecei a enxergar minha casa em outros lugares: na saliva nos selos de cartão postal, nos cochilos do banco de trás durante uma longa viagem no meio da noite, nas catarses provocadas pelo álcool, no crepúsculo ou alvorada no horizonte, nas caminhadas longa sob a chuva, nas palavras amigas nos momentos difíceis, os cantos do passado para onde fugimos quando nada mais parece fazer sentido. Qualquer situação, momento ou lugar onde a minha insignificância diante da imensidão de tudo aquilo que existe, já existiu ou vai existir foi rebatida pela singularidade de ser quem sou e o quão único é o impacto da minha própria existência na vida de todo mundo a minha volta.
Isso é o que chamamos de legado. Aquilo que fica no mundo mesmo depois de partirmos para outra existência (ou existência nenhuma). Talvez sejamos tão obcecados com a ideia de possuir um lugar justamente para que ele se perpetue através das gerações posteriores como uma extensão de nossa própria personalidade. No final, todos os homens querem ser imortais, transcendentais, estoicos. Tudo o que queremos é ser o centro do universo, somente conseguimos fazê-lo dentro de um mundo criado por nós mesmos. Mesmo que ele vá da cama até o interruptor de luz. Ser o dono de alguma coisa, a alma de uma entidade, o protagonista das decisões. Tudo isso é reconfortante e funciona mesmo que seu lar não seja um lugar, mas sim um espaço de tempo, uma memória doce, um estado de espírito, um ideal flutuante que nada e ninguém pode tirar de nós.
Ainda, para mim, casa é qualquer espaço ou tempo onde eu possa repousar depois de salvar o dia não me tornando aquilo que me desapontaria aos oito anos de idade. E hoje, esse é um lugar que só existe dentro da minha cabeça.